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VOZ PASSIVA. 131
15-08-2023 10:50António Quadros e António Telmo: um diálogo entre livres-pensadores[1]
Pedro Martins
1. «Lá para Outubro, vou-me embora. Não deixe que me convertam». Estas são palavras de Álvaro Ribeiro para Francisco Sottomayor, a quem as ouviu António Telmo. Foi deste que as escutei e não podem deixar de evocar a tentativa de confissão, por um sacerdote, de um Sampaio Bruno às portas da morte, prontamente repelida pelo portuense ilustre. A conversão aventada refere-se ao catolicismo e só quem estiver desatento ou pensar com a vontade poderá persistir na ideia de que Álvaro tenha observado qualquer ortodoxia, mormente a da Igreja de Roma, ele que, em A Literatura de José Régio, confessa aos seus leitores que «em vão formulou novo pedido de aliança ou de casamento» por, entre as razões apresentadas para as recusas recebidas, se deparar com esta: «ainda não se convertera à religião da maioria». Vale a pena a demora numa página memorial daquele livro:
«Fascinado efectivamente pelo patriotismo eloquente e apostólico de Leonardo Coimbra, hesitava eu todavia em segui-lo, intimidado perante a leitura de seus livros incomparáveis, onde se efectuava a polémica mais notável contra todas as doutrinas que erroneamente assentam na falsa hipótese de que no princípio era o cáos. Acontecia, porém, que a minha alma sempre preocupada com a vida religiosa, que sobrepunha à cultura filosófica e à curiosidade literária, estava então incapaz de compreender a historificação positivista da teologia francesa em três capítulos, três estados e três factos correspondentes à tríade Deus, Cristo, Igreja. Cansado de ouvir ou ler, nas orações homiléticas e nos artigos jornalísticos, as frases contundentes de que a Igreja proíbe, a Igreja reprova, a Igreja condena, perguntava-me perplexo se tal ignorância era professada por homens católicos e por mulheres católicas, consultava e estudava a documentação eclesiástica, recorria a livros estrangeiros, e no fim verificava que as ciências proibidas não iam contra a vontade da Igreja, a doutrina de Cristo, a ideia de Deus.
A heresia, significando etimologicamente procura de outra fé, deixou de me intimidar, quanto mais o exemplo de Leonardo Coimbra nos assegurava confiança no melhor caminho, já que o filósofo, relacionando sempre a liberdade com o amor, nos dava uma interpretação do cristianismo que transcendia os limites da dogmática católica.»
Só na aparência me afastei do tema proposto, que abordarei do prisma do livre-pensamento religioso. António Quadros e António Telmo, de quem Álvaro Ribeiro foi o primeiro mestre, souberam-no cultivar.
2. A conversão de Leonardo abalou alguns espíritos. Pela inoportunidade do momento político em que ocorreu, Pascoaes viu nela a obra do diabo. E, sem jamais pôr em causa a sinceridade do mestre, Álvaro Ribeiro, passados já dez anos sobre a morte daquele, podia afirmar:
«Quanto a mim, confesso que divergências profundas, especialmente em teologia, me impedem de estudar a obra de Leonardo com aquela sincera adesão que me levou a receber e a admirar o seu magistério filosófico.»
Na geração seguinte, Telmo sugere que o regresso de Leonardo à religião da infância, se interpretado pela parábola do Filho Pródigo, haveria, possivelmente, de se traduzir num enriquecimento do cristianismo exotérico patenteado na ortodoxia católica, pela vivência experiencial do martinismo que o filósofo re-velara nalgumas obras da sua fase criacionista, mormente em A Alegria, a Dor e a Graça.
A hipótese é plausível. Álvaro Ribeiro lembra que «a conversão é sempre integrativa e integrante». E é significativo que o faça num escrito de imprensa em que afirma ter sido Bruno «o nosso primeiro filósofo, ou seja, o nosso primeiro-livre pensador», para, em seguida, demonstrar que livre-pensador, verdadeiramente, só o poderá ser o pensador religioso.
Definindo a liberdade como a «coexistência pacífica dos diferentes», Álvaro afirma também que «o livre-pensador, ao contrário do positivista, avança por um domínio delimitado pelos escolásticos, mas acelera a evolução espiritual da Humanidade».
A derradeira frase consente versão para a teurgia martinista. E é ainda, uma vez mais, com Álvaro Ribeiro, agora em Apologia e Filosofia, que a hipótese de Telmo se robustece. Pois não será o itinerário espiritual vislumbrado no trajecto de Leonardo uma modelar realização operativa da escala triádica em que, pela mediação do pensamento sófico, o pensador ascende do plano gnósico ao plano pístico? É que sem essa mediação, no caso leonardino assegurada pela experiência martinista, a tentativa de relacionar directamente a razão com a fé nunca desenvolveria as virtudes nem suscitaria as graças que os crentes esperam da apologética religiosa, como Álvaro observou. E por isso o livre-pensador vai para além da escolástica: avança no terreno que esta delimita, mas acelera a evolução espiritual da humanidade, como da lição alvarina se poderá ainda retirar.
3. «O António Quadros foi o único e creio que eu também um pouco que viu serem inseparáveis a Igreja de Pedro e a Igreja de João.» Assim escreve Telmo ao amigo em carta de 2 de Junho de 1986. Logo no ano seguinte, a 22 de Janeiro, afirma-lhe noutra missiva: «O António Quadros é dos que restam, o único que não «repele» a minha Teima ocultista, que não a teme, que a inclui numa das direcções da sua vida espiritual». E em Março de 1990, em novo lance epistolar: «De facto, há entre nós dois uma fidelidade ao ensino que recebemos que tem muito de comum: daí o sermos, sobretudo, hermeneutas.»
Constituem estas últimas palavras uma resposta à pergunta que Quadros, dias antes, em carta de 27 de Fevereiro, lhe dirigira:
«Sei que você andou muito por baixo, e creia que pensei muito em si. Afinal de contas, mesmo pesando todas as diferenças, não seremos nós dois, os mais afins de entre os discípulos de A. [Álvaro Ribeiro] e M. [José Marinho], da primeira geração? De certo, eu sou mais “ortodoxo” (talvez por falta de ousadia intelectual interior), decerto, você foi sempre mais fundo do que eu, em todas as vias por que enveredou. Você tem a capacidade de ir ao âmago dos problemas e de estabelecer sínteses fulgurantes, em palavras concisas. Será de fogo, o seu signo? Se não é parece. O meu é claramente aquático, o caranguejo: derrama demasiada literatura, embora, como as ondas do mar, bata sempre as mesmas praias, com certa monotonia. Você atinge verdadeiramente um conhecimento hermético, ajudado pela cabala e pela associação, singular entre nós (rara alhures) entre o esoterismo e a filosofia. Eu permaneço nos arredores, fascinado do lado de fora, sem contudo atravessar o umbral da porta. Você conseguiu concentrar-se, meditar a sério (tudo isto são afinal observações sugeridas por Filosofia e Kabala), enquanto eu navego como posso em águas de uma média cultura, de uma pequena capacidade de filosofar e (o que me vale) de uma certa intuição e encarniçamento relevando mais do dever do que da arte de pensar.
Apesar destas diferenças, em ambos há o interesse pela poesia e pela simbólica artística, pelo oculto e pela filosofia em todas as suas formas (mas sobretudo por uma filosofia do Espírito), sendo também de notar que, ao contrário da maioria dos nossos companheiros, reconhecemos os mesmos mestres, Leonardo e Bruno, Pascoaes e Pessoa, Álvaro e Marinho, integrando-os, com as suas antinomias, na nossa vivencialidade gnósica.»
Importa recordar que Quadros, ao contrário de Telmo, não era um iniciado. Mas a iniciação parecia sobre ele exercer um fascínio que, não raro, o levava a colocar-se na posição do esoterista. Ao amigo, em carta de 29 de Janeiro de 1997, dirá: «Não tenho pois nenhuma vocação para esotérico, embora tenha uma grande inclinação para todas as formas de esoterismo, que não só constituem um desafio, como prometem um saber outro do que o daqui, só daqui».
Para melhor se compreender o posicionamento de Quadros, importa considerar que, na mesma carta, se irá definir como «um católico liberal». Estamos, na verdade, diante de um livre-pensador religioso:
«Não me sinto no mínimo inibido, em minha liberdade espiritual. Nem clericalista nem anti-clericalista. Faço hoje uma vida de sacramentos, embora o meu espírito flutue muito e se dirija para paragens aventurosas, faço-o fundamentalmente porque os sinto como constituindo laços vivos, concretos, tradicionais com o sagrado, com Deus, exigindo da nossa parte reverência e humildade, uma aproximação do povo, dos simples que só por aí acedem a uma vida de espírito superior à dos interesses quotidianos. Como o pão que Cristo partilhou com os apóstolos e sinto-me sentado à sua mesa. Ajuda-me a vencer o egocentrismo e a sujeição aos interesses próprios.»
Linhas depois, em passagem do maior significado, afirmará:
«Concebo um Deus-Espírito, muito superior às nossas pequenas contabilidades e prejuízos terrenos. Muito superior às nossas estreitas ortodoxias, que aliás já foram heterodoxias e heresias para outros, ou são-no.»
É justamente aqui que a sua atitude de aproximação ao esoterismo melhor se define, por admitir um Deus que transcende as diversas religiões. Não fora outro, de resto, o desígnio do Império segundo Avis, como no Livro II de Portugal, Razão e Mistério se pode verificar. Tal
«era o projecto político da sinarquia templária, herdada pela Ordem de Cristo, o Império (do Espírito Santo) acima dos Reinos e dos vários Cultos de origem bíblica monoteísta e até dos pagãos. Mas tal projecto só seria verdadeiramente viável através de uma teoria laicista, qual a preconizada por um Dante, que sob o domínio carismático de um Imperador directamente ungido e coroado por Deus-Espírito, pudesse esbater o poder radicalista das ortodoxias religiosas. Se todo o domínio espiritual fosse destas, o diálogo tornar-se-ia impossível devido ao rigorismo teológico dos eclesiásticos. Mas se, mesmo com o predomínio religioso do Cristianismo, o acento recaísse sobre o Espírito Santo, sobre a Terceira Pessoa, sobre o Quinto Evangelho ou sobre o Evangelho Eterno, quiçá fosse possível aceder à concepção de um Deus / Homem de outro Deus maior, no verso de Pessoa, de um Deus-Espírito no qual coubessem o Deus trinitário do Cristianismo e ainda Jeová e Alah, e mesmo o Deus Desconhecido ou aqueles Deuses únicos e recônditos cujo Mistério subjaz a todos os Politeísmos.»
A carta de Janeiro de 1987 reflecte em vários aspectos a passagem agora transcrita. O que não surpreende. Quadros concluíra já o segundo volume da sua obra-prima, e daí que naquela deixasse transparecer o entusiasmo com a próxima aparição desta. Pela conjugação de ambas se comprova que o desígnio ecuménico do filósofo firma raízes no esoterismo templário da Ordem de Cristo.
É ainda naquela missiva que anuncia a Telmo:
«Você verá talvez melhor a minha posição no vol. II de “Portugal…”, onde defendo um trinitarismo de predominância paraclética, mas… sem heresia, como penso que foi o de Dinis e Isabel, dos franciscanos espirituais e da Ordem de Cristo. Coincido pois com o que você diz sobre os templários e sobre a aproximação do catolicismo e do ocultismo – pelo menos do ocultismo de sinal cristão, isto é, não oriental –, embora eu penda pessoalmente mais para um criacionismo cristão-liberal.»
É de crer que Quadros se encontre a meio caminho entre o profetismo místico e ecuménico do Agostinho da Silva de Educação de Portugal, e o desígnio unitário revelado nos derradeiros parágrafos de A Literatura de José Régio, em que a angelologia judeo-cristã de Álvaro Ribeiro encontra cabal expressão, ou no fundo espiritualismo maçónico que viria a culminar, como corolário, a obra de António Telmo.
4. Em 1998, a iniciação de Telmo no Rito Escocês Rectificado foi, pela própria natureza deste rito, um acto de coerência de quem, na senda de Bruno e de Álvaro, exaltara o martinismo. Deste prisma, será muito significativo que, na já citada carta de 22 de Janeiro de 1987, tivesse escrito:
«Não que não me toque de profunda emoção religiosa o supremo Esplendor da Igreja de Cristo em que todos nós fomos criados, mas em cuja doutrina, dogmas, sacramentos, ritos não vejo incompatibilidade com a «cabala» martinista pensada pelo nosso primeiro Mestre. Se não fosse assim, a obra de Joseph de Maistre, um dos chefes ocultos da maçonaria martinista, onde usava o nome, veja o António, de Josephus a Floribus, teria sido uma impossibilidade.
Não vejo ninguém, a não ser o António Quadros, capaz de acompanhar Álvaro Ribeiro e de comigo o seguir neste ponto crucial. Ocultismo sem catolicismo, como talvez o entendesse F. Pessoa, não está dentro dos planos da «Ordem Templária», a que ele dizia pertencer. O prestígio que se fez à sua volta e o silêncio tumular que sempre se faz à volta de Álvaro Ribeiro explicam-se, talvez, assim. Afigura-se-me impossível separar dois relativos: a ortodoxia e a heterodoxia.»
Reconhece-se a doutrina alvarina. Mas será mesmo assim? Não haverá incompatibilidade entre a doutrina católica e a «cabala» martinista pensada por Álvaro Ribeiro? A resposta, de extrema dificuldade, dependerá do modo de entender o exoterismo da enunciação dogmática…
Não obstante, farei notar que o Tratado da Reintegração dos Seres, de Pascoal Martins, principal fonte do martinismo, acolhe essencialmente a cristo-angelologia ebionita do Verus Propheta, conforme a lição de Robert Amadou. Nenhum papel desempenha ali, ainda, o dogma da Encarnação, absolutamente impensável para o cristianismo originário da comunidade de Jerusalém, anterior às enxertias helénicas e romanas, e portanto goim, de Paulo e de Constantino.
A entificação do Absoluto, como demonstrou Henry Corbin, é pura impossibilidade lógica. Não será outra a doutrina d’A Literatura de José Régio. Álvaro não aceita a divindade de Jesus, de quem, com significativa insistência, afirma ser um profeta religioso, ou sagrado, para o comparar a Moisés e a Maomé:
«Enviado de Deus, profeta, comparável a Moisés, Cristo usufrui de um atributo mais dignificante. Toda a messiologia se nos afigura como campo deficientemente cultivado pela responsabilidade dos teólogos. Se, conforme a tradição judaica, espírito messiânico só poderá ser espírito superior, ou espírito angélico, então compreenderemos certas feições extraordinárias da figura que de Jesus nos apresentam os evangelistas, e compreenderemos que Cristo haja sido, nos momentos altamente religiosos da sua vida na Terra, perfeitamente assistido pelos anjos.»
Por mais de uma vez se refere ali Álvaro Ribeiro a Jesus Cristo como «o último profeta». A expressão, que evoca irresistivelmente a noção islâmica do selo da profecia, melhor esclarece qual seja o atributo mais dignificante de Cristo perante Moisés: o primeiro, sobre ser profeta, é também o Messias, mas jamais Deus encarnado. Nesta encruzilhada se define o judeo-cristão em que Álvaro, converso sefardita, se projecta.
Na senda da apologia feita por Bruno, constitui-se o martinismo como o fundo secreto da ideação alvarina, com o que porventura se desenha uma cadeia tradicional viva e actuante. Sibilinamente, lembra Álvaro Ribeiro em A Literatura de José Régio que os gnósticos ainda existem na actualidade. Não quaisquer, mas à guisa dos ebionitas, como gnósticos dessa nova gnose que n’A Ideia de Deus Bruno nos apresentara: uma gnose eminentemente judaica com uma soteriologia propriamente gnóstica, nas palavras de Corbin.
Não será de crer – e ele próprio o admitiu – que Quadros pudesse levar tão longe o seu pensamento. A ênfase paraclética do seu cristianismo é um limite intransponível de onde, porém, dada a unidade essente do Espírito – se quiserdes, do Espírito Santo –, se vislumbra já o monoteísmo puro de um Álvaro Ribeiro, ou o teomonismo de um Henry Corbin.
Em 7 de Abril de 1987, escreve-lhe Telmo: «Entre “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” refiro-me ao Paracletismo de Joaquim de Flora e aí aproveitei a ocasião para lhe mandar um recado.» O recado pode ser lido em Filosofia e Kabbalah:
«Quanto a Joaquim de Flora, cremos que ao leitor inteligente não escapou o que há de significativo no facto de Joseph de Maistre ter escolhido como nome iniciático Josephus a Floribus. Tanto basta para estabelecer uma relação suficiente com tudo quanto escrevemos. Aliás, a presença do paracletismo italiano em terra portuguesa foi já largamente estudada ou reflectida por Agostinho da Silva ou António Quadros, para cujos notáveis estudos remeto o leitor interessado. Há, porém, que distinguir entre os autores que são atraídos para certas doutrinas cristãs pelo seu subconsciente hebraico e aqueles que as perfilham com inteira e clara consciência da relação.»
5. Entre estes dois espíritos de escol houve, por certo, alguns desencontros. Pouco importa.
Cristão liberal, Quadros propugna necessariamente a «coexistência pacífica dos diferentes»; e releva, por certo, de uma exemplar saúde moral e ética a condenação, em Portugal, Razão e Mistério, do «odioso Tribunal do Santo Ofício», um símbolo do «contra-reformismo estreito, fanático, racista, intolerante», próprio da «clerocracia» entre nós instalada com D. João III, e «que quase ia queimando, nos seus Autos-de-Fé e na sua psicologia inquisitorial e delatora, se é que não a devorou de forma irreparável, o espírito da nação portuguesa». É reconfortante poder citar António Quadros, nestas passagens daquela sua obra, com o antigo Palácio dos Estaus e a Igreja de São Domingos tão próximas, aqui ao lado…
E das diferenças dirá Telmo, na História Secreta de Portugal, que «sempre constituíram a base e a condição do que será, para a Ordem do Templo e de Cristo, a conversação universal dos espíritos»; e daí que alerte para o facto de estarem «sendo desfeitas pelo que aparece como o intento de produzir a homogeneização geral das matérias».
Exemplar diálogo entre livres-pensadores religiosos foi o destes espíritos de escol. Receio bem que se trate, em nossos dias, de uma conversa acabada.
[1] Comunicação apresentada, em 13 de Julho de 2023, no Palácio da Independência, em Lisboa, ao Congresso nos 100 anos de António Quadros.
VOZ PASSIVA. 130
23-06-2023 09:57António Telmo e Tomé Natanael, ou a contemplação de si
Risoleta C. Pinto Pedro
A Literatura Portuguesa está repleta de manifestações em que os poetas revelam a sua divisão interior. Atribui-se este estado de ser à perseguição feita aos judeus na Península, convertidos à força, a partir do século XVI, sacrificados nas prisões e nas fogueiras. Mas talvez tal condição seja prévia a este contexto temporal e já estivesse escrita na história, na epigenética, nas múltiplas perseguições, nas múltiplas conversões. Desde o princípio. Por alguma razão, uma das entrevistas fictícias que António Telmo escreve é à revista Princípio, que pretensamente entrevista Tomé Natanael, anagrama de António Telmo.
Ao longo de toda a linhagem da nossa escrita literária, está patente a bipartição, a cisão do eu, a dilaceração da alma de um povo, a ferida profunda na identidade, a duplicidade, mas não só: o próprio antagonismo interior, a violência da partida, o êxodo e a saudade.
No Renascimento, Bernardim Ribeiro afirma que «Entre mim mesmo e mim não sei que se alevantou que tão meu imigo sou»; ou na novela pastoril Menina e Moça, de 1554, editada em Itália por Abraão Usque, judeu emigrado: “Menina e moça me levaram de casa de minha mãe para muito longe”. Mãe humana, Mãe Pátria.
Sá de Miranda canta: «Comigo me desavim,/ Sou posto em todo perigo; /Não posso viver comigo/ Nem posso fugir de mim./ Com dor da gente fugia,/ Antes que esta assi crecesse:/ Agora já fugiria/ De mim, se de mim pudesse.» Fuga provocada por inimigo externo que se interioriza num palco interno que a literatura revela. Como se resolve este drama? António Telmo perseguiu esta ideia na sua obra.
O próprio Camões se queixa: «Alma minha gentil que te partiste»; já ali tem tudo, a partida do lugar e a partida do eu.
Bocage, poeta do século XVIII, sintetiza a despersonalização do eu e os problemas de identidade em quatro palavras: «Já Bocage não sou».
Para criar a distância que permita o reconhecimento, os poetas procedem à fase inicial do trabalho alquímico, a fragmentação do todo e a análise das partes para poderem ver a imagem, e com ela a múltipla identidade.
Fernando Pessoa, no século XX, levou a fragmentação a um limite quase inimaginável do fulgor da separação, com os heterónimos em número considerado inédito.
Mário de Sá Carneiro, seu contemporâneo, afirma-o genialmente:
«Eu não sou eu nem sou o outro, / Sou qualquer coisa de intermédio»
Exemplos que são gota de água num oceano.
A diáspora é transversal aos poetas e forma um único texto em que cada autor representa uma palavra, contribuindo, através desta aparente divisão, para a superior síntese de uma identidade em movimento de espiral.
António Telmo, relativamente a esta linhagem que também é a sua, traz a novidade da proposta de cessação de uma relação agónica no eu, o fim da luta e casamento entre as partes do sentir-se judaico com o sentir-se cristão. A superação da separação sem hostilidade, através do movimento integrador espiralado. A boa vertigem.
No outro lado da Europa latina, na Roménia, pois somos os dois países de línguas latinas dos extremos, a oriente e a ocidente da Europa, Marin Sorescu escreve “Há muito suspeitava de mim mesmo/ e hoje persegui-me durante todo o dia/ a uma distância que evitasse suspeitas”. O conflito interior no seu apogeu, o perigo interiorizado, e a Roménia como espelho de nós mesmos, a fuga do país. Como nós, a impossível vida sob uma ditadura, neste caso política, no caso dos judeus, também religiosa.
António Telmo provém de ramos familiares contrários, liberalismo e conservadorismo, judaísmo e cristianismo, mas neste pensador, as religiões não se contradizem, levando o Espírito de Síntese à formulação de que um mais um não são dois, mas pela alquimia da iniciação maçónica, o marranismo ascende ao três e a partir daí ao infinito.
De formação literária e académica clássicas, cria uma obra profundamente filosófica, na senda de filósofos da chamada filosofia portuguesa e de poetas com ela empáticos, integrando na sua escrita o ensaio e a ficção: dissertação, reflexão, conto, drama, diálogo e poesia. O ensaio é poético, a ficção é filosófica.
A sua personagem Tomé Natanael é motivo de poema, conto, reflexão, diálogo e entrevista. Criado a partir de anagrama do nome de António Telmo, desdobra-se em Tomé, o cristão, e Nathan, o judeu. Para além de emergirem do self de Telmo, é de recordar que Nathan era profeta de David e Salomão, e Tomé um dos doze apóstolos de Jesus. Para além de formar com Nathan uma polaridade, ele próprio é palco de sentimentos extremos: a dúvida receosa e a determinação amorosa, como um fractal que como parte contém em si o todo, pois ele próprio é judeu e ainda que nutrindo um profundo amor por Jesus, duvida da sua ressurreição. Os extremos criados por Telmo não estão exactamente equilibrados, há um desequilíbrio para o lado judaico, e tal como ele próprio afirma noutro lugar, há que buscar a irregularidade da obra, pois é ela que indicia aquilo que é importante do ponto de vista do conhecimento. Um sinal, um indício, um apontar. E talvez seja este o segredo do marrano: a sua imperfeição. E a sua grande e dilaceradora dor. Aquela que lhe permite manter-se vivo e lúcido. Porque tudo o que pode ser sentido pode ser curado: transcendido e integrado.
Esta personagem Tomé Natanael, o antiquário de Estremoz, ou o seu desdobramento em Tomé e Nathan, espraia-se pela obra do filósofo. Se António Telmo e Tomé Natanael já são duplos um do outro, criador e criatura, por sua vez Tomé Natanael também se reparte no judeu e no cristão, cujos diálogos são, ao contrário do que poderia acontecer, de uma elevação profunda e inspiradora, revelando uma cumplicidade gentil entre Tomé e Nathan. Existe ainda um outro nome anagramático, Nathan de Natanael, que assina as pranchas maçónicas e que parece mais um reflexo em espelho de Tomé Natanael. Ou de António Telmo. São tantos os textos onde estas personagens surgem unidas ou desdobradas, que terei de me ater a um conto e ainda assim não haverá tempo, nesta comunicação, para o aprofundar. Um estudo maior se seguirá e prolongado se prevê que venha a ser.
No conto das polaridades ou em busca da harmonia perdida “No Hades ou o Antiquário de Estremoz”, de alguma forma Platão e Aristóteles representam a unidade criada a partir dos aparentes opostos/polaridades.
Toda a sequência narrativa é exactamente erigida como um rigorosíssimo puzzle cujas peças se mantêm viradas para baixo até que estejamos preparados para as ver.
As personagens principais são o autor, que se assume também como narrador e personagem, e Tomé Natanael, antiquário de Estremoz. O centro de tensão e atenção do conto é uma reprodução do célebre afresco de Rafael, A Escola de Atenas. O lugar, a loja do antiquário que Telmo/personagem vai visitar.
A obra é conhecida. Por entre outros filósofos, destacam-se, ao centro, Platão e Aristóteles, um apontando o céu, outro mostrando os dedos virados para a terra. Afirma André Benzimra, que “o olhar do judaísmo é o culto de Elohim, o Ser criador. Distinto de El Elyon, que «olha» para o alto, em direcção ao Ein-Soph, o olhar de Elohim volta-se para baixo, para o que se afasta do Princípio supremo, para aquilo que vai ser criado”. A atitude judaica. Mas a dupla e oposta orientação tem sido apontada como representando ideias antagónicas. Por uma sequência muito bem encadeada de pares de polaridades, Telmo vai desenvolver uma outra e superior ideia:
«O que ali me aparecia era o símbolo do perfeito entendimento entre os dois filósofos. Eles conduziam e projectavam na nossa direcção a mesma energia urânica […]»
O narrador diz que «não ouvíamos o que diziam» não porque «nada diziam», mas porque «nada diziam que se ouvisse cá em baixo», o que pressupõe que algo diziam que fora do quadro não era possível escutar. É também quando o quadro já não se encontra presente na loja do antiquário, que se revela: «Durante um instante, a Imagem acendeu-se cheia de cor e de luz diante de mim», o que mostra, ou antecipa, o que pretendemos mostrar.
Num outro texto deste autor, intitulado “Platão e Aristóteles ou o Mesmo e o Outro”, Telmo declara que «a oposição que se diz existir expressa nos textos de Aristóteles não é entre os dois filósofos, mas entre platónicos e aristotélicos», os discípulos. Na essência, não há separação: «Ambos dizem o mesmo. Aristóteles tem em vista o homem natural. Platão o homem sobrenatural ou nascido segunda vez». O iniciado. Para Telmo, a chave é a iniciação.
Voltando ao conto objecto do nosso estudo, “No Hades”, Tomé Natanael, personagem do conto, é apresentado como «um dos discípulos actuais de Hermes». Se ele é um discípulo de Hermes, haverá uma loja oculta aos profanos. Oculta, e como tal não referida, mas com um lado visível: a loja “aberta”, como ali se diz. Nomeada e visitada.
Tal como o fresco de Rafael, “A Escola de Atenas”, apenas reflecte o mundo onde pensamos a três dimensões ou assim o percebemos: «A sensação de que têm três dimensões e não duas se deve a estares tu também reflectido nele».
Assim, Platão e Aristóteles da reprodução do fresco de Rafael só aparentemente pertencem a um mundo a duas dimensões, isso decorre de os vermos de fora. Logo, tudo é o mesmo. Ou um. Jogo de luz e sombra, de aparência e realidade.
O diálogo neste conto entre o autor/narrador/Telmo com a “personagem” Tomé Natanael é o diálogo de Tomé Natanael consigo mesmo, isto é: de Telmo com Telmo. O autor/narrador/ escritor/António Telmo (porque todos se confundem), procura Tomé Natanael na sua “loja aberta” encontrando-o a polir uma lente, objecto não casual nem inocente, pois o que se pretende mostrar é que é tudo uma questão de ponto de vista ou de incidência e de refracção da luz.
Tomé Natanael encoraja o visitante a olhar a cena do quadro sem focar. Até ver a realidade como um tapete persa. Ou de Arraiolos. A estrutura profunda.
O conto é um finíssimo, hábil e notável jogo de realidade e sonho, visão e ilusão, mundo a duas e a três dimensões, luz e sombra, visão ao perto e ao longe, presença e ausência, eu e eu/outro… Cruzamento e intersecção de mundos onde é possível «Platão nos entregar o seu Timeu ou Aristóteles as suas Categorias. Estou-me a ver a levá-los para casa, a folheá-los na minha secretária.» Categorias sobre as quais dirá Tomé Natanael, o antiquário:
“Como se trata de um filósofo grego, a ninguém ocorre interpretá-las pela kabbalah que é, como se sabe, a tradição sófica hebraica». No entanto, numa dimensão oculta, essa correspondência é perfeita, como no conto eloquentemente se explica.
As correspondências são praticamente a estrutura deste conto e da sua obra, ponte entre o visível e o invisível. Uma Misteriosofia. Platão representa o compasso ou o céu, Aristóteles o esquadro e a terra. Símbolos iniciáticos. Não se opõem, complementam-se.
Aquilo que pode ser visto como divergência entre as duas religiões, as coisas do céu e as coisas da terra, é, ao invés, “o perfeito entendimento entre os dois filósofos” pelo dedo de Platão que em ponta para cima recebe, e passa o que recebe, à mão com a palma para baixo de Aristóteles, como duas antenas ligadas, aquilo que Telmo refere em vários escritos como a síntese superior das religiões, o que a filosofia portuguesa procura resolver através, também na sua expressão, da razão poética. Na correspondência entre a orientação das duas mãos com «a relação ritual do esquadro e do compasso», temos a superior boda oferecida pela Maçonaria, onde as divergências entre os credos não só se atenuam, mas elevam.
Por isso, quando o narrador afirma que Tomé Natanael tem “loja aberta” não poderemos passar pela expressão sem um especial olhar. Mais tarde, o autor também personagem da diegese, encontrará “a loja fechada”. As lojas simbólicas encerram depois dos trabalhos, à meia-noite como ritualmente é pronunciado, e o trabalho deste aprendiz, pelo menos uma parte dele, que fora a meditação sobre a correspondência entre as Categorias e a árvore da Kabbalah, já estava concluído.
As correspondências, forma perfeita de velar, revelar e desvelar, de descobrir cobrindo e encobrindo, constituem o mais desenvolvido talento sefardita, o disfarce, que ao mesmo tempo, neste processo de espelho que é a correspondência, melhor se reconhece na profunda essência. É o valioso privilégio que o marrano ou sefardita paga, preço bem caro, pois é na separação dos seus eus que melhor pode vir a conhecê-los e uni-los, na já referida síntese superior.
Talvez por essa razão, António Telmo vá usar, para interrogar Tomé Natanael sobre os dois “filósofos altíssimos” e “a prisão das figuras em que os imaginou Rafael”, o modo dórico. A prisão é a visão antagónica de ambos, o mundo plano. Mas na Grécia Antiga, a doutrina do Ethos (ou afectos) assentava na capacidade dos sons de influenciar e modificar a natureza moral do homem, por uma estreita relação com a alma, e os nomes com as coisas. Ora o modo dórico expressa o espírito intermédio, a circunspecção, o que permite superar a ilusão do antagonismo, e é precisamente nessa linha que a resposta lhe vai ser dada, encorajando-o a subir os quatro degraus que conduzem aos dois filósofos para transcender a ilusão do 2 e do 3 e a fixidez das imagens, e poder aceder à vida, ao movimento, às vozes e aos pensamentos inacessíveis.
O número simbólico da Loja Maçónica no seu primeiro grau é o três, que ele é encorajado a transcender subindo os quatro degraus para aceder à quinta dimensão, ou para entrar num mundo paralelo que é aquele em que se encontram as figuras de Rafael, sendo que é o cinco o número do 2º Grau ou do Companheiro, aquele que viaja. Trata-se do grau em que se encontra Tomé Natanael, pois numa próxima visita, o aprendiz encontra a loja fechada por o antiquário ter ido viajar por cinco dias, o número do grau do Companheiro. É após esta viagem do antiquário, o seu outro eu, que Telmo alcança entrar no mundo pintado por Rafael e, depois de subir os degraus, penetra num mundo anteriormente impossível até de almejar.
Na linha do disfarce marrano (a designação mais comum para o sefardita ibérico), onde também se encaixa o nome simbólico dos iniciados, é dito de Tomé Natanael, o antiquário, que “ali em Estremoz é conhecido” por esse nome. Interrogamo-nos acerca do seu nome verdadeiro. Ou o verdadeiro é o simbólico? É o tema central, o poder e o valor da palavra, tão caro ao Cabalista. É quando, pela primeira vez que é confrontado com o nome de António Telmo, através de um cheque que este lhe passa por uma compra de dois candelabros, esses judaicos transmissores de luz, aqueles sobre os quais repousa o Espírito de Deus, que Tomé Natanael se apercebe que os nomes são anagrama um do outro, em espelho.
A escrita de António Telmo é da natureza das obras a que pertence o afresco de Rafael. Olhamo-la dezenas de vezes sem nos apercebermos até que ponto está viva e fala. A três e a cinco dimensões. Um dia, depois de muita contemplação, entra-se nela e percebe-se, é o caso deste conto, como palpita grávido de uma história que já descortinávamos, mas que resplandece apenas quando nela, finalmente, entramos. É aí que podemos travar conhecimento com Tomé Natanael e reencontrar António Telmo. Como este desvenda no conto seguinte, “A Minha História”, ficamos a saber que a partir de um encontro com alguém real, o pintor Délio Vargas, este o informara, para sua estupefacção, pois o antiquário nascera da sua imaginação, que o conhecia, e trocara com ele longas cartas em que o antiquário dissertava sobre Cabala. Era também casado com uma professora chamada Antónia, como a esposa de Telmo.
Tudo isto poderia ter ficado no limbo do género ambíguo que em Telmo flutua entre a ficção poética, a biografia e o ensaio, se eu própria não tivesse vindo a conhecer o pintor Délio e ouvido da sua boca o testemunho sobre a existência do antiquário de Estremoz estudioso da Cabala e companheiro de entrada em mundos. Seu nome: Rafael! O meu cérebro racional calcula que Tomé Natanael e António Telmo não sejam os únicos a conseguir entrar em outras dimensões. Também Délio Vargas, o talentoso artista, o consegue. Em vós, caros companheiros deste momento, sei que ficará uma dúvida: se não serei eu própria cúmplice desta trama misteriosa, inventando a existência do pintor. Acontece que tenho ao meu lado quem tenha assistido e ouvido o testemunho. Para além disso, poderão em qualquer altura dirigir-se a Lisboa e provocar um encontro com o pintor Délio e quem sabe?, cá organizar um congresso? Em Estremoz debalde procurarão pelo antiquário, a não ser que tenham mais sorte do que eu. Talvez pelo processo de Telmo e Tomé Natanael, eventualmente também do próprio Délio, possam encontrar a Loja. Até lá poderão ir treinando o método ensinado a Telmo pelo antiquário. Olhar através do dedo indicador apontando o céu como o de Platão, não focando o dedo, mas para longe até verem a imagem em duplicado e olhando pelo intervalo. Ou “qualquer coisa de intermédio”, como escreve Mário de Sá Carneiro na passagem do poema que li ao início. Tal como o modo de interrogação dórico, espírito intermédio. Foi assim que Telmo finalmente entrou no cenário da Escola de Atenas num dia em que a reprodução já tinha sido retirada, e apesar de tudo ali não só a viu, como nela entrou. Recomendo, a quem não conheça, a leitura destes Contos Secretos, parte da Obra Completa do filósofo, felizmente editada. Uma deslumbrante forma de entrar no pensamento marrano de um escritor e pensador superior.
Maio de 2023
VOZ PASSIVA. 129
17-05-2023 11:31Na foto, da esquerda para a direita do leitor: Paulo Brandão, Pedro Martins, Deolinda Fernandes e José Faro, durante a sessão de lançamento de A Glória da Invenção, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, no passado dia 2 de Maio, na ESMTC - Escola de Medicina Tradicional Chinesa, em Lisboa
Apresentação de A Glória da Invenção – Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro
José Faro
Boa tarde
Cumprimento os autores do livro hoje apresentado e todos os presentes.
Aos autores confesso que fiquei sensibilizado com o convite para ser o apresentador – seguramente que é do seu conhecimento a minha profunda impreparação para o efeito, o que demonstra o seu corajoso à vontade perante o paradoxo e a sua estrutural segurança perante o risco, o imprevisível e imponderável. O livro que geraram, em qualquer caso, saberá apresentar-se e defender-se a si mesmo, saberá encontrar o seu próprio caminho.
Saúdo ainda os presentes pelo elevado nível da sua noção de permanência do objeto e pelo elevado grau de inefabilidade abstrata de alguns dos seus objetos de consciência. Eu explico. Piaget falava deste género de coisas. Começámos todos, no berço, com o pânico da nossa mãe ter deixado de existir de cada vez que desaparecia, por exemplo, por ter saído da sala. Com o tempo descobrimos que ela, afinal, era permanente. Por extensão, a pouco e pouco, vimos a aceitar que todas as coisas existem persistentemente mesmo quando não as percecionamos. Muito mais tarde, parte de nós aplica esse axioma da permanência ontológica das coisas a objetos que nunca passaram pela perceção sensorial. São elementos intra-psíquicos, axiomas, crenças, intuições que nos habitam. Alguns são autênticas pedras de fecho estabilizando as cúpulas dos nossos processos interiores. Inefáveis, bem longe, lá no alto, mas tão concretos, tão sólidos, tão permanentes, muitas vezes tão indispensáveis para que a vida e o mundo nos mostrem sentido.
Fernando Pessoa escreveu algures “O mito, esse nada que é tudo”. Eu acho que filosofias que tentam verdadeiramente penetrar o desconhecido que ainda parece nada, como a de António Telmo, se enquadram entre os nadas candidatos a tudo. E, por isso, considero admirável estarmos aqui reunidos em torno de nada, um nada que sentimos como sendo ontologicamente concreto e talvez mais permanente que o resto. Na verdade, reunidos na mítica soleira de um pórtico antigo e invisível que, como se nada fosse, se abre escancaradamente para o tudo.
Voltando ao elemento terra. Ao livro. Os autores colocam uma escrita maravilhosa ao serviço duma reflexão informada, simultaneamente abrangente e do mais exigente detalhe. Dez sonetos da Risoleta Pinto Pedro mapeiam elusivamente tesouros escondidos no mundo de Telmo e desenham numa neblina esboços de seres que o habitam. São sonetos que sabem a soneto: filosoficamente densos, com finais afinados em clave conclusiva, mesmo quando rematados em acordes de espanto ou em semibreves perguntadas. Perguntamos nós se foram construídos a propósito de Telmo ou se emanaram da mesma fonte que dessedentou o filósofo.
Na distância, Aquilino Ribeiro escuta, com deleite, o ranger ritmado da pena de Pedro Martins. A riqueza do vocabulário é posta ao serviço duma semântica fina, apta a ser expressão correta dos dados resultantes da pesquisa histórico-filosófica prévia, que tece e fundamenta uma rede interativa de conceitos e significados.
Lembrei-me de que tenho grande consideração e amizade pelo casal autor deste livro, que hoje veio à luz, mas que traz luz sobre muita coisa. Tenho de ser cuidadosamente objetivo, até por se tratar de um livro que, como vimos, e de um certo ponto de vista, tem como marca de água, o nada. O tal do Fernando Pessoa.
O trabalho de recolha e revelação (como nas fotografias antigas), anos a fio, de documentos da obra de António Telmo, ou dos muitos a ele referentes é, nos factos, uma tarefa pesada como o chumbo, que ensombra os que ousam a investigação histórica rigorosa. Mas, tanto quanto se sabe, Pedro Martins e Risoleta Pedro (reparem: quase faz capicua) deitaram juntos mãos a essa obra (reparem: música! Piano a quatro mãos) e transformam esse plúmbeo e amalgamado início em reluzentes pepitas editoriais como a que hoje é lançada ao mundo. É por isso que, a propósito deles me tenho lembrado ultimamente de Nicolas e Pernelle, famoso casal de alquimistas da história da Alquimia. É que, disse-me uma vez um alquimista, no laboratório só há uma coisa melhor do que trabalhar bem sozinho: é trabalhar bem acompanhado.
A composição em dez ensaios, sobre temas distintos ainda que relacionáveis torna a leitura do livro particularmente acolhedora. Dessa pluralidade não resulta a sensação de ser basculado de supetão um tema para outro sem relação na passagem de ensaio para ensaio. Cada ensaio é completo e chega-se ao fim com o prazer de ter concluído um caminho. Mas, mal se começa a percorrer o ensaio seguinte, logo se descobre-se que é uma continuação do caminho anterior. O resultado, para mim, foi uma leitura muito absorvente. “Bem, é só mais um ensaiozinho”, e assim sucessivamente. E parar antes do fim do livro? Claro que o momento presente me esperava. Mas o facto permanece – foi duma assentada e com sublinhados.
O que é apresentado é muito interessante. Na verdade António Telmo é um ponto focal duma vasta rede de simbiose teórica entre personalidades estruturalmente cúmplices no desvendamento filosófico do mundo mas, ao mesmo tempo, com individualidades muito marcadas. Como os designar coletivamente? Filosofia Portuguesa? Filosofia Marrana? Paracletismo? Filosofia Operativa? Ignoro e os especialistas que resolvam isso. O facto é que é praticamente impossível compreender qualquer deles sem falar muito dos outros, quer nas concordâncias quer nas discordâncias, quer sejam síncronos ou assíncronos. O facto é que eles se reconheceram uns aos outros e se reconheceram melhor a si mesmos no conhecimento dos seus pares na aventura filosófica comum.
Por essa razão, ao longo dos seus ensaios, Pedro Martins faz o gesto olímpico e ancestral do mercante de feira que desdobra uma manta para mostrar o esplendor da vista de conjunto do estampado ou do bordado. Neste caso, numa visão abrangente de águia, o rendilhado incrível com que os bilros da história teceram a história dos que, por estes lados, usaram o pensamento filosófico inspirado como ferramenta para transformar o pensador, trabalharam numa síntese espiritualmente operacional dos aspetos mais relevantes, desse ponto de vista, das religiões abraâmicas, e procuraram, nos jogos de luz e sombra da história do nosso povo, os contornos duma alma nacional contendo os segredos do melhor do nosso passado e o mapa do nosso destino comum. A visão de conjunto, a pluralidade desvendada das articulações teóricas, históricas e pessoais, a fundamentação documental exaustiva levam-me, naturalmente a recomendar a sua leitura.
E agora, sendo eu alguém que, do tal ponto de vista acima apresentado, esteve a falar de nada, ou a falar do nada, é de considerar que já falei o suficiente.
Mas, a título de post scriptum: cruzei-me uma única vez com António Telmo e tudo entre nós se resumiu a uma troca de olhares. Mas que olhar tão doce, tão dirigido e tão atento. Que olhar tão de menino em alguém que, evidentemente, já era menino há tanto, tanto tempo. Ainda hoje recordo esse olhar que, há 25 anos atrás, durou um segundo, se tanto.
A minha admiração e reconhecimento para os autores, cordiais saudações para todos os presentes.
VOZ PASSIVA. 128
02-05-2023 00:00António Telmo, o sentido do Sul e um acontecimento recente em Portugal
Eduardo Aroso
No dia em que se cumpre a data de nascimento de António Telmo (2/5/1927 – 21/8/2010) e em que é apresentada a obra «A Glória da Invenção» de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, acabo de reler uma das mais significativas páginas de História Secreta de Portugal de António Telmo, capítulo II, publicada em 1977. «Tudo indica que, sendo o Sul, como vimos [o autor descreve nas linhas anteriores o percurso pelos 20 medalhões dos claustros dos Jerónimos, começando pelo lado ocidental e acabando no sul, justificando a sua razão de ser] o termo da «viagem» no Claustro, esse ponto cardinal constituía, para os Templários e seus continuadores, a enteléquia do movimento. O portal do Mosteiro da Batalha e o da Igreja do Convento de Cristo em Tomar estão, como o de Santa Maria de Belém, voltados para o sul. (…) Fernando Pessoa também sabe que “o Sul sidério esplende sobre as naus da iniciação”. Entre o X [1º medalhão], * que está no início, e o Sol,** que se encontra no fim [20º medalhão], há uma relação da potência ao acto. Que espécie de potência e que espécie de acto?».
Há aqui três palavras-chave, SUL, MOVIMENTO e ACTO. Tudo leva a crer que esta tríade constitua a mesma relação para algo, e na qual António Telmo se interroga. No início da obra em questão, o filósofo alude a um ponto de partida interessante, ou seja, o facto da imagem da Santa Maria de Belém estar voltada para sul, pormenor porventura simbólico, pois o Mosteiro dos Jerónimos foi erguido sobre uma velha ermida, consagrada a Santa Maria, mandada construir pelo Infante D. Henrique.
No recente 25 de Abril deu-se um acontecimento entre nós, que, quer se queira ou não, envolveu o sul (o promissor sul carregado de História que nós sabemos, falando a Língua Camões). O que todos viram também sabemos: cenários meramente políticos. O que talvez muito poucos vissem foi a oportunidade perdida desse movimento para o sul (neste caso o Brasil), pela presença do seu presidente. Qualquer presidente é uma representação mais ou menos efémera de algo maior na história das nações, não deixando de ser símbolo desse trânsito no tempo. No meio da mais rasteira política da Assembleia da República, foi a oportunidade perdida da Língua Portuguesa - «quem não vê bem uma palavra, não vê bem uma alma» (F. Pessoa) – mas quiçá também tudo o que de oculto carrega esse movimento para sul.
O entendimento do que representa a nossa tradição no caminho do sul, decerto que não aconteceu. Ou algo se vai passando de menos visível. Todavia, o movimento continua até que Portugal se cumpra e que a pátria do Cruzeiro do Sul saiba quem é na verdade.
* A letra X, primeira letra grega do nome grego de Cristo.
** Sol símbolo de Cristo.
Maio, 2023
INÉDITOS. 106
02-05-2023 00:00O presente escrito corresponde à parte inicial, nunca desenvolvida ou concluída, de um livro que António Telmo tencionaria intitular de O livro das minhas invenções, como o próprio refere no texto. Apesar da sua natureza brevíssima e fragmentária, reveste-se da maior importância para a compreensão da obra de Telmo. Nele, o filósofo da razão poética introduz-nos a noção de invenção, a qual, tomada na pureza etimológica da origem, nos remete para a dimensão criacionista de um pensamento que sempre se propôs pensar o irracional: a razão poética, justamente por o ser, é a razão que cria. Mas o sentido do novo tanto vem da e xperiência que conhece o mistério, e da expressão que, pensando, a re-vela, como da hermenêutica que a re-conhece. Nisto reside a glória da sua invenção.
O livro das minhas invenções[1]
A palavra invenção, como muitas outras palavras, sofreu um desvio do seu étimo pelo qual deixou de ser compreendida. E foi isto que levou muitos a dizerem, por exemplo, que os portugueses não inventaram o Brasil, mas sim o descobriram.
Invenção é o que vem (de venis) e o que sopra (ventum), é o que nos ocorre subitamente no espírito e nos faz ver o que não víamos e o que os outros não viam. Sublinhamos aquilo que explica o significado corrente da palavra.
Este é o livro das minhas invenções. Refiro-as por ordem fenomenológica:
1.º - O Claustro dos Jerónimos e o 4.º grau do Regime Escossez Rectificado.
2.º - A explicação dos fonemas da língua portuguesa pela árvore cabalista das sephiras.
3.º - Camões como discípulo de Zoroastro.
4.º - As dez categorias de Aristóteles explicadas pelas dez emanações divinas, tais como os cabalistas as representam na Árvore das Sephiras.
5.º - A interpretação do episódio do Adamastor a partir da bizarra etimologia do nome do Titan: Adão Astral.
E ainda a demonstração de que nele viu Vasco da Gama espelhada a sua natureza terrível. Um e o outro são o mesmo: Téthis é-lhes comum.
6.º - O Velho do Restelo como o Velho Testamento em contraposição com os desvendadores do futuro. Uma sabedoria respeitável.
Claro que tudo isto é acompanhado de pequenas descobertas ou, por outras palavras, são uma nova luz que mostra outro Aristóteles, outro Camões, outra Gramática Portuguesa, outro Portugal.
7.º - O Monte abiegno como Teorema de Tales ou a Caverna Platónica.
(8.º - O nome de Aristóteles na raiz do seu pensamento.)
Como se vê, há uma constante nas sete bizarras interpretações, o serem todas de desvendamento do que está à vista e que por estar à vista ninguém vê.
Vou considerar cada uma delas pela ordem em que foram apresentadas.
(...)
António Telmo
EDITORIAL. 29
02-05-2023 00:00Tempo de (re)invenção
No dia em que se completam 96 anos sobre o nascimento de António Telmo, sai a lume o terceiro título da Colecção Thomé Nathanael – Estudos sobre António Telmo, com a proverbial chancela da editora Zéfiro.
A Glória da Invenção – Uma aproximação ao pensamento iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, põe singularmente em diálogo o ensaio e a poesia como modos de abordagem à obra do filósofo e busca novas e surpreendentes perspectivas para um corpus original, fecundo e sumamente avesso às baias de um qualquer sistema.
Nestes dias em que o anti-semitismo surdamente latente na vida cultural portuguesa teve, felizmente, de arrostar com as palavras de revelação proferidas por Chico Buarque ao receber o Prémio Camões, a via cabalística de Telmo, que o conduz em espiral do marranismo ao maçonismo, revela-se, uma vez mais, medularmente portuguesa, como bem sabe quem não desconhece que o puro-sangue lusitano é somente assunto para certas coudelarias.
Em Junho próximo, António Telmo (ou o seu anagramático alter ego Thomé Nathanael) estará em foco, pela mão de Risoleta C. Pinto Pedro, na Conferência Anual do Selma Stern Centre for Jewish Studies Berlim-Brandenburg da Freie Universität Berlin, este ano dedicada ao tema “Global Jewish Literatures in Portuguese – Transnational Networks, Histoires and Cultures”. Depois da tradução francesa de Filosofia e Kabbalah, o horizonte volta a alargar-se. É-nos grato constar que a reinvenção da filosofia portuguesa vai a par da internacionalização de António Telmo.
CORRESPONDÊNCIA. 61
30-04-2023 17:04Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 6 de Maio de 1977
Le 6 Mai 77
Mon cher ami António Telmo:
En espérant que vous n’êtes pas trop déçu, je dois vous dire que je devrais changer mon plan en ce qui concerne mon entrée au Portugal via Badajoz. Il y avait plusieurs raisons , entre outre « um cansaço » censé par le travail et des « affections locales ».
J’arriverai donc le jeudi 26, à Lisbonne avec un avion de TAP à 12.20, venant de Madrid. Carlos Silva m’a écrit qu’il veut venir me chercher ; j’écrirai avec le même courrier à Francisco Sottomayor et à Carlos Silva l’heure de mon arrivée. Je vais prier à Francisco Sottomayor de me faire réserver une chambre dans l’Hôtel Americano pour la première nuit. Il serait bon si nous pouvions être ensemble le même soir une première fois. Mais si vous n’êtes pas à Lisbonne, cela sera reparable, parce que je voudrais aller le vendredi à Borba et rester là, ou avoir un temps [?], avec vous ou près de vous pendant le Pentecôte. Cela vous irait-il ?
Ce qui concerne la conférence : peut-être, pour éviter toute limitation politique, dans le « Grémio Literário » ? – Au lieu de conférence, je préférerais « causerie ». – Cela n’exclurait pas qu’on se rencontre dans les autres cercles aussi, [palavra ilegível] après, dans la deuxième semaine après Pentecôte. Parce que la date, je pense qu’il serait mieux de la fixer dans la première semaine après Pentecôte, par ex. le 2 ou 3 juin (mais aussi à tel autre jour, selon es meilleurs conditions, les habitudes etc…). En ce cas, celui ou ceux dont on jugera qu’ils s’intéressent vraiment pour un ? travail personnel, pourrions [sic] participer à nos réunions la deuxième semaine.
Puisque j’estime que vous organise ces choses, je vous prie de les dire à nos deux amis Francisco S. et Carlos S.
Pour le temps où je reste à Lisbonne, je suis invité de demeurer chez Carlos Silva.
Paris et son « air » m’a fait beaucoup de « mal » ces dernières années et surtout cet hiver : je vais donc chercher un endroit alure [?] et plus aéré pour quelques jours, après avoir terminé et tapé mon article sur Pessoa – que j’écrivais quatre fois, et que je pourrai vous montrer. Donc, ne m’écrivez plus à Paris : je téléphonerai un soir à Francisco S. pour savoir comment les choses vont. –
Votre lettre, et ce que vous me dite de Fr. S., m’a beaucoup ému. Mais n’attendez trop, dans ce sens, que le commencement nécessite avant tout, une tâche difficile qui consiste à désapprendre, et on ne peut pas savoir, d’abord, pourquoi au moins pas tout-à-fait. Mais je viens avec tout « ce qui m’est possible » donner. – Je ne sais pas bien interpréter l’acte de Qu. L. [?] – une lettre de lui, autrefois, m’a semblé très intelligente, concise, consciente. Alors ? Il vous l’a dit lui-même ? – Mais j’espère d’être bientôt chez vous. Avec toute mon amitié
Max H.
VOZ PASSIVA. 127
30-04-2023 16:46O meu encontro com António Telmo
Francisco Soares
Triplo lançamento dos livros O Bateleur, de António Telmo, Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa, de António Quadros, e Eleonor na Serra de Pascoaes, de António Cândido Franco, na Galeria Nasoni, em Lisboa, no dia 10 de Dezembro de 1992, com a chancela da editora Átrio, de José Manuel Capêlo. Da esquerda para a direita da foto, estão António Cândido Franco, Afonso Botelho (que apresentou O Bateleur), António Telmo, Artur Anselmo (que apresentou Estruturas Simbólicas do Imaginário na Literatura Portuguesa), Francisco Soares (que apresentou Eleonor na Serra de Pascoaes) e o editor José Manuel Capêlo.
O meu encontro com António Telmo,
começou por uma indicação de um amigo, o Pedro Isidoro, relativa aos Teoremas de teatro. O livro, como se diz no Brasil, impactou-me! Até hoje. Como os bois e algum Nietzche, fiquei a ruminar: em silêncio. Mas não olhava para um palácio, olhava para um templo relativamente pequeno, entre a penumbra a proteger do excesso de luz, talvez um pequeno templo rural.
Depois li a História secreta de Portugal, livro com o qual mais me debati, encontrando clareiras, divergências, a par de afinidades até de pesquisa. E ficou tudo no ar, ainda hoje, falta-me tempo para respirar, o livro está ao lado do António Quadros e vocês calculam de qual título, sobretudo o primeiro volume.
Sigamos. Tendo a fugir de pessoas conhecidas e fiz o mesmo com António Telmo. Aliás, fugir não é o termo, nem ele nunca me procurou nem me pôs em situação de ter de fugir. Isso vocês conhecem, sabem que não era possível nem faria sentido. Evito, evito por mim, por timidez, para dialogar apenas com as obras, porque as pessoas, ah as pessoas cada uma são vários mundos e eu nunca sei muito bem qual, dos meus, há de encontrá-las e temo chocar-me, não ter as atitudes e falas adequadas. Além disso, a minha sensibilidade me torna muito frágil e turva-me, por vezes. A menos que esteja disposto a lutar, outra forma de amor que, no entanto, mal envolvida e sem se perceber, gera mortes. Aproveitando que falamos de um português e deste português concreto, ocorreu- me até pensar que D. Afonso Henriques amou a mãe e, se a prendeu, foi porque momentaneamente confundiu amor e posse.
Retornemos. O António Telmo um dia apareceu na livraria Universo, num dos eventos promovidos pelo João Carlos Raposo Nunes e aos quais acorria sempre com boas expetativas, nunca saindo fraudado. Pareceu-me ter um corpo estreito, magro mesmo, não muito alto e estar em torno dele aquele pequeno templo em que a penumbra não só protege como esclarece o excesso de luz. Eu vou também falar-vos, porém, de outro Telmo. Não sei se nesse evento, creio que em um posterior, ele disse-me que gostava de me ver, achava-se um bom português, dos antigos – e eu não percebia qual o ponto irónico onde ele queria que eu chegasse. Com aquele sorriso típico, de jogador de bilhar e de sábio discreto, onde a ironia era um dos rostos da bondade, ele me ajudou: “sempre que o vejo vem com uma nova mulher. E bonita!”. Rimo-nos os dois. Eu não me ri do elogio ao macho, ri- me da agilidade percetiva e do recado que vinha nas palavras e da amizade da achega. “E bonita” ele disse para ser também simpático à mulher que no momento me acompanhava. Mais tarde falou-me, em Estremoz, do José Manuel Capelo e percebi as virtudes que nele apreciava para além dos defeitos, apesar dos defeitos, que todos temos mas em pessoas como o Capelo são sempre mais visíveis, mais evidentes.
Outro dia, em Setúbal também e por ocasião de outro evento na Universo, fez-me umas breves perguntas sobre a Fábula da captação do elemento desvairado, uma pagela que o mesmo Capelo me publicou e talvez seja o único livro interessante que dei a ver, até pelo seu barroco, pela rudeza com que lá pus o começo e o fim das reflexões. Aquilo era para mim uma teoria do conhecimento e a parceira teoria política, pois o conhecimento e a política, tanto quanto o rito e a lei, não vivem separados. Um conhecimento etimologicamente etimológico.
O António Telmo, começando por muito me elogiar, perguntou-me do que resultara o livro. Eu fui-lhe respondendo, com metafísicas palavras pelo meio, o que tornava a resposta nublada em excesso. Ele sorria com aquele sorriso irónico e benévolo de parceiro mais velho. Logo em seguida, precisava a interrogação: mas eu perguntava-lhe era mesmo como foi que o escreveu, em que momento, estava sentado, em pé?, o que tinha feito nesse dia ou nesses dias, quando é que lhe ocorreram as primeiras linhas? E deu-me duas possibilidades. A segunda – os críticos literários dirão que era a da inspiração – ele a narrou com pormenores muito concretos: era a exata narração do que sucedera. Surpreendi-me. Como é que ele podia saber disso tão bem? Conseguindo repor-me e voltar ao diálogo, contei-lhe o que a memória guardou desse breve processo, com os pormenores que me pareceram momentaneamente pertinentes (lembro-me de que isso incluía a lua, a noite, essa noite específica e física, ou ambiental). Ele recolheu o rosto, sério, e murmurou: pois, era o que eu imaginava. Era mesmo. Depois ainda me perguntou: e o Francisco não pensa mexer nesse livro? Disse-lhe que não, que por insegurança quanto aos resultados, era melhor não mexer. O que ficou no ar, ou no silêncio e no olhar dele, acho que foi um percurso que eu me recusei, sem bem saber, a palmilhar. Um dia, um discípulo do António Telmo, que vi ocasionalmente em Vila Viçosa, disse-me, amigável, a mão sobre o ombro sem que isso me parecesse paternal (pelo contrário): “o Francisco também já é nosso”. Por um dos contextos da conversa, pensei que ele falasse dos alentejanos. Ele acrescentou: “não é propriamente nosso irmão, mas um parente muito próximo, digamos, um primo chegado.” Depois cada um seguiu o seu rumo.
Não vos venho, portanto, falar do sábio, não tenho competência para tanto. Comecei, confesso, a interessar-me pela pessoa. A pessoa dele era, para mim, simultaneamente, um mais velho e um lutador com sentido do jogo que é a luta. Vocês lembram-se da Natália Correia? O José Manuel Capelo falou-me da relação dele com ela por termos de domínio: cada um tentaria dominar o outro, ser preponderante sobre o outro e essa luta é que lhes dava gozo. Não se passava propriamente isso entre mim e o Telmo, passava-se quase o oposto: eu fugia (não é o termo certo, mas ainda não achei o trunfo), se eu fugisse ele acariciava, elogiava, chamava, dizia coisas interessantes, eu percebia o ardil do jogador e atirava-lhe perguntas que me inquietavam, ele percebia o ardil do tímido e respondia que essas perguntas requeriam (digo nos meus termos) uma aprendizagem e um convívio diferentes. E silenciávamos. Ele encontrou um ponto de contacto entre nós, a partir da geografia. Eu tinha ido morar muito próximo de Evoramonte e, a propósito disso e do facto de ter eu também ascendentes judaicos, ou hebreus, ou semitas, falou-me brevemente da origem possível daquela pequena vila, talvez um núcleo de marranos. Falou-me do ferreiro, que por acaso conheci e com quem conversei um pouco mais depois desta conversa. Homem de suas sombras e discrições, falando pouco e deixando no silêncio os recados. Mas a conversa vinha dar a um padeiro e, por ele, à arte de fazer o pão. Disse-me que me queria apresentar o sr. Inácio Ballesteros (acho que era Inácio). Pessoa doutrinada, cortês, discreta, com o sentido espiritual do pão. Conheci-o e gostei muito de o conhecer, embora tivesse convivido pouco, falado pouquíssimas vezes com ele. Curiosamente, as poucas vezes em que nos vimos cumprimentávamo-nos primeiro com os olhos, por um olhar quase cúmplice, familiar também. Depois o resto eram palavras breves.
As minhas conversas com o António Telmo andavam também por aí: pessoas concretas, comentários – nunca maldosos, mas por vezes maliciosos e sempre deixando reticências que me levavam a pensar, não nos enredos e nas intrigas, mas nas pessoas e na simbologia possível dos acontecimentos em que se manifestavam. Isso, porém, eu já pensava sozinho, quero dizer em silêncio, mas parecia-me que ele se apercebia e que me deixava ficar assim. Raramente esperto (quero dizer: esperto como raros o são), perspicaz, aquele filósofo-jogador – amigo da sabedoria, conhecedor do desconhecimento, ou do acaso caso prefiram. Talvez eu lhe tenha pedido para me falar mais dele como jogador. Eu sempre apreciei pessoas para quem a sabedoria nunca está separada da vivência. É como a hipótese e a experiência na metodologia científica de Popper: anda-se entre as duas constantemente aprendendo. Se quisermos aprofundar, é como o sujeito e o objeto do conhecimento na filosofia de Leonardo Coimbra: interpenetram-se, influenciam-se e conhecem-se melhor por isso mesmo. Disse-lhe que apreciava nele a ligação do sábio e da vida, a vivência do sábio nas atividades comezinhas, aparentemente insignificantes, ou nas distrações para, aparentemente, matar o tempo. Nem nos apercebemos da importância desta frase que agora me veio aos lábios e aos dedos: matar o tempo.
Bom contador, como demonstrou no Bateleur publicado pelo Capelo, sempre falando com pausa e sublinhando com o tal sorriso irónico mas amável, em tom baixo ou moderado me contava curtos episódios locais, com traços mínimos retratando personagens. Como quando lançava chistes, eram contações que deixavam no ar qualquer coisa. Mesmo a simples nuvem que passa deixa – quantas vezes? Inumeráveis (e não pela quantidade) – sim, deixa no ar qualquer coisa. É como o Espírito. Será que ele me falou disso também? Toca e só depois de nos tocar e ter ido nos apercebemos (bruscamente?) de que passou por nós algo não definível.
Nos curtíssimos contos, alertava-me para a perspicácia, o bom jogador, o bom caçador, não têm só pontaria no gesto, mas, antes e durante, pontaria na perceção do ‘inimigo’, do ‘rival’, do ‘outro’, da ‘caça’ ou do ‘parceiro’, da ‘manha’ (falou- me da etimologia de ‘manha’ e de ‘mania’), da simulação. Será que isso acontece nas touradas? Por acaso foi comentando as touradas que me falaram pela primeira vez no António Telmo. E depois ouvi-o falar nas touradas, ao vivo recolhi essa tradição de que elas ocorrem somente em países onde há tremores de terra. Não quer dizer que há sempre touradas em países onde a terra treme, mas que sempre treme a terra nos países onde se fazem, por tradição, touradas. Como é meu hábito, joguei-lhe alguns exemplos opostos. Ele explicou-me pacientemente que eram episódicos e impostas as touradas lá politicamente, a partir de fora. Eram, de facto, eu só lhe joguei uma simulação escorregadia como todo o jogador costuma fazer para testar o adversário. Não foi nunca falta de respeito, mas sentido de que a aprendizagem é também desafio, incluindo o desafio do aprendiz ao mestre. Porém, não me considerava um aprendiz, apenas um companheiro muito novo, um miúdo, perante um mais velho bastante sábio, que eu nunca venceria fosse qual fosse o jogo – o que mais ainda me estimulava.
Fomos jogando assim na vida, esporadicamente pois era raro nos vermos. Essa brincadeira de simulações e de avanços e de recuos (esses os meus) era a nossa brincadeira. Entretanto, ele desapareceu. Alguns tempos antes, eu dizia-lhe que o sentia (depois de uma crise que teve) como se renovado, o olhar mais vivo, mais brilhante, sentia-se uma energia rejuvenescida, falei-lhe nisso acompanhando o seu passo já pouco ágil e menos vigoroso do que o do caçador. Caminhávamos naquele extenso parque de automóveis naquela tarde sem carros, em frente à Câmara de Estremoz. Havia aquela bela Igreja do lado oposto à Câmara, com a porta grande voltada para Évora-Monte (mantenham a maiúscula do meio e o hífen, por favor), e dois cafés-restaurantes onde habitualmente nos encontrávamos, à direita do parque quem viesse da Igreja e de Évora, à esquerda quem viesse de Espanha e da Câmara Municipal. Mas isto não seria simbólico para mim. Sentia só, fisicamente, um excesso de luz e pensei que fosse de estar o parque deserto e brilhar um sol esplendoroso num céu limpo.
Sabem o que ele me respondeu? Fecho com isso o meu reles depoimento, aliás de jogador eterno aprendiz porque nunca cheguei ao fim de nenhum jogo. Ele disse: “sabe, Francisco, o corpo vai decaindo, conforme a alma se torna mais ágil.” E partiu. No sentido estrito em que nunca mais o vi. Para um bom jogador, o corpo é inseparável da alma, pelo que deduzo que ela o transporta consigo e não há razão para entulharmos os ossos num cemitério.
UNIVERSO TÉLMICO. 77
16-04-2023 12:15Da flórida flama: o figadal, a feeria, a construção do templo
Paulo Jorge Brito e Abreu
«O homem é um actor de Deus no palco do Universo.»
Jacob Levy Moreno
( dedico o meu labor à Cultura Duriense Transmontana do século XXI )
Qual «Homo Viator», enceto, agora, uma viagem. Tenho, na minha banca de trabalho, o «Sonho causado pelo voo de uma abelha ao redor de uma romã um segundo antes de acordar», por um homem que assina como Ferrer. E dele nós trataremos em crítica acribia. Que é dado a lume, o livrinho, por a Carava Ibérica. E em primo, primo lugar, dous pontos, agora, a salientar: o título do opúsculo é o título de um trabalho do Salvador Dalí ( Figueres, Catalunha, 11/ 05/ 1904 – Figueres, 23/ 01/ 1989 ), «no qual quadro surge uma atmosfera de fertilidade e sensualidade». Salvador Dalí, o Génio absoluto, um dos nomes mais altos da cultura espanhola. E foco sagrado e ponto segundo: é que abre, o livrinho, com um poema dedicado a Voltaire ( Paris, 21/ 11/ 1694 – Paris, 30/ 05/ 1778 ), a Voltaire, jucundamente, o «gigante de Ferney». A quem trata, Ferrer, por «mon cher frère». Me seja lícita, aqui, uma nótula, ou nota, autobiográfica: foi, Voltaire, o primeiro Filósofo que eu ledamente li. O iluminista está, para o século XVIII, como o está, Victor Hugo ( Besançon, 26/ 02/ 1802 – Paris, 22/ 05/ 1885 ), para o século XIX. Estrénua figura de Escritor profissional, Voltaire acamaradava com gigantes como Catarina a Grande ( Stettin, Prússia, 02/ 05/ 1729 – São Petersburgo, 17/ 11/ 1796 ) e Frederico II, da Prússia ( Berlim, 24/ 01/ 1712 – Potsdam, 17/ 08/ 1786 ). Escreveu, o que é obra, mais de 20. 000 cartas, escreveu, deveras, 2. 000 livros e panfletos. Utilizando, na verve, utilizando a palavra como o projéctil. E eis aqui o escopo dos livres-pensadores: eles «trabalham para dissipar as trevas / extinguir a superstição e o obscurantismo / combater os inimigos da Humanidade.» Aqui eis, na nossa opinião, a santa cruzada da Luz contra as trevas; pois Ferrer, o alumbrado e alteado, ele chicoteia a escuridão com golpes de Luz sacra. Como o fizeram, deveras, José Manuel Anes ( 21/ 06/ 1944 ), Mário Máximo ( 19/ 09/ 1956 ) e António de Macedo ( Lisboa, 05/ 07/ 1931 – Lisboa, 05/ 10/ 2017 ). Como o sentiram, também, o grado António Telmo ( Almeida, 02/ 05/ 1927 – Évora, 21/ 08/ 2010 ), o Professor Egas Moniz ( Avanca, 29/ 11/ 1874 – Lisboa, 13/ 12/ 1955 ) e António Arnaut ( Penela, Cumeeira, 28/ 01/ 1936 – Santo António dos Olivais, 21/ 05/ 2018 ). Que historicamente, o Doutor Egas Moniz foi matriciado, iniciado, na Loja Simpatia e União, em 15 de Dezembro de 1910. Se António Telmo escreveu, selecto, a «Gramática Secreta da Língua Portuguesa», António Arnaut, Poeta-Mor, é o criador, em parabém, do Serviço Nacional de Saúde. Sendo ele feitor e Autor, outrossim, de uma bela «Introdução à Maçonaria». Quanto a António de Macedo, cineasta e artista multifacetado, ele é Autor, entre outros livros, de um Ensaio Alquimístico – e falamos, e alçamos, o «Laboratório Mágico». Esta cópia de Escritores na Maçonaria, ela tem que se lhe diga: é que a linguagem dos pedreiros são as imagens e símbolos, são as metáforas e Mitos. E mencionemos, outrossim, um pensador da estirpe de Pierre-Joseph Proudhon ( Besançon, 15/ 01/ 1809 – Paris, 19/ 01/ 1865 ); foi este o primeiro Filósofo a aplicar, a si mesmo, o adjectivo de «anarquista». E eis os factos e os feitos: a 8 de Janeiro de 1847, em Besançon, é iniciado, o pensador, na Loja «Sincérité, Parfaite Union et Constante Amitié», do Grande Oriente da França. E quanto ao floreal, Ferrer não teme nanja, ele não titubeia: ele transforma o tetramorfo tabernáculo em círculo e para este círculo transfere o triângulo. O tetramorfo são as estações, são os quatro elementos, e são, ademais, os quatro querubins de Ezequiel. Como são, na cruz, os quatro pontos cardeais. Consubstanciados, todos eles, no «Tetragrammaton», ou melhor, nas quatro letrinhas, numa hebraica linguagem, do nome «Jeová». E ei-las, alfim: Yod, He, Vau, He. Sendo pois, os quatro naipes, na «Rota» do Tarot, os Paus, as Copas, as Espadas e os Ouros, sendo, das cartas, as figuras, o Rei, a Rainha, o Cavaleiro e o Valete. Averbemos, ainda, além dos quatro Evangelhos, os quatro temperamentos de Hipócrates ( c. 460 – c. 370 a. C. ): o sanguíneo, o colérico, o melancólico e o fleumático. Sendo, para os Pitagóricos, a «Santa Tetraktys», o resultado e a soma da Mónada, ou 1, com o Triângulo ou o trívio, que é o 3, e sendo 1 + 2 + 3 + 4 = 10, que é número sagrado, que é retorno à Unidade, que é a Roda da Fortuna no feérico Tarot. Já para Carl Gustav Jung ( Kesswil, 26/ 07/ 1875 – Kusnacht, 06/ 06/ 1961 ), em «Tipos Psicológicos», ele anuncia, ou enuncia, as quatro funções humanas, como sejam o pensamento, emoção, sensação e intuição. E uma vez que a Matemática é sagrada e martinista, abordaremos, aqui, os conceitos ou informes da Numerologia. Que a Matemática é a Mãe, a Matemática é sagrada, é que «Deus geometriza» segundo Platão ( Atenas, c. 428 a. C. – Atenas, c. 348 a. C. ). Seguindo e segundo o grande, grande Pitágoras ( Samos, c. 570 a. C. – Metaponto, c. 496 a. C. ), ou o áugure pítico, «a Matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o Universo». Em bíblica «lectio», dirigindo-se, deveras, à Santa Sophia, nós lemos no Livro da Sabedoria: «Tu, porém, regulaste tudo com medida, número e peso.» ( Sb. 11: 20 ). É que os números, como sempre, são os Numes. Pra Pitágoras, «tudo é número.» E no pórtico da Academia platónica, podia-se ler a seguinte inscrição: «Não entra aqui quem não souber geometria.» Se o «Arquitecto», etimologicamente, é o «chefe dos operários», clama, o didacta, por a Rosa maviosa, no centro da Cruz. O Pentecostes, a Quinta-Essência, e o preste Quinto Império. Ou o Éter, deveras, para o solerte Estagirita ( Estagira, 384 a. C. – Atenas, 322 a. C. ). Ou nas palavras, aqui, do nosso Poeta: «Mas a Romã e a Rosa testemunhas são / que comigo vos não importais de partilhar o Sol». Que em numérica cifra, o 3 é sideral, e portanto universal: ele é, no Cristianismo, o Padre, o Filho e o Espírito Santo; ele é, no comento hegeliano, a tese, a antítese e a síntese; são, no razoar de Augusto Comte, os estados teológico, metafísico e depós o positivo; o 3 é, para os Hindus, Brahma, Vishnu e Shiva; para os Alquimistas ele é o enxofre, o mercúrio e o sal, e são, na linha do tempo, o passado, o presente e o futuro. Sendo, para Sigmund Freud, o aparelho psíquico forjado, ou formado, por o Id, o Ego e o Super-Ego. Que o ternário está visível nas várias trilogias da Maçonaria: Liberdade, Igualdade e Fraternidade; Sabedoria, Força e Beleza; Tolerância, Solidariedade e Progresso. Tudo isso através das três virtudes: Fé, Esperança e Caridade. Liberdade, Igualdade e Fraternidade: o criador deste lema foi Étienne de La Boétie ( Sarlat-la-Canéda, 01/ 11/ 1530 – Germignan, 18/ 08/ 1563 ), amigo de Montaigne ( Castelo de Montaigne, 28/ 02/ 1533 – Castelo de Montaigne, 13/ 09/ 1592 ) e colaborador, beletrista, de Michel de l’Hôpital ( Aigueperse, 1506 – Boutigny-sur-Essonne, 13/ 03/ 1573 ). E não esqueçamos, ademais, o egípcio, que é o «gipsy»: Osíris, Ísis e Hórus eles são, na alegoria, uma Alquimia do Verbo. Quero eu aqui dizer: o Pai, que é o 1, se une à Mãe, que é o 2, e o 3 é logo o filho, a criança, a soma, criacionista, do 1 com o 2. Em Numerologia, o 3 é a cifra da criatividade, o 3 é o símbolo da comunicação. O 3 é, como muito bem aduz o feérico Ferrer, o degrau, pitagórico, da celeste perfeição. Correspondendo, o 33, a uma grande, grande Luz, ao grau máximo, dessarte, na Maçonaria, que é ocupado, deveras, por o Soberano Grande Inspector-Geral. Em pitagorismo, o 33 simboliza o alumbramento espiritual, o grande criacionismo e a busca da perfeição. Se caracteriza, no cor, o 33, por a harmonia, o Amor, a feraz fecundidade. O 33, regra geral, é artista em hombridade, ele vive, e labora, para o bem da Humanidade. «Verbi gratia», aqui, deveras e na verve: Maria Azenha, Poetisa Portuguesa e mística, de facto, foi nada em Coimbra, cidade doutora, a 29 de Dezembro de 1945. E somando, então, os dígitos, nós temos, dessarte: 2 + 9 + 1 + 2 + 1 + 9 +4 +5 = 14 + 19 = 33. Ou seja: o 33 é o número kármico da nossa Poetisa. E todos os múltiplos de 3, no Pitagorismo, são concernentes, e atinentes, às Belas-Artes e Belas-Letras. A talho de foice, nasceu em 24 de Janeiro de 1923, em Viana do Castelo, o encenador e o Poeta António Manuel Couto Viana; foi nado, a 18 de Abril de 1842, o Poeta e Filósofo Antero de Quental; nasceu para o Verbo, em 12 de Setembro de 1937, Maria Teresa Rita Lopes, a augusta Pessoana; veio ao mundo, Voltaire, a 21 de Novembro de 1694; e foi nado, para o Espírito, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, a 27 de Agosto de 1770. A 6 de Janeiro de 1949, é nado, no Porto, José Pacheco Pereira; e vê a luz do dia, Pierre Janet, a 30 de Maio de 1859. E 6 + 9 = 15: nasce em 15 de Setembro de 1765 o beletrista, o bargante, o Poeta Bocage; a 15 de Setembro de 1961, é nado, nitente, para uma grande, grande Luz, o Historiador, o Poeta Carlos d’Abreu. Nascendo, em 15 de Setembro de 1850, em Freixo de Espada à Cinta, Abílio Manuel Guerra Junqueiro, o bastião, abençoado, do livre-pensamento. E pra findar com chave de ouro: se nasceu, a 30 de Março de 1844, o Poeta Verlaine, veio ao mundo, o Van Gogh, a 30 de Março de 1853, Artur Cruzeiro Seixas foi nado, para a Luz, a 3 de Dezembro de 1920, e eis a messe, e a missão, de nossos progredimentos. E agora, levemente, «last but not least»: o Padre Manuel Antunes, um dos espíritos mais cultos do século XX português, foi nado, de boamente, na Sertã, a 3 de Novembro de 1918. Dêmos agora, ao Poeta, a voz e a vez: «E o número 3 caracteriza o grau de Aprendiz ( idade de 3 anos; 3 degraus que sobe em direcção ao Oriente; 3 viagens à volta do templo; 3 pontos pelos quais se fazem reconhecer os obreiros; 3 toques; tríplice abraço… ), logo, se no 3 estão contidos todos os números, no grau de Aprendiz estarão contidos os outros graus.» Começando no ministério e acabando no magistério, os graus e os degraus eles são, de feito, 3: o Aprendiz, o Companheiro e o Mestre sagrado. Sendo, esse Magíster, o magnânimo, o Mago e o magnificente. Sendo, essa Magia, a Agricultura Celeste e a Gaia Ciência. Temos visto e hemos de ver: ao contrário do que se crê, os «maçons» não são ateus, nem assassinos, tampouco: eles são, no caroal, os construtores das catedrais. Eles são, deveras, descendentes de Hiram, o construtor, e Arquitecto, do templo salomónico. E se o foro do Vaticano é uma Arte Sacerdotal, apanágio da Maçonaria é portanto uma Arte Magna, ou, melhor dizendo, uma Arte Real. Averbemos, aqui, uma «Arte Régia», de 1987; António Cândido Franco seu feitor, fautor e Autor. E curiosamente, nos «Vasos Comunicantes», Mário Máximo deu a lume, em 1998, a «Arte Real». Nos séculos XX e XXI, António Cândido Franco, Mário Máximo e Carlos d’Abreu – e aqui eis a trindade, eis o trívio sagrado da Poesia Portuguesa. Em lhaneza, agora, de chão plano: meditando, ou matutando, sobre o «Solstício de Inverno», profere, e professa, o fantástico Ferrer: «ou a passagem do passado ao futuro que é um / instante imaginado / era jano celebrado / e solenizado nos dias solsticiais / pelos do grémio construtores / costume e rituais estes herdados / pelos seus pares medievais». E «Jano» está ligado, etimologicamente, ao «mensis Ianuarius», pois sendo o deus dos começos, assinala a passagem de um ano para outro, «e não há luar como o de Janeiro / nem amor como o primeiro». De sublinhar e alçar: no calendário maçónico, ele há, deveras, duas datas festivas: a de São João Baptista, memorada a 24 de Junho, e a de São João Evangelista, assinalada, selectamente, a 27 de Dezembro – e elas correspondem, simbolicamente, ao Solstício de Verão e ao Solstício de Inverno. Prosseguindo, aqui, na feérica faina: o Pentáculo Flamejante é marcado, no centro, por a letra «G». E em maçónica, ou tónica, simbologia, o «G» tem vários significados: «God», «Gnose», «Génio», «Geometria», «Geração», e eis aqui a «Geia», a «Geórgica», a «Gaia Ciência». Voltando, qual Voltaire, à carga: é o Grande Arquitecto do nosso Universo, ele é, no Arcano, o Grande Oriente Lusitano. Que a acácia é a signa, o nome é o símbolo, o número é a senha: nas mãos do «maçon», a pedra peca, tosca e bruta deverá ser tornada na cúbica pedra. E, pra melhor compreendermos a Arte Magna, leiamos, no Antigo Testamento, em I Reis, 7: 21: «Depois, levantou as colunas no pórtico do templo; e, levantando a coluna direita, chamou o seu nome Jaquin; e, levantando a coluna esquerda, chamou o seu nome Boaz.» Se a letra «J», à direita, é a inicial de «João», é, a letra «B», à esquerda, o início de «Baptista». Ou melhor: se a palavra «Jerusalém» começa por um «J», começa, «Belém», por o «Beth» ou o «B». Sendo, o mesmo «B», a inicial, iniciática, de «Bereshit», que significa, em hebraico, «No princípio». É com esta palavra que começa, quer o «Génesis», quer, outrossim, o «Evangelho de São João». O simbolismo de São João é pois o seguinte: com Jesus se dá uma nova Criação, que nos faz nascer, deveras, como filhos de Deus. E «Beth» é, outrossim, a letra primeira da palavra «Baruch», que significa, no hebraico, «abençoado». Sendo «Belém», etimologicamente, no hebraico «Bethlehem», a «Casa do Pão». E quem dá o Pão, dá, deveras, a edule educação. Uma nótula, aqui, de natura enciclopédica: Erasmo substitui «In principio erat Verbum» por «In principio erat sermo». Me seja permitido o à parte seguinte: eu escrevo em Portugal, que é o Porto do Graal, e a Lusitânia, por isso, é uma citânia de Luz. E três Presidentes da Primeira República, como sejam Bernardino Machado ( Rio de Janeiro, 28/ 03/ 1851 – Porto, 29/ 04/ 1944 ), Sidónio Pais ( Matriz, Caminha, 01/ 05/ 1872 – Lisboa, 14/ 12/ 1918 ) e António José de Almeida ( Vale da Vinha, 27/ 07/ 1866 – Lisboa, 31/ 10/ 1929 ), pertenciam, adrede, à Ordem Maçónica. Sidónio Pais foi barbaramente assassinado, na Estação do Rossio, por José Júlio da Costa. Indo, no tempo, mais atrás, a Revolução Liberal de 1820, ou seja, o Vintismo, tem o seu «fons et origo» na Loja Sinédrio, fundada no Porto, em 22 de Fevereiro de 1818. E graças, no lance, ao Liberalismo, foi só a 31 de Março de 1821 que as Cortes Constituintes decretaram a extinção da Inquisição, quero eu dizer, do Tribunal do Santo Ofício. E mais, ainda mais: a 7 de Setembro de 1822, deve o Brasil, sua independência, a D. Pedro IV, o Mestre Maçon ( Palácio de Queluz, 12/ 10/ 1798 – Palácio de Queluz, 24/ 09/ 1834 ). Cognominado, na História, «o Rei Soldado» ou «o Libertador». Sendo obra, outrossim, dos Mestres Pedreiros, a liberação, lilial, da escravatura. Nesse dia 7 de Setembro, D. Pedro, junto ao riacho do Ipiranga, ao saber que a Corte Portuguesa programara uma acção militar contra o Brasil, profere, ferino, o seu grito: «Independência ou morte!» E daí a expressão, que se tornou proverbial, «dar o grito de Ipiranga». Politicamente, e historicamente: com o nome de Guatimozin, último Imperador Asteca morto em 1522, a 2 de Agosto de 1822 é iniciado, na Loja Comércio e Artes, o Príncipe Regente; 3 dias depós, a 5 de Agosto, é aprovada a sua elevação ao Grau de Mestre Maçon, o que possibilitou, a 4 de Outubro de 1822, ele ser eleito e empossado no múnus de Grão-Mestre do Grande Oriente do Brasil, na qualidade de substituto de José Bonifácio; esta a hombridade, e a histórica verdade. Em parentético escólio, D. Pedro IV é associado, selectamente, ao simbolismo do 3: é que ele foi nado, no Palácio de Queluz, a 12 de Outubro de 1798, e 3 x 4 = 12. Manifestação, liberal, do Espírito Absoluto, é, em 4 de Julho de 1776, a independência, a aurora, o arrebol, dos Estados Unidos da América. Sendo aqui, irmãos pedreiros, Thomas Jefferson ( Shadwell, Virginia, 13/ 04/ 1743 – Charlottesville, Virginia, 04/ 07/ 1826 ), George Washington (Popes Creek, 22/ 02/ 1732 – Mount Vernon, 14/ 12/ 1799 ), e, de facto, o Benjamin Franklin ( Boston, 17/ 01/ 1706 – Filadélfia, 17/ 04/ 1790 )… Este último experto na polimatia, este último um espírito veramente enciclopédico. Ingressando no Templo apoiado no braço de Benjamin Franklin ( ele era, na altura, embaixador em França dos Estados Unidos ), iniciado foi Voltaire, a 7 de Abril de 1778, na Loja, parisina, «Les Neuf Soeurs». Na hora, figadal, do seu desencarne, aos 30 de Maio de 1778, recebe, o filósofo, a visita de Franklin, que trazia, consigo, o neto, pela mão. Pedindo a Voltaire que abençoasse a criança, assevera o patriarca, pousando então a mão sobre a sua cabeça: «Deus e Liberdade». E coligimos, no «quid», e trazemos, aqui, à colação: o Grande Selo dos Estados Unidos da América, impresso e expresso nas notas de 1 dólar, contém, deveras, vários símbolos maçónicos, tais como o desenho da pirâmide oculta da Maçonaria e cujo vértice é o olho da Providência, o olho que tudo vê. E prosseguindo, no feito e na freima, quando falamos da Maçonaria, não mencionamos uma «doxa», mas antes, e sobretudo, uma «práxis». Se a «doxa», então, são os juízos e as ideias aceites e acatados por uma maioria, a «práxis» é a acção, é a acção ordenada para um fito e um fim. A «práxis» é, na Obra marxiana, o conjunto de práticas que permitem ao homem o transformar o mundo. «Verbi gratia», em «Teses Sobre Feuerbach», mais particularmente na Tese XI, não basta, ao filósofo, interpretar o mundo, é preciso, doravante, transformá-lo. «Mudar a vida», de Rimbaud ( Charleville, 20/ 10/ 1854 – Marselha, 10/ 11/ 1891 ), e o «transmudar o mundo»: para o feérico Ferrer, estas duas palavras de ordem são apenas uma só. E por isso ele é flamante, ele é prolixo, dessarte, até à pletora. E é aqui que se adunam, os livres-pensadores, com os anarco-comunistas, e eis aqui Voltaire e a vasta Enciclopédia. Se os livros, deveras, são os livres, falaremos, então, de uma «ortopráxis maçónica»: eis a «prática correcta», a escorreita, no feito, e a recta rectidão. O ver, em cada mação, o livre-pensador e o Filho da Viúva. Sempre em busca, o companheiro, da Palavra Perdida. Do Reino de Deus afiliado na Terra. E se a alegoria é prática outra, e se o inconsciente ele é, na verve, o discurso do Outro, nós visamos a acracia, divisamos, em Ferrer, uma heterodoxia. Porquanto ele escreveu, numa estética tese: «Ora, harmonizar em mim ortopraxis com ortodoxia, não será tarefa fácil.» Erro crasso é escrever a seguinte calinada: que Voltaire era ateu, e materialeiro. Em vez disso, ó didacta, ele professava o deísmo. A prová-lo, ó ledor, está o dístico seguinte: «L’univers m’embarrasse, et je ne puis songer / Que cette horloge existe et n’ai pas d’horloger». Ou melhor: a lei moral é autónoma, ou então autoritária. E concordamos, caroal, com o feraz Sampaio Bruno ( Porto, 30/ 11/ 1857 – Porto, 11/ 11/ 1915 ), que foi o firme fundador da Filosofia Portuguesa: se se regiam, os tempos de outrora, por a letal autoridade, é tempo agora, pra nós outros, da solerte Liberdade. Como vemos, por a sua data natal, o Autor de «A Ideia de Deus» é plasmado, marcado por o número 3. E diz e aduz o Pinharanda Gomes ( Quadrazais, Riba-Côa, 16/ 07/ 1939 – Loures, 27/ 07/ 2019 ): não é tradição, em Portugal, o ignorar, ou verrinar, o nome de Deus: isso equivale, ó ledor, isso equivale a um acto de analfabetismo. Concordamos, deveras, com o arguto Francis Bacon ( The Strand, Londres, 22/ 01/ 1561 – Highgate, 09/ 04/ 1626 ): se um pouco de Filosofia conduz o homem ao ateísmo, o leva, a muita Filosofia, a acreditar, perene, em Deus. O feraz, luciferino Fernando Pessoa ( Lisboa, 13/ 06/ 1888 - Lisboa, 30/ 11/ 1935) é Autor, curial, do comento seguinte: as palavras, e as lições, do Novo Testamento, a serem tomadas, deveras, à letra, são elas, francamente, simplesmente anarquistas. Como está consignado nos «Actos dos Apóstolos», o comunitarismo, ou a comunhão de bens, eram apanágio dos primeiros cristãos. Que afirma, deveras, infere e afiança o Santo Agostinho ( Tagaste, Numídia, 13/ 11/ 354 – Hipona, Numídia, 28/ 08/ 430 ): «Nenhum cristão deve ser mercador.» São Basílio de Cesareia ( 329 – 379 ), afamado e estimado Doutor da Igreja, vai mesmo ao ponto de asseverar: «O dinheiro é o esterco do Diabo.» Veja-se em Act. 2: 44, 45: «Todos os crentes viviam unidos e possuíam tudo em comum. Vendiam terras e outros bens e distribuíam o dinheiro por todos, de acordo com as necessidades de cada um.» Cotejemos, agora, com Karl Marx ( Trier, Alemanha, 05/ 05/ 1818 – Londres, 14/ 03/ 1883 ), in «Crítica ao Programa de Gotha»: «De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.» E, como se vê, a diferença não é muita. E como infere o Autor do «Dicionário Filosófico»: «Quando se trata de dinheiro, todos professam a mesma religião.» Ora isso plasma, em termos marxistas, o feiticismo, ou fetichismo, da mercante mercadoria. Num edital datado de 24 de Setembro de 1770, o referido Dicionário é mandado queimar, na Praça do Comércio, por o Marquês de Pombal ( Lisboa, 13/ 05/ 1699 – Pombal, 08/ 05/ 1782 ), e eis a pena, percuciente, da despótica Polícia. E diga-se, aqui, a vera verdade: no tempo em que vicejou o Poeta Bocage ( Setúbal, 15/ 09/ 1765 – Lisboa, 21/ 12/ 1805 ), o Grande Inquisidor ele era, no lance, Diogo Inácio de Pina Manique ( Lisboa, Santa Catarina, 03/ 10/ 1733 – Lisboa, Anjos, 01/ 07/ 1805 ), e eram, suas «moscas», o terror e o castigo dos infrenes jacobinos. E avante vamos na vitória. O fim do livrinho do fantástico Ferrer é sagrado, e consagrado, ao símbolo da Romã. Invertendo, do sintagma, as letras, nós ficamos com «Amor». E, tirando o til ficamos nós, rapsodo, com «Roma». Ou, se preferirmos, com «Ramo». Não alembras, ó ledor, «O Ramo de Ouro», «The Golden Bough», por James George Frazer ( Glasgow, Escócia, 01/ 01/ 1854 – Cambridge, Inglaterra, 07/ 05/ 1941 ) ? Acatando, na cita, Miriam Assor, a Romã é o «símbolo da unidade entre os maçons, separados na sua individualidade e personalidade mas unidos por um ideal comum.» Atributo de Hera e de Afrodite, na antiga Grécia, a romã é um símbolo de fecundidade, de numerosa e copiosa posteridade. E os sacerdotes de Deméter, em Elêusis, no decurso dos Mistérios, coroavam-se, deveras, de ramos de romãzeira. Designando essa romã, na lírica Poesia, as pomas da mulher. E trago, à colação, duas adivinhas: «Sou rainha, com orgulho, / A dizê-lo não me escuso; / E a prova do que afirmo / Está na coroa que uso.» Ou estoutra, inda mais bela: «Às direitas, sou cidade; / Às avessas, sentimento; / Sou fruta bem saborosa, / Com um til por acrescento.» Mas citemos, feérico, o Ferrer, é dele, dessarte, a voz e a vez: «Estamos então na presença da ROMÃ! Fruto da romãzeira, árvore de pequeno porte, quase arbustiva, com a designação científica de «Punica Granatum» atribuída pelo famoso botânico alemão Lineo, pertence à família das Punicáceas e é cultivada desde a Antiguidade, sendo originária da Pérsia, encontrando-se na actualidade distribuída por todo o Mediterrâneo e um pouco pelo Mundo.» Continua o Poeta, socorrendo-se, agora, da Filologia: «romã» deriva da língua árabe «ruman» e é conhecida, no nosso Portugal, por «romeira», «milagreira», «milgranada» ou «milgrada», e, no Douro Transmontano, por «amerigada», cuja casca é usada, em infusão, qual remédio para a «soltura». Para signarem a romã, dizem, os castelhanos, «granado», nominam, os franceses, «grenadier», falam, os ingleses, «pomegranate», os italianos, «melograno», os galegos, «miligrandeira» e os tudescos, alfim, «granatapfel». Provindo, o «granatum», da grande quantidade, da abundância de grãos. A cópia, por isso, das suas sementes a liga à fecundidade, à celebração da vida, à abundância forte e fértil. Sendo a Roma a sideral. Sendo, a «romãzeira», o anagrama de «amorzeira». Que ela medra, ela cresce, para o Islame, nos jardins do Paraíso. Por Magia simpática, na Índia, as mulheres casadas bebem o seu sumo, assegurando, assim, a feraz fertilidade. E em rito lilial do povo português, é manducada, a romã, na festa da consoada e, também, no Dia de Reis, são os votos, bem-querentes, da prosperidade, do feliz Ano Novo. E como os arcanos são veramente universais, mencionemos as Artes Plásticas: de Sandro Botticelli, «Nossa Senhora da Romã», e, de Leonardo da Vinci, «Nossa Senhora e o Menino com uma Romã». E «last but not least», o simbolismo maçónico: cada uma das colunas do Templo iniciático ( quero eu dizer, a Jaquin e a Boaz ), é encimada, selectamente, por um conjunto de três romãs. Querem, os Iniciados, re-apresentar: se a romã mantém unidos os seus multíplices grãos, mantém coesos, a «ecclesia», os seus muitos maçons. É tempo, agora, de findar. Por Pessoa nós sabemos que a Tradição Secreta do Cristianismo tem íntimas relações com a Santa Kabbalah, com a oculta essência da Maçonaria. E para António Arnaut, que já citámos, «não há nenhuma incompatibilidade entre a fé católica e a Maçonaria. Jesus Cristo teria sido iniciado nos Mistérios Essénios, que são uma das raízes ancestrais da Maçonaria.» Da Maçonaria ligada, em Portugal, à Ordem da Milícia dos Cavaleiros do Templo. Que é tempo, agora mesmo, da evolução. É tempo, assim o queremos, da Revolução.
Tomar, 06/ 04/ 2023
SPES MESSIS IN SEMINE
CENTRO DE LITERATURA E FILOSOFIA COMPARADAS
PAULO JORGE BRITO E ABREU
CORRESPONDÊNCIA. 60
16-04-2023 11:47Carta de Max Hölzer para António Telmo, de 8 de Abril de 1977
Le vendredi saint 77
Mon cher ami António Telmo :
Votre lettre qui m’a trouvé tout ouvert et ému −, malgré mon désir d’y répondre immédiatement, est restée trop longtemps sans réponse ; étant trop absorbé par des problèmes quei concernent aussi ce dont vous me parlez. Je crois que je vous comprends bien, et bien que l’opposition entre absence et présence extérieures cache autre chose, nous – je dis nous, puisque là se joue la « relation » principale – sommes dans un stade qui nécessite beaucoup d’observation sincère et de patiente. Une patiente qui semble être en contradiction avec l’urgence… La chose principale, entretemps, devrait être de « libérer » toujours de nouveau cet inconnu qui vit en nous, de le libérer sans cesse de tout ce qui le lie à ce que nous, « connaissons », de ne pas le réduire ni aux jugements, aux « certitudes », aux « faits », de ne pas le laisser subir nos attractions « volubles », même spirituelles. Contentons-nous maintenant de nous retourner vers nous-mêmes autant de fois qu’il est possible et de le constater en nous cette présence inconnue, innommable [?] – qu’elle puisse croître. Observons comment se font ces monuments (hors de penser), attenons entre ce qui nous « engage » vers « l’extérieur », tout ce qui crée en nous des pensées, associations, sentiments, jugements, et cette présence véritablement mystérieuse. – Toute vraie connaissance que nous pourrions avoir un jour, dépend de la croime faisait sentirssance, du contact avec elle qui reste inconnue et innommé.
− Hélas, ici je fus interrompu, et pris [?] de moment de continuer.
Les phénomènes que vous décrivez et mentionnez on pourrait les lier à une certaine attente – justifiée, comme je le crois − . Mais ils sont aussi autant de tentations : lisez, dans cette perspective, certaines paroles de l’Evangile. Vous connaissez aussi le mot dans le Bouddhisme : « si vous apparaît un Bouddha, touchez-lui la tête ! » L’engagement, si je puis dire, comme chercheurs « futurs » que nous voudrions être, se situe dans une profondeur qui exclue de pouvoir s’appuyer sur de tels « faits » (ou « non-faits ») – sauf de pouvoir être en face d’eux avec une attention spéciale développée auparavant.
c’est un peu la même chose avec des expériences personnelles qui nous attirent (et que nous ne pouvons pas encore situer). Tout dépend du commencement juste ; et de notre désir inextinguible – d’ « être » (mais c’est inconnu…).
(− Peut-être le présage de Virgile, qui résiste? – Mais qui est alors Aristée ? Eurydice ? – Sommes-nous tous − Orphée −?) – L’épisode d’Orphée a d’ailleurs remplacé un autre, l’éloge d’un gouvernement tombé en disgrâce…).
De tout cela, nous devrions parler – ou « simplement » évoquer les choses en étant ensembles…
Ce que je disais en haut, n’est valable que pour nous. – N’est-il pas significatif que ce n’est pas à vous que se sont montrés [sic] les apparitions ? Je ne plaisante pas.
(Une indication, peut-être utile, encore : ce « rappel » n’est pas du tout une sortie du corps, mais le contraire. Là commence l’expérience et « l’expériment » [sic] – et tout est à découvrir à partir de cela – « corps » ; relation etc. etc.) – la nature de l’attention…)
−Je vais terminer ces lignes deux semaines ! après les avoir commencé. Je ne cessais de réfléchir sur nos possibilités.
Je me propose de venir chez vous autour de Pentecôte. Je ne sais pas si cela me prend trop de temps – mais je pensais souvent d’entrer au Portugal via Badajoz et de venir vous voir à Borba. Dites-moi franchement ce que vous pensez. Seulement il serait nécessaire d’organiser : 1º une rencontre ou même deux avec nos amis Francisco et Carlos S. à Lisbonne. 2º une conférence publique ou semi-publique sous la « protection » de quelque organisation qu’elle soit prête à laisser le faire dans son cadre : il y a certainement ces institutions culturelles comme une «Uranie » ou quelque cercle de « formation », ou un séminaire. Réfléchissez-y, le temps n’est pas long, mais faites-le, quelque aide vous viendra si vous êtes ouvert et sans préjugés. Titre : la signification de l’ésotérisme dans notre temps. (Peut-être il y a même un intérêt chez « Gulbenkian » ?) –
La pensée de revenir et vous revoir m’emplit d’une vibration joyeuse.
Je vous embrasse amicalement – Max[i]
Tenez s.v.pl. les autres amis au courant du projet ![ii]
[i] É quase ilegível, mas mais provavelmente será o nome próprio.
[ii] Escrito na vertical, na margem lateral esquerda da última página.