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UNIVERSO TÉLMICO. 37

21-05-2016 19:51

Um Lisboeta chamado Isaac Abravanel[1]

António Carlos Carvalho

 

Há sempre um elemento de surpresa nos textos de António Telmo, algo que nos obriga a voltar atrás e a reler, para verificarmos se lemos realmente bem...

No caso desta comédia satírica (em que se dizem coisas muito sérias), a primeira surpresa é a de ver a questão dos Painéis de Nuno Gonçalves tratada nestes termos, quando desde o início sempre foi, e continua a ser, encarada como tema da maior gravidade e seriedade, ao ponto de ter havido mesmo quem pusesse a vida em jogo nessa polémica sem fim.

A segunda e maior surpresa é verificarmos que António Telmo – que já na História Secreta lembrava que está por fazer uma interpretação dos Painéis que, mais atenta às funções das personagens do que à identificação dos indivíduos ali retratados, mais perscrutadora do simbolizado do que do símbolo, fosse capaz de os dar como uma das cifras fundamentais da História de Portugal – chama agora à boca de cena duas personagens realmente essenciais, mas pouco referenciadas nesta questão dos Painéis:

D. Afonso V e Isaac Abravanel, o rei infeliz e o pensador sempre condenado ao exílio;

D. Afonso V apresentado como «último rei de Portugal» e discípulo de Abravanel «na sublime ciência da Cabala».

E são estes dois sublinhados que mais nos surpreendem: vermos que António Telmo considera «o Africano» como o derradeiro monarca – sendo o 12.º rei, encerra um ciclo perfeito – e o que realça nele é a busca da sabedoria. O que obriga a olhar para o corpo das suas armas pessoais (um rodízio aspergindo gotas, mas gotas de quê...?) com outros olhos, mais profundos.

Na peça, Isaac Abravanel queixa-se de que «tudo têm feito para apagar a minha figura dos Painéis. Ninguém tem querido ver em mim o Judeu... com a Torá aberta nas minhas mãos». E, no entanto, «Portugal era para nós o novo Israel » – estas palavras que Telmo coloca na boca de Isaac Abravanel constituem certamente uma alusão ao plano original da História Secreta de Portugal enquanto História de Portugal-Israel incluído em A Terra Prometida, volume I das Obras Completas de António Telmo, páginas 91 a 93.

E Abravanel também se poderia queixar do completo esquecimento a que o seu próprio nome foi votado na cidade, Lisboa, que o viu nascer em 1437.

Conselheiro de reis, cortesão e financeiro de casas reais, erudito enciclopédico, pensador filosófico, exegeta bíblico notável, escritor brilhante, diplomata incansável, último porta-voz dos judeus portugueses e europeus na Idade Média, mas igualmente construtor de pontes para a era seguinte, a do Renascimento, Isaac Abravanel foi ainda o «pai» dos movimentos messiânicos dos séculos XVI e XVII, tanto no mundo judaico como no universo cristão.

Por essas e por muito boas outras razões chamaram-lhe «a grande águia», «um homem de Deus», «tão sábio como Daniel», «uma fortaleza e um escudo para o seu povo», «aquele que salvou os oprimidos das mãos dos seus inimigos».

Figura de verdadeira estatura internacional, exerceu uma profunda e duradoura influência no próprio mundo cristão. Entre a Reforma e o Iluminismo, nenhum outro autor gozou de maior fama ou suscitou maior discussão – lembra-nos o seu principal biógrafo, Benzion Netanyahu, em Dom Isaac Abravanel – Estadista e Filósofo, 1953 (Edições Tenacitas, 2013).

Durante mais de 200 anos, os pensadores cristãos debateram os seus argumentos e viram nele uma fonte de inspiração. E ainda hoje, quem se interessar pela exegese bíblica ou pelo pensamento filosófico «tropeça» constantemente no seu nome e nas citações das suas obras. (Além da biografia de Netanyahu, com várias reedições, podemos ler Isaac Abravanel – La mémoire et l’espérance, de Jean-Christophe Attias, 1992, ed. Cerf; Isaac Abravanel – Conseiller des princes et philosophe, de Roland Goetschel, 1996, ed. Albin Michel; Two Portuguese Exiles in Castille, de Elias Lipiner, 1997, ed. Magnus Press; ou, entre nós, A Filosofia Hebraico-Portuguesa, de Pinharanda Gomes, 1981, ed. Lello; História do Pensamento Filosófico Português, volume II, 2001, ed. Caminho; além de Don Isaac Abravanel, Almoxarife e Rabi-Mor de Portugal, de Amílcar Paulo, 1972.)

Isaac ben Judah Abravanel nasceu em Lisboa, em 1437 – o mesmo ano da morte de D. Duarte –, no seio de uma família ilustre de judeus peninsulares. O pai, D. Judah, fora financeiro do Infante D. Fernando; o avô, D. Samuel, fora cortesão de três reis de Castela; o bisavô, D. Judah (um nome próprio constantemente repetido na linhagem familiar), fora tesoureiro de Fernando IV em Sevilha e almoxarife-mor de Castela. A família Abravanel dizia ser descendente do rei David, da casa real de Judá, tendo vindo para a Península logo após a destruição do primeiro Templo. Em 1378, quando Sevilha assistiu ao início de uma campanha de perseguição dos judeus, os Abravanel começaram a pensar que se deviam instalar em Portugal, o que fizeram a seguir à batalha de Aljubarrota. No início do século XV, a família Abravanel tem já um papel activo no comércio do país, resistindo a alguns sinais esporádicos de intolerância religiosa por parte do povo e do clero, no tempo de D. Duarte e mesmo já no reinado de D. Afonso V. Quando Isaac tem 12 anos, em 1449, regista-se o primeiro motim da multidão fanatizada, que ataca as três judiarias de Lisboa e só recua porque elas se encontravam fortificadas e defendidas. D. Afonso V, que se encontrava então em Évora, foi obrigado a regressar rapidamente a Lisboa e a enfrentar a revolta com medidas fortes e condenações severas dos amotinados. Este rei tentou sempre proteger os judeus portugueses contra o clima adverso das próprias Cortes. Aliás, manifestou uma grande curiosidade pelos judeus, dos quais dizia estarem destinados a receber recompensa divina «porque os seus motivos religiosos são puros».

Este soberano notável, que Isaac Abravanel descreveu como «justo e íntegro, vigoroso e heróico, numa busca ardente do bem-estar do povo, culto e sensato», foi também um patrono das letras e até colecionador de livros – segundo o cronista Rui de Pina, foi o primeiro no seu reino a coleccionar bons livros e tinha uma biblioteca no palácio real.

O jovem Isaac estudou Latim e Grego, a Escolástica e os Padres da Igreja, Filosofia, Medicina e Astrologia, além de ter recebido a sua formação judaica junto de Isaac Aboab e de Joseph ben Shem Tov.

O seu primeiro texto filosófico é dedicado às «formas dos elementos»; o segundo livro, A Coroa dos Anciãos, também escrito em Lisboa por volta de 1465, aborda já o conceito de Deus e o significado da profecia e nele exprime a sua admiração pela Kabbalah e pelos kabbalistas, a quem chama «portadores da verdade».

Mas é igualmente obrigado a seguir as pisadas do avô e do pai, tornando-se então um financeiro muito eficiente e o conselheiro de maior confiança de D. Afonso V. Por outro lado, em 1472, passa a ser o líder natural da comunidade de judeus portugueses, cujos interesses representa na corte. E assim se vai delineando o que será o dualismo constante da sua vida: por um lado, as obrigações dos negócios e das finanças públicas; por outro, as devoções pessoais, a escrita, a reflexão filosófica, o comentário bíblico, sobretudo o dos textos proféticos.

Em 1471, após a conquista de Arzila, cerca de 250 judeus locais são feitos escravos e trazidos para Portugal. Isaac Abravanel toma a seu cargo a missão de os devolver novamente à condição de homens livres: durante seis meses, faz tudo para conseguir a sua libertação.

Entretanto, nascem os seus filhos Judah (1460), o futuro Leão Hebreu; Joseph (1470) e Samuel (1473), além de duas filhas. A sua casa de Lisboa é o centro de grandes debates intelectuais: tal como virá a escrever no seu comentário de Josué, «Habitava então tranquilamente a casa que herdara de meus pais na cidade tão formosa de Lisboa (...). Era a minha casa o centro onde se reuniam homens doutos e prudentes. Via-me respeitado nos paços de D. Afonso V, um soberano poderoso e justo, que durante o seu reinado fez prosperar e conservou a liberdade aos judeus. Mantinha-me sempre ao seu lado, era o seu auxiliar e livremente entrava nos seus paços e saía deles.»

Contudo, tudo isso acabou em Agosto de 1481: D. Afonso V morreu com 49 anos e com ele morreu também uma época para Isaac Abravanel e para os judeus portugueses. Subiu ao trono D. João II, com a sua fúria centralizadora virada contra a casa de Bragança, que sempre apoiara a família Abravanel. Isaac viu-se subitamente envolvido numa suposta conspiração da nobreza contra o rei; perseguido, atravessou a fronteira para Castela e instalou-se perto de Badajoz, numa localidade onde viviam umas 300 famílias judaicas, e escreveu ao rei invocando a sua inocência. Em vão. Dois anos depois são publicadas sentenças de morte contra ele e Joseph, seu sobrinho e genro. Conclui então que a ira divina caiu sobre ele por se ter dedicado tanto à busca de valores temporais, negligenciando o lado melhor do seu ser. No exílio, entrega-se mais ao estudo dos profetas, de Josué e dos Juízes, completando os seus comentários sobre Josué, Juízes e Samuel: em quatro meses e meio, escreve quatro grandes volumes, num total de mais de 400 mil palavras. E reflecte sobre a História e a Política à luz da experiência reflectida na Bíblia e, também, face à sua própria experiência pessoal vivida na pátria.

A partir de 1485 instala-se em Alcalá de Henares, tratando das rendas do cardeal Mendoza e do Infantado. Sete anos depois da fuga para Espanha, tem uma posição semelhante à que tivera em Portugal: em 1491, é o financeiro pessoal da rainha Isabel; em 1492 é o líder não-oficial da comunidade judaica espanhola.

Mas 1492 é também o ano da expulsão dos judeus de Espanha: Isaac tenta interceder junto dos reis chamados «católicos» para que o decreto não seja aplicado. Sem sucesso.

E a família Abravanel parte para o segundo exílio, no reino de Nápoles, onde mais uma vez Isaac consegue uma importante posição junto do rei. É em Nápoles que completa o comentário dos dois Livros dos Reis, incorporando reflexões sobre o exílio espanhol. Interroga-se: o mundo será governado por algum princípio moral? Haverá recompensa para a virtude e castigo para o mal? Deus estará realmente presente neste mundo? Em resposta escreve Justiça Eterna, mostrando as maneiras pelas quais a justiça se revela neste mundo, e ainda Princípios de Fé A atmosfera intelectual de Nápoles ajuda-o a curar em parte as feridas do exílio. Mas o rei Ferrante morre em 1494, os franceses invadem a Itália e Isaac Abravanel acompanha o novo rei, Afonso, para Mazzara, na Sicília, enquanto em Nápoles o bairro judaico é saqueado, incluindo a sua casa: perde bens, a maior parte da biblioteca e o próprio manuscrito de Justiça Eterna. Isaac ainda vai com o rei para Palermo e depois instala-se em Corfu – onde encontra muitos outros exilados e, sobretudo, recupera aí o manuscrito do seu comentário inacabado do Deuteronómio, perdido durante a fuga de Portugal.

Ainda em Corfu, completa os comentários dos profetas maiores e inicia um novo livro, Os Dias do Mundo, em que apresenta a sua visão da História de Israel em relação com a História universal e demonstra a eternidade do povo judaico.

De Corfu segue então para Monopoli, um porto do Adriático entre Brindisi e Bari; no ano seguinte completa aí o comentário do Deuteronómio. Pela primeira vez, sente-se aliviado da pressão dos deveres políticos e sociais – mas, ainda que tenha apenas 58 anos, sente-se igualmente velho, enfraquecido, abandonado. E começa a perder a visão: tem cada vez mais dificuldade em escrever, alguns anos depois passará a ditar os seus textos a um escriba.

Em 1497 escreve Fontes da Salvação, o primeiro volume da sua trilogia messiânica, em que profetiza o rumo futuro do mundo e indica o ano de 1503 como data provável do início da redenção; seguem-se Os Anúncios Salvadores do seu Ungido e Anunciador da Salvação, segundo e terceiro volumes da trilogia que Netanyahu considerou a maior obra alguma vez composta, até então, sobre a questão messiânica.

Em 1498, escreve Céus Novos, comentário do Guia dos Perplexos, de Maimónides, e completa o comentário dos profetas menores.

Em 1503, o tal ano em que previra o início da redenção do mundo, instala-se em Veneza: a última etapa da sua vida errante de exilado. Aí oferece os seus serviços ao Conselho dos Dez como moderador entre a República e Portugal na negociação de um tratado de comércio das especiarias; as negociações falham e mais uma vez Isaac regressa à escrita: completa o comentário sobre os últimos profetas e termina o comentário do Pentateuco, que considerou a primeira das suas obras: «nela investi todo o meu pensamento e todo o meu conhecimento.»

Isaac Abravanel morreu em Novembro de 1508, com 71 anos. Foi sepultado em Pádua, porque Veneza não permitia que se enterrassem judeus no seu território.

O principal biógrafo de Abravanel, examinando essa vida atribulada mas tão rica de feitos e de obras, assinalou que Isaac Abravanel, como pensador, foi um místico; como líder judaico, foi simultaneamente realista e místico; perdeu a batalha prática da defesa do seu povo, é verdade, mas ganhou o combate pela alma desse mesmo povo. A sua tarefa histórica foi a de dar nova vida à auto-confiança judaica e restaurar a esperança na redenção. Enquanto pensador messiânico, entrou na discussão do quinto reino ou quinto Império, tal como se apresenta na profecia de Daniel, afirmando que, antes desse império final, o quarto, o de Roma, seria destruido por divisão interna e pelo confronto entre o Cristianismo e o Islão.

Falando de si próprio, disse sempre que não era um kabbalista (como foi o filho, Judah) mas aceitou os métodos kabbalísticos, que praticou nos seus escritos, e manifestou uma grande admiração pelos antigos mestres dessa ciência ou arte, os tais que tinham respostas para todos os mistérios do mundo.

Duas notas finais:

Agora que se anuncia a criação em Lisboa de um museu judaico, seria da mais elementar justiça que lhe dessem o nome de Isaac Abravanel – tal como Tomar tem um museu com o nome de Abraham Zacuto (que nem sequer era de lá...), Lisboa prestaria assim as devidas, ainda que tardias, homenagens a um lisboeta ilustre.

«Em tudo, nos seus êxitos e nos seus fracassos, no seu trabalho de comentador e de criador, no seu sofrimento e na sua glória, Isaac Abravanel foi, mesmo quando disso nos esquecemos, um judeu de Portugal» (João Vila-Chã, em «História do Pensamento Filosófico Português»).

Assim foi, assim é e assim será, por muito que doa a alguns.

António Telmo tinha absoluta noção dessa verdade.

 



[1] Posfácio a Contos Secretos seguidos de A Goga, V Volume das Obras Completas de António Telmo (no prelo).

 

INÉDITOS. 61

15-05-2016 15:52

Sobre A Goga

 

Goga é o termo grego para o italiano Duce e para o alemão Führer. A palavra, pela repetição da gutural, é a repetição de um estado peculiar da alma bem conhecido, muito frequente nas pessoas que o destino, a ambição e a vaidade, e também a incompetência, elevaram a cargos de chefia. Na Comédia do Ensino de que o leitor acabou, se leu, a primeira parte, a Goga é a personificação da pedagogia, tropo que atrairá a censura de quem vê na condução da criança para a escola (é este o significado exacto da palavra pedagogia) a suprema virtude do Estado. Se a palavra pedofilia (amor pela criança) não tivesse sido posta a correr com o sentido de pederasta, diria que os pedófilos são os educadores, os que conduzem da escola para o mundo e para a vida as crianças que o pedagogo traz para dentro das quatro paredes de uma escola. Não são jogos de palavras, mais ou menos inofensivos, que ponho aqui. A linguística tem vindo a demonstrar cientificamente uma doutrina filha da intuição dos antigos, a de que o poder de transformação das sociedades se exerce através das palavras. Poem-se a correr termos em vez dos termos correntes, pela substituição, que parece deixar tudo na mesma, alterando os significados e as relações de conceitos. Como só se pensa com palavras, a sociedade que recebe e acolhe a substituição, adopta aquelas novas relações como as verdadeiras.

Um dos exemplos disto é a troca de pederasta por pedófilo. Como o amor pela criança é uma virtude, o conteúdo sordidamente sexual da nova palavra insinua-se revestido de ares aprazíveis. Outro exemplo, bem actual, é o da substituição da distinção homens–mulheres pela de homossexuais e heterossexuais. Como cada homem pode ser homossexual e heterossexual, e também cada mulher, ninguém já se caracteriza por ser um ou outro, a antiga e natural distinção anula-se porque homens e mulheres agrupam-se na classe dos homossexuais, homens e mulheres agrupam-se na classe dos heterossexuais. Assim se torna justificado o direito à pederastia, ao homossexualismo.

O comediógrafo usa de análogo processo, não com a finalidade naqueles exemplos apontada de integrar na sociedade e de valorizar os que, por este ou aquele motivo, se desviaram do “natural”, mas com outra, essa cheia de malícia e de maldade, que é a de ridicularizar os que pretendem como a Goga construir uma sociedade, mais justa e mais livre, sem diferenças e em que cada um faça o que quiser, com a condição de não poder fazer, como é lógico, o que o torna diferente dos outros. Sou livre, para a Goga, de fazer tudo o que me torna igual aos outros, vou preso quando reconheço aos outros o mesmo direito.

A maldade do comediógrafo começa logo, usando o tal processo, pela escolha da palavra Goga. Insinuam-se subtilmente uma sugestão de gaguez e, ao mesmo tempo, de desequilíbrio interior, de descontinuidade psíquica a acompanhar a diferença física das duas pernas e a arritmia do andar. A alternância do ô da primeira sílaba e do a da segunda insinua estes desequilíbrios. Mas a força da Führer está na gutural, reside na garganta, como se vê pelos dois gês de ambas as palavras.

 

António Telmo

VOZ PASSIVA. 69

04-05-2016 11:48

89 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

Penso logo poesisto

No aniversário de António Telmo

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Não é como poeta que é mais conhecido. O problema é que nem o pensador o é, como seria bom para nós que fosse. Significaria isso que sabíamos preservar e honrar o nosso mais valoroso património a nível de pensamento.

Mas é dia de festa, deixemo-nos de lamentações. Embora seja dia de festa e de lamentação. Festa porque ele nasceu, lamentação porque ele partiu. O paradoxal equilíbrio universal…

Regressemos aos poemas, aqueles que ainda hoje estão a germinar do espólio.

António Telmo, na mais honrosa tradição nacional, é um filósofo poeta. Talvez não pudesse ser filósofo se não fosse poeta. O contrário talvez já não seja verdade.

Manifesta-se a veia em tudo o que escreve. Não precisamos de a procurar nos poemas. Ela está por onde lhe corre a escrita, que é por onde lhe escorre o pensamento. O pensamento escorre como se não coubesse no corpo.

Às vezes encontramo-lo a escrever um texto de reflexão que interrompe subitamente para deixar desabrochar a flor do poema. É comovente assistir a este processo gravado na página a testemunhar o acontecimento de há tantos anos atrás. A criação que a si mesma se interrompe para… criar. Do pensamento ao poema.

Outras vezes o poema ergue-se na página isolado e silencioso no seu íntimo dialogar. Como este:

“Soltam-se puros no ‘espaço perfeito’

A ave e o sino e o vento informe

Não são quem os produz, mas seu efeito.

Sou eu que acordo o som que neles dorme.

 

Esqueço-me de mim nas horas que se seguem.

Tomei a sério o que me julgo ser

Múltiplos fantasmas me perseguem

Com o ar de quem aqui está a viver.

 

Não lhes digo para que me não neguem

E me tenham por um doido de varrer

Como proceder para que de mim se desapeguem

E a sua sombra não impeça o conhecer?”

(Inédito) António Telmo

 

Nem vale a pena falar sobre os aspectos mais materiais do poema, a irrepreensível elegância da forma. Independentemente de qualquer preocupação de regularidade métrica, que não o obceca, a musicalidade ao correr das palavras aliada ao rigor das imagens.

Aqui, como sempre, a busca do oculto, palavra que uso no sentido não esotérico, mas absolutamente literal, aquilo que não se vê, o que se esconde por trás do que é visível:

‘Não são quem os produz, mas seu efeito.’

Ele, como Pessoa, sabe:

O que para Pessoa é o ‘É em nós que é tudo’ é para Telmo ‘Sou eu que acordo o som que nele dorme.‘

Ambos conscientes da multidão que, num caso o habita (heterónimos), noutro caso o persegue (‘Múltiplos fantasmas me perseguem’). A lúcida e muitas vezes dolorosa consciência da multiplicidade.

E a fantasmática fantasia (assumo a redundância), sobre a qual se constrói a vida:

 ‘Tomei a sério o que me julgo ser’.

E no entanto, como se sabe (e como nos sabe) quando se desnuda do que não É!...

Mas neste drama coexiste, quase imperceptível e por isso tão poderoso, o humor, a esconder a quase troça que apenas se adivinha. E assim retira, aos ‘fantasmas’, o poder que não têm: “Não lhes digo para que me não neguem”.

Talvez seja este subtilíssimo sorriso a poderosa arma a evitar a tragédia cuja ameaça quase se adivinha:

“Como proceder para que de mim se desapeguem

E a sua sombra não impeça o conhecer?”

Estando a ameaça em forma de pergunta, ela é habilmente antecedida pela resposta (“Não lhes digo”) que é um antídoto poeticamente administrado em forma homeopática, altamente diluída, de quase oculto sorriso. Apenas para quem conseguir descortiná-lo. Uma espécie de Graal sob o nosso nariz, disfarçado de levíssima ironia. Em taça de poesia.

Feliz aniversário a todos nós por este Irmão Maior a viver agora em lugar onde os aniversários devem causar subtis sorrisos e terna amorosa condescendência por aqueles que ainda não podem compreender.

 

2 de Maio de 2016

INÉDITOS. 60

04-05-2016 11:41

89 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

 

Este é Tomé[1]

 

Na vida de todos os jovens de família burguesa que tiveram aproveitamento escolar, para um curso superior, há um belo dia em que partem para a cidade, deixando atrás de si o paraíso da infância e o purgatório da adolescência, os campos e as ruas da pequena vila de província, o adro da Igreja e a imagem de uma namorada que não chegou a ser conseguida. Este é Tomé, de uma família vagamente judaica, o terceiro da prole havida por seu Pai em três momentos astrológicos concordantes por uma secreta e misteriosa afinidade atávica.

Ei-lo que vai, agora, com o seu horóscopo na alma pela rua do Sol ao Rato, de que o tem “ao Touro” na casa nona e por isso a vida lhe tem prometida os caminhos da filosofia e a Grande Viagem.

No início de qualquer história, deveríamos pôr a figura da terra natal do protagonista, como não se envergonhou de fazê-lo Goethe na autobiografia que escreveu com o nome de Poesia e Verdade.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

UNIVERSO TÉLMICO. 36

23-04-2016 19:56

«33 Poemas de Herberto Helder»

Maria Estela Guedes

 

Conferência na quarta sessão do ciclo As Artes da Misteriosofia. Lisboa, Livraria Barata, 21 de abril de 2016.

 

Para Anita Garibaldi,
saudando-a pela próxima entronização
como  G.'. M.'. da GLCB.'.,

 

Numa aproximação etimológica à palavra «misteriosofia», creio que por essa palavra António Telmo pretendia significar a sabedoria, o conhecimento dos mistérios. Como, para um discípulo de Álvaro Ribeiro, que Telmo era, os problemas são humanos, os segredos são naturais e os mistérios são divinos, teremos então uma teologia, uma teosofia ou uma teodiceia. A questão, porém, é a de se saber se esse conhecimento é possível, porque aqui lembro-me de um título de Telmo: Só Deus escreve sobre DeusPedro Martins, em email.

Em todos os grandes poetas há uma parte de obscuridade,
que é a que provém do mais legítimo inconsciente.

 Thomas Mann, citado em email por Nicolau Saião

 

Diferentemente da maior parte dos livros de Herberto Helder, Letra aberta (1) exibe um visual, é uma peça de arquitetura motivada pela presença de manuscritos com correções. O autor passou pelas experiências da poesia visual e tem obras publicadas nesse âmbito. Porém, os antecedentes diretos de Letra aberta nasceram quando o poeta ofereceu exemplares de Cobra (2) com correções manuscritas, nem sempre iguais, de amigo para amigo. A caligrafia é uma arte, daí dizermos que há quem tenha letra feia e letra bonita. Lembremos o Islamismo, aliás referido no livro com outra intenção, cujos motivos decorativos são a geometria e escrita, e a própria palavra “caligrafia”, que significa “bela grafia”. A caligrafia de Herberto neste livro é trémula, o que prova, se fosse necessário prová-lo, que foi escrito nos últimos anos, mas ainda é muito clara.

Temos então uma obra de arte dupla, literatura e artes plásticas, executada com técnicas mistas, que apresenta alguns poemas com os seus duplos, as versões manuscritas deles. São 7 os manuscritos, porém só 6 os poemas, visto que um deles ocupa duas páginas. Se aos 6 poemas caligráficos acrescentarmos os 33 tipográficos, o resultado dá 39, o que mantém o valor simbólico do 3 e do 33, enfim, do triângulo ou do ternário.

No final do livro aparece-nos um grupo de 4 notas de um hipotético descodificador da caligrafia que em 4 momentos sentiu dificuldade em perceber o texto. Salvo a 1ª, sem alternativa explícita, os casos 2º, 3º e 4º apresentam duas hipóteses de transcrição. O intérprete, anónimo, obscuro ou misterioso, como se prefira, escolheu sempre a 2ª, ou seja, o número 2. O número 2, presumo que por coincidência, é normalmente o da Mulher, quando lidamos com a série dos 3 primeiros algarismos numa dinâmica simbólica; ora é bem verdade, ninguém o pode negar, que o feminino aparece logo no rosto do livro, com a informação de que Olga Lima, viúva do poeta, é responsável pela seleção dos poemas. Quer isto dizer que foram reservados muitos poemas para próximos livros.

No campo da arquitetura interna, também é importante assinalar que o livro se desenvolve a partir da coincidência dos contrários e de mais algarismos, muitos, mas mesmo muitos números, e de palavras repetidas, 2 e mesmo 3 vezes, o que claramente é um convite ao leitor para que preste atenção, de um lado à música, de outro à numerologia, para não dizer matemática, ou inversamente. Um só exemplo, na página 53, em que ouvimos o enunciador chamar 3 vezes por certo corpo celeste: «mais acima da cabeça que ele toca se o sono é tocado pelo sonho, / para ser semeado à volta delas todas, / e grita do cimo dessas torres: -- estrela! estrela! estrela!» e logo a seguir o poema fala da terra e de um material de construção indissoluvelmente ligado aos números 3 e 33; para que dúvidas não restem na mente do leitor avisado, depois das 3 estrelas o material de construção é designado por 3 vezes, bem como por 3 vezes se repete a palavra “nome”:

[…] «e grita do cimo dessas torres: -- estrela! estrela! estrela!

nome a nome a nomeação da terra com suas pedras sôltas,

a cada pedra onde ela pedra é tão assim tocada»

 

Falei de coincidência dos opostos, a tão misteriosa coincidentia oppositorum própria da experiência do sagrado, que anula as polaridades na unidade. A principal verifica-se entre os contrários letra aberta e letra fechada, mas também reaparece a ideia do canhoto do último livro (3), espelhada ainda na simbologia da mão esquerda e da mão direita. Duas vias, a via do Mal e a via do Bem, a que outros acrescentam a terceira via, conhecida por “caminho do meio”. Por outras palavras, o poeta anula as diferenças entre Deus e o Demónio. Herberto Helder chama-lhe Canhoto, donde o último livro se pode atribuir ao Mafarrico, cujos nomes são muitos e variados: Azango, Belzebu, Careca, Maneta, Manguito, Mefistófeles, Tição Negro, Porco Sujo, etc., como enumera Ana Paula Guimarães, especialista nas coisas do Diabo (4).

Não é possível ignorar que antes do caminho, em expressões como “mão esquerda” e “mão direita”, está a palavra “mão”, a operária e canteira mão que pode ser esquerdina. Essa mão, possuída pelo Demónio, cujos dedos servem para contar pedras e estrelas, mas também para desfiar contas, de tassbi ou de rosário. Mão que pode ser pisada por um pé, cito «-- o pé em cima da mão verídica com a chaga e com o beijo» (p. 53), a mão do poeta, mão que escreve, e aqui repetiria o que disse Pedro Martins de António Telmo, que só Deus escreve sobre Deus, pois o poeta está em sofrimento crístico, sente-se abandonado pelo Pai, apesar de reconhecer, mais uma vez, que não foi abandonado.

Passemos à letra aberta e à letra fechada. Pelo título entendemos o discurso linear, profano, e pela segunda a presença do mistério, ou pelo menos do segredo. Resolvendo já o problema, a palavra aberta e a palavra fechada equivalem-se, e aqui recordo algo que Ernesto de Sousa várias vezes me ensinou, quando eu falava de arte sacra, como se existissem duas, essa e a profana. Então ele corrigia, procedendo à conjunção dos contrários como bom alquimista que foi: «Toda a arte é sacra».

Se quisermos trazer à baila a palavra francesa, teremos a dupla lettre ouverte e lettre fermée. No caso francês, a palavra lettre também significa carta e então fica mais claro para todos que o poeta obscuro, não só neste livro como nos dois ou três anteriores, resolveu manifestar-se também como poeta claro. Porém, quando apresenta a máscara de claridade, não é sem consequências: quanto mais aberta a letra, mais próxima fica do discurso que fixa o real, facto que tem sido mal entendido por quantos não aceitam o abandono da luxuriante árvore das metáforas de poemas como O amor em visita (5) ou Cobra. E antes de me perguntarem se tenho gostado dos últimos livros de Herberto Helder, direi que sim, apesar de se apresentarem quase no pólo oposto dos seus livros de juventude. Nos mais recentes, a metáfora cedeu o lugar a estruturas no âmbito da repetição, portanto ao que ressoa ao ouvido e pode ser listado. De uma entrevista a Umberto Eco acerca do poder das listas, transcrevo um fragmento (6):

“Umberto Eco - A lista é a origem da cultura. Ela faz parte da história da arte e da literatura. O que a cultura quer? Tornar a infinitude compreensível. Ela também quer criar ordem - nem sempre, mas com frequência. E como, enquanto seres humanos, lidamos com a infinitude? Como é possível entender o incompreensível? Através de listas, através de catálogos, através de coleções em museus e através de enciclopédias e dicionários.”

As listas são enumerações, isto é, sequências discursivas numeradas ou que podem ser contadas. Na base disto mora a ciência, no caso, a matemática. Haverá nada mais claro do que uma lista de números, sobretudo quando chegamos ao fim do mês e verificamos que a fornecida pelo multibanco mostra que o saldo se aproxima vertiginosamente de zero?

Claridade, quer o poeta obscuro; o discurso digital que nos suporta a comunicação quando nos sentamos diante do computador, apesar de o não sabermos ler nem escrever, é um prodígio de clareza em que só existem dois sinais, 0 e 1. Nada de comparável às 22 letras do grego que originaram a palavra alfabeto, e refiro este número mágico por constituir um dos poemas listados por Herberto Helder, um poema em que aparecem a “equação do universo” e 2 vezes a palavra “alma”, tudo isto a evocar a necessidade de compreensão do infinito e do incompreensível que Umberto Eco atribui à lista. Aliás, os poemas são em geral sequências de frases sem princípio nem fim, o que lhes confere uma dimensão de infinitude. Vejamos o final, na pág. 18:

[…] dela, alma, e tudo acaba

e muito depressa, como aliás nestas

vinte e duas linhas, de facto

por fora limpas e rápidas

(e nem isso é bem verdade)

 

Alcançado com este discurso dos números o cúmulo da claridade, parece que não sobra espaço para grande retórica.  Porém, maior prodígio ainda do que este farol é o operado pelo poeta quando faz coincidirem o discurso analógico e o discurso digital, isto é, quando consegue tirar dos algarismos tanto ou mais valor semântico do que da bela metáfora. É isso o que tenho vindo a mostrar: este livro é muito mais profundo e complexo do que O amor em visita, apesar de pobre em retórica, e de usar da retórica a parte mais indesejada, caso da aliteração e da redundância, patente, por exemplo, em “pensar pensamentos”. Faço notar entretanto que a redundância é um recurso da comunicação para eliminar ambiguidade e incerteza.

Extraordinária esta arquitetura, repito, pensada página a página, que nada deixou ao acaso, exceto, naturalmente, a fala do inconsciente, que também anda por aqui. Vejamos um caso surpreendente: diz o poeta que, quando escreve o poema, só a primeira letra é que custa, que essa  letra é uma ferida que sangra, e, cito os dois últimos versos, importantes porque neles aparece o título do livro:

“parece, diz alguém, que a própria carne está rôta,

aí, na letra aberta dentro da boca funda”

 

“Letra aberta”, está escrito. E onde, em que página? Pois, essa expressão-título surge no poema da página 33. Não tinha a certeza se o fenómeno se devia ao acaso se à premeditação, mas olhei para o lado, para a página anterior, e achei nela um sinal de redundância, por consequência um dispositivo para eliminar ambiguidades e incertezas, na menção aos 3 dedos com que o poeta escreve, isto entre outros números.

Penso eu que estamos a decifrar elementos de significação do discurso digital, aquele sobre o qual maior domínio não teríamos, nem o poeta nem eu, do que contar literalmente pelos dedos. Apreciemos o poema da pág. 29, com uma contagem decrescente, e repetição de palavras em número de 3:

tinha cinco minutos diários de paz terrena

depois quatro,

depois três,

depois dois,

depois um,

depois não nunca nada,

depois era: dêem-me um tiro na cabeça

para nunca nunca nunca um só número,

todos os números,

qualquer número

 

O mistério espreita nesta contagem, ou pelo menos o segredo. Como? Precisamente, uma vez que o poema é um segmento de discurso sem princípio nem fim, uma frase gramaticalmente incompleta, ficamos suspensos da revelação de algo. O quê? Que se oculta por detrás dos números? É Deus ou o Canhoto quem se ergue no horizonte da contagem decrescente dos minutos de paz terrena?

Recordando o Velho Testamento, Letra aberta também podia intitular-se Livro dos Números. Não se tratando de recensear, como na Bíblia, a verdade é que Herberto Helder faz desfilar diante dos nossos olhos um exército de bárbaros. Talvez tivesse valido a pena contá-los, para sabermos se são mais ou menos 33. Só no poema da página 21 contei 11, em 20 linhas apenas.

É pertinente esboçar um inventário dos algarismos e situações lexicais que implicam lista, contagem, enumeração, matemática e geometria. A lista é tão importante neste livro de Herberto Helder que figura logo no início, primeiro poema, no manuscrito, de versos numerados de 1 a 15 e devidamente assinalados alguns com três asteriscos abertos mais duas estrelas obscuras, isto é, riscadas. Aliás o total não é cinco, adivinha-se um astrozito minúsculo no final do quinto verso, por isso aventaria eu que são mais ou menos seis asteriscos. Podíamos pensar que servem para dividir estrofes, mas os poemas são contínuos, esses sinais de pontuação só existem no manuscrito.

 

Por falar em poemas contínuos, há questões obsessivas em Herberto Helder: uma é o poema contínuo, os livros todos quer o poeta que sejam entendidos como uma só unidade; outro assunto obsessivo é o do poeta obscuro, que aparece dos modos mais variados na obra e em diversas situações. Por isso respondo aos que me atribuem a invenção do “poeta obscuro” (7) dizendo que não, não o inventei, ele é que me pode ter inventado a mim. Quando eu apareci em cena, no final dos anos setenta, com o meu Poeta obscuro (8), já Herberto Helder cá andava desde os anos cinquenta e já tinha publicado Os passos em volta, com um conto intitulado “Poeta obscuro”. Vejamos a primeira parte do poema da página 23, em que mais uma vez o nosso interlocutor declara o poema único e se assinala como obscuro:

eu cá acho que sim,

acho que apesar de tudo escrevi um poema aceitável,

um poema que amadurou em mim ao longo de oitenta anos,

bem sei que tanto tempo merecia a qualidade que Deus pede,

mas tendo em conta que sou ateu tenho direito a que me tolerem a baixa

difícil virtude dos nomes rasos,

não sou dado a impropérios e impaciências,

oh, aceitem lá a pequenez geral da minha vida

e do meu nome obscuro,

o quão honesto sou odiando tudo isso,

 

Voltemos à lição de tabuada. Estará Herberto Helder a brincar connosco? Entre o sim e o não optemos pelo quase sim, pois há realmente apelos ao jogo neste livro, ainda que seja um jogo de cena tão dramático como a Paixão. Diria que se trata de interatividade, uso que o poeta faz da simbólica maçónica para comunicar com maçons e familiares. Porquê? Eu respondo: porque, entre a crítica que debate se ele é ou não um poeta obscuro, prefere a crítica que o integra no mundo sagrado, ainda que ele se afirme ateu. Portanto este livro, com o seu publicitário 33, é uma declaração de pertença ao nosso mundo, o obscuro e misteriosófico universo dos símbolos.

Retomemos o primeiro poema. Insisto em que é realmente extraordinário levar a poesia a produzir cascatas de sentido a partir de elementos tão minimais como algarismos e sinais de pontuação. E que diz ele então, o poema primeiro? Diz o contrário da lista, diz que o poeta é incapaz de obedecer a leis e de formular regras na criação do poema, a que chama “coisa inúmera”, depois de a ter numerado de 1 a 15, no manuscrito. De um lado a lista, sinal do numerável, de outro a incomensurabilidade. Temos então um casamento de contrários, o número e o inúmero, a ordem e a desordem da criação e, se quisermos o simbólico ovo em que masculino e feminino casam realizando assim o mistério da vida, temo-lo neste mesmo primeiro poema, que remata com um par de palavras que funcionam como anagrama e capicua: “serias sobretudo / como um voo ou como um ovo”.

À beira de terminar, começo agora pelo princípio, e no princípio aconteceu esse facto insólito de ter recebido a notícia da próxima saída do livro num artigo intitulado “33 poemas de Herberto Helder”. E já vimos como o título herbertiano, “Letra aberta”, aparece no corpo de um poema, o da página 33, o que leva a perguntar quem e porquê. “33 poemas de Herberto Helder”, rezava a notícia. Jamais me lembraria de ir ao índice para os contar, nem decerto daria aos números a atenção que hoje lhes concedi, se não tivesse sido alertada.

Letra aberta é uma obra de arquitetura, cujos materiais de construção evocam os do pedreiro, do escultor ou do canteiro. Tomemos o exemplo da estela, que começa por ser uma pedra com inscrições: “escrevi umas poucas linhas como estela e como exemplo”, lê-se, na pág. 40. A estela é um monumento funerário a assinalar o modo como o poeta se vê desaparecer: por enterramento. O abismo do inconsciente de que nasce a Poesia é a fonte onde o autor bebe a matéria com que elabora os símbolos. Os que aparecem em Letra aberta, com bastante força, são o ovo, matriz da criação num ab initio; e o enterramento, que acaba por ser homólogo do embrião no ovo, ambos um abscôndito regresso à Terra Mater, ou germinação no interior do seu útero. Morrer, em termos simbólicos, neste livro, é o mesmo que ser semeado, enterrado para renascer. Esse era o maior dos desejos do poeta, e estava a realizar-se nos últimos livros, para seu próprio deslumbramento: o seu Renascimento, nítido no estilo novo e na reincidente referência aos clássicos. Servidões (9), se nos lembrarmos, abria com dois versos decassilábicos de estilo renascentista, o que me levou a estudar nesse livro alguns pontos de contacto com a obra camoniana (10).

Para terminar, peço perdão por ter contado mais pelos dedos do que falado de mistérios, mas deixo aberta a porta para mais um punhado deles no poema da página 39, carregadíssimo de matéria sacral, noturno, tenebroso, sem outra luz além daquela que anuncia o Verbo em certo pão, um pão secreto e profundo, encarnado, poético pão que salva e ressuscita:

um nome que me digas ou me não digas duas vezes

em dois abismos de sono, esse nome

faz-se carne no mais âmago de mim mesmo,

esse nome trabalha-me,

é igual ao segredo: pão,

eu cômo-o no mais escuro do mundo

cortado a água e mais nada,

quase como quando se morre mais devagar

se é noite que entra: pão profundo mastigado

acaso na maior das noites seguidas umas às outras

 

 

 

NOTAS

 

(1)     Herberto Helder, Letra aberta. Lisboa, Porto Editora, 2016.

 

(2)     Herberto Helder, Cobra. Lisboa, Editora &Etc., 1976.

 

(3)    Herberto Helder. Poemas canhotos.  Lisboa, Porto Editora, 2015.

 

(4)     Ana Paula Guimarães, B.I. do Zarapelho (O Diabo). Lisboa, Apenas Livros, 2004.

 

(5)     Herberto Helder, O amor em visita. Lisboa, Contraponto, 1958. 1ª ed.

 

(6)     Umberto Eco, «O poder das listas». Entrevista de Patrícia Reis. In: https://vaocombate.blogs.sapo.pt/161932.html . Consultado a 18 de abril de 2016.

 

(7)    Joana Emídio Marques, “Pode o poeta perder a aura?”. Observador, 10 de abril de 2016. Consultado em abril em: https://observador.pt/especiais/herberto-helder-poeta-perdeu-aura/

 

(8)    Maria Estela Guedes, Herberto Helder, poeta obscuro. Lisboa, Moraes Editores, 1979.

 

(9)    Herberto Helder, Servidões. Lisboa, Assírio & Alvim, 1914.

 

(10)           Maria Estela Guedes, “O rio camoniano”. Conferência plenária ao Colloque international "Herberto Helder. Absurdité du centre, continuité du temps". Sorbonne Nouvelle /Fond. Calouste Gulbenkian, Paris, 14-15 novembro 2013. Em linha no Triplov, em:  https://www.triplov.com/novaserie.revista/numero_51/ .

 

 

Stella Carbono, M.’.M.’.C.’.

21.04.2016

DOCUMENTA. 06

23-04-2016 19:36

É um dado novo, ou pelo menos nunca até hoje atendido, na biografia de António Telmo. A saída a lume, em Fevereiro de 1953, em A Bem da Língua Portuguesa - Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, do artigo "Ensino do Português e ensino do Francês", assinado pelo futuro autor de Arte Poética, motivou, logo no mês seguinte, a publicação de uma carta de um leitor, Mário Martins, na secção "Tribuna Livre" daquele boletim. Eminententemente crítica de parte das afirmações do jovem Telmo, a missiva ficou sem resposta.

____________

Ensino do Português e ensino do Francês[1]

por Mário Martins

 

Ex.mo Sr. Director:

 

Publicou o Boletim do mês transacto, que V. Ex.ª dirige com a competência e brilho já sobejamente demonstrados, um artigo subscrito pelo Sr. António Telmo, cuja essência é um preclaro ataque à obrigatoriedade atribuída ao ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, concluindo o autor, depois de alguns considerandos acerca da influência dela na formação intelectual dos nossos escritores modernos, sem que para tal se reporte, como seria óbvio, num tema desta natureza, às múltiplas evoluções por que tem passado o mundo civilizado, sem lhe ter visivelmente ocorrido que outra língua já tenha exercido, e outras venham possivelmente exercer, a aludida influência, que a prioridade concedida ao francês, em detrimento de outros idiomas, não obedece a um critério definido e concreto, por razões que explana num limitado horizonte, através dum prisma pessoal, consubstanciadas em argumentos insubsistentes.

Observa o articulista, em defesa da sua tese, não se perceber que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes.

Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. E confessa que não é capaz de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.

O tema despertou a minha atenção, porquanto o estudo de línguas estrangeiras tem sido a minha paixão dominante, e muito principalmente por discordar quase em absoluto das afirmações produzidas pelo nosso consócio, no artigo em questão.

E assim, pondo de parte a forma como funciona, na Faculdade de Letras, o curso de filologia românica, contra o qual o autor se insurge, faceta do artigo que não discuto, por visar unicamente a organização do ensino do Português e do Francês entre si, que em nenhum aspecto pode justificar aquele ataque nítido à obrigatoriedade citada, inconcebível para o autor, do ensino da língua francesa nos nossos cursos secundários, de preferência à espanhola, inglesa ou alemã, propus-me demonstrar que a estrutura do artigo, por não se apoiar em bases sólidas, se converte num verdadeiro rosário de conceitos pessoais facilmente refutáveis.

Pois haverá porventura algum pedagogista, da velha ou da nova geração, que se permita pôr em equação a universalidade das línguas francesa e espanhola?

Acaso alguém ignora que antes da deflagração da 2.ª Grande Guerra o francês era a língua internacionalmente adoptada em congressos de relevo, acompanhando de perto a inglesa no campo comercial e industrial, a alemã no domínio científico, e suplantando qualquer delas do ponto de vista intelectual?

Acerca da universalidade das línguas espanhola e francesa, pronunciou-se há pouco nos seguintes termos uma revista filatélica do país vizinho, de larga expansão na Europa e nos países Sul-Americanos:

 

Con alguna frecuencia se reciben cartas en nuestra redacción, mejor o peor intencionadas, en las que se «extrañan» de que editemos nuestra revista en castellano, dando solamente algunas notas interesantes en francés o inglés.

 

E depois de uma série de explicações absolutamente lógicas, em abono da universalidade da língua espanhola, cuja transcrição julgo desnecessária, conclui por dizer:

 

Conscientes de esta importancia, de esta universalidad, no dudamos en considerar al castellano como nuestra lengua oficial, si bien, en nuestro cariño a todas las lenguas del mundo, utilicemos con la frecuencia que nos es posible todas las demás, AUNQUE DEMOS ALGUNA PREFERENCIA AL FRANCÉS, POR CREER JUSTAMENTE ES MÁS CONOCIDO DE NUESTROS ASOCIADOS.

 

Em publicações deste género, os editores americanos, alemães e ingleses procedem de igual modo...

E porquê?

Por que motivo os editores de todo o mundo introduzem sempre o francês, quer se trate duma banalíssima publicação filatélica, quer seja uma obra de vulto literária ou científica?

O motivo determinante do comércio livreiro, a que alude o Sr. António Telmo, é exactamente a universalidade desta língua, originada nas conhecidas causas da expansão, do domínio, da difusão linguística, etc.

Sem dúvida, o espanhol seria mais acessível do que o francês, por facilidade de assimilação, dado que é positivamente, de entre as línguas neo-latinas, a que o aluno aprenderia com maior rapidez, mais abreviadamente, com muito menos dispêndio de esforço intelectual; isto é uma verdade irrefutável, como inegável é também que no tocante a utilidade – «sob qualquer aspecto» – não há paralelo possível entre elas...

Nada justificaria portanto que por «facilidade didáctica» se fizesse a substituição do ensino da segunda pela primeira...

À minha mente, nem sempre traiçoeira, ocorre-me neste instante a categórica afirmação que em 1951 me fez uma consagrada figura da ciência médica, conversando acerca da necessidade do conhecimento de línguas estrangeiras. Dizia-me ele: «Hoje, um médico que queira acompanhar a evolução da ciência tem de saber inglês. A última guerra, como todas aliás, revolucionou grandemente a técnica cirúrgica e a medicina em geral... Reconheço e admiro o valor dos alemães no campo científico, em que ocupavam posição de relevo, mas não ignoro outrossim que as derrotas nas guerras trazem, como consequência natural, um ascendente do vencedor sobre o vencido, motivo por que a Alemanha estagnou, enquanto a América progrediu.»

É certo que não só a medicina é ciência... mas se nos dermos ao cuidado de ouvir os cientistas de outros ramos, creio que não discordarão muito do parecer deste ilustre catedrático.

Seria portanto absolutamente ilógico que no momento presente se substituísse o ensino da língua inglesa pela alemã por razão de importância científica...

Resta-nos a vantagem comercial. Esta, sim, é verdadeira; o inglês é, sem dúvida, a língua comercial por excelência, e o incremento que tomou nos últimos anos é de tal forma considerável que a tornou quase imprescindível ao regular funcionamento das relações comerciais. Disfruta hoje de uma posição claramente vantajosa, sem que todavia os ainda numerosos importadores e exportadores portugueses vissem as suas transacções prejudicadas pelo facto de continuarem a redigir em francês a correspondência trocada com a Inglaterra, a América do Norte e outros países onde o inglês predomina.

Em suma: não é difícil apercebermo-nos, através de manifestações artísticas e literárias, que o francês domina o mundo civilizado no campo intelectual, como também facilmente observamos que o inglês o leva hoje de vencida do ponto de vista comercial e científico.

Quem poderá por consequência duvidar de que são estas as línguas estrangeiras fundamentais, as que inicialmente mais interessa aprender, as de mais vasta utilidade e as de mais rasgadas vantagens, por serem irrefutavelmente as de maior projecção no domínio literário, científico e comercial?

Se alguma preferência houvesse a atribuir-se à aprendizagem de línguas estrangeiras, seria talvez, e unicamente, proceder-se de modo inverso ao actualmente vigente isto é, iniciar o ensino delas começando pelo inglês e seguidamente o francês; mas preferir o francês a favor do espanhol ou o inglês em proveito do alemão – estou eu certo de que bem poucos pedagogistas perfilharão tal ideia...

 



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 2, Lisboa, Mar. 1953, pp. 133-135.
 

 

DOS LIVROS. 47

17-04-2016 00:58

Rafael, o grande solitário

 

O grande escritor francês Léon Bloy, que a si mesmo se designava por o Pobre, por este modo fazendo a imitação de Cristo, estava um dia no meio de mendigos, à saída da missa em Notre-Dame, estendendo como eles a mão à caridade. Passou um poderoso, o ministro das finanças ou coisa no género, que o reconheceu no preciso momento em que lhe ia entregar uma mísera moeda. Ficou espantado de ver tão ilustre personagem a pedir esmola:

– Você, Léon Bloy, aqui?

– Preciso de comer.

– Mas há instituições de caridade...

– Só acredito nas instituições de caridade quando elas forem dirigidas por pobres. Vá! Passe para cá o dinheiro!

Esta cena poderia ter-se passado com o Rafael Monteiro, à saída da missa no Chiado. A sua altivez perante os reverendos, isto é, a sua irreverência, juntamente com o seu inexcedível talento de produzir choques de frases que fazem ver, estão bem patentes nesta história que ele próprio me contou.

O famigerado escritor marxista José Cardoso Pires, por ter ouvido falar do solitário no Castelo de Sesimbra, talvez ao Agostinho da Silva, bateu-lhe um dia à porta. Não chegou, porém, a entrar, em consequência do seguinte diálogo:

– Sou o Cardoso Pires... O escritor.

– Sim... Deixe ver se me lembro. O senhor não escreveu um autobiografia?

– Não, nunca escrevi nenhuma autobiografia.

– Ora essa! Então não foi o senhor que escreveu Eu, Burro de Pé?

Este, como outros confrontos, criaram-lhe muitos inimigos. O francês Léon Bloy também os teve em grande quantidade. Ambos católicos, tinham de comum também a sua irreverência em relação à Igreja. Eis algumas frases bem expressivas disso, tiradas de um “depoimento” inédito, agora publicado em livro:

“Fui criado no «seio da Igreja» como soe dizer-se. E na catequese, com um lapitos, riscava a palavra «Romana» na frase do catecismo: «Católica, Apostólica, Romana». Entendia no meu senso ingénuo que deveria lá estar «Portuguesa», pois em Portugal eu nascera e não em Roma. Mal sabia, então, como era importante a verdade revelada pela minha infantilidade.”

“Na frequência do templo e no convívio com os sacerdotes, aprendi o pecado, e bem cedo me tornei pecador, aos olhos da Igreja. Na alma radiquei imenso medo de Deus. «Não faças isso, que Deus te castiga», «Deus não te perdoa se fizeres assim», e estas e outras intimativas (pavorosas para a minha alma ingénua) destruíram o que em mim era pureza, amor e esperança em Deus. Mas ensinaram-me que pela confissão o sacerdote me absolvia dos pecados cometidos. E eu vi no sacerdote um ente maior e melhor do que Deus.”

É um depoimento admirável que ele sim deveria figurar à cabeça deste livro como apresentação do autor. Quando, adiante, o leitor o percorrer com os olhos do espírito, verá como é nobre e elevado o homem que o escreveu. Ali se mostra, porém, apenas um aspecto dos muitos que constituíam a sua natureza. Um aspecto importantíssimo, pois, ao dar-se nesse depoimento como um pobre e um louco (“sou pobre, eufemismo com que os meus amigos, piedosamente, ocultam a verdade da miséria em que vivo”) e, ao mesmo tempo que pobre e louco, e por isso mesmo «um milionário de Deus», considera-se um escolhido. Recordo-me bem do entusiasmo com que me falava do «pobre» que, no famoso quadro de Gregório Lopes, da Misericórdia de Sesimbra, se recolhe num manto de Nossa Senhora. Era como se visse nele a si próprio entre os grandes deste mundo, mas superior a todos porque o interpretava como um «iniciado» em qualquer Maçonaria do século XVI, coisa da qual lhe parecia sinal certo o joelho descoberto da personagem.

O quadro de Nossa Senhora da Misericórdia era uma das suas grandes paixões. Tanto assim que um dia me pediu para irmos ambos a Lisboa convidar o Almada Negreiros a falar sobre ele na Biblioteca Municipal, de que eu, então, era director. O «consagrado» pintor recebeu-nos cordialmente, embora dizendo que não, ao que pedíamos, por se encontrar velho e doente. Morreu pouco tempo depois. Se não fosse sentir-se impedido fisicamente, não deixaria de aceitar o convite, porque amava muito Sesimbra, onde tinha estado muitas vezes vinte anos atrás. E quando o Rafael Monteiro lhe observou que, se ali fosse agora, a iria encontrar muito mudada porque o turismo a vinha continuamente estragando, fitou nele os seus grandes olhos negros e proferiu estas palavras memoráveis:

– A beleza de Sesimbra, meu Amigo, nem uma bomba atómica seria capaz de a destruir. 

A resposta veio imediata:

– Que venha a bomba atómica! Que rebente com o turismo para que se veja melhor a beleza.

O Rafael Monteiro comparava o turismo àquela praga dos gafanhotos que assolou o Egipto dos tempos bíblicos. Via-os vir encosta abaixo camioneta após camioneta, carro após carro, aos sábados, aos domingos, em todos os dias da semana; via-os cobrirem campos e praia, alongarem-se em longas filas à porta dos restaurantes, devorarem tudo por onde passavam. Era como se lhe invadissem a casa, a sua querida Sesimbra, onde tinha nascido, crescido, e haveria de morrer. Retirava-se para o Castelo. Lia, escrevia, pensava, recebia os que eram capazes de o compreender e, excepcionalmente, de o ensinar.

Tinha uma vintena de gatos. Ele mesmo tinha o temperamento de um felino. A alma bem encaixada no corpo, serena e firme, simultaneamente distraída e atenta, sempre pronta a formar o salto com a rapidez do raio, quando de súbito alguém lhe invadia o território da sua independência.

Mas, ó coisa espantosa!, este homem que não se preocupava com o dia de amanhã, com o que pudesse comer no dia seguinte, teve uma fase da vida em que lhe caiu do céu muito dinheiro. Foi pelo acaso de uma conversa ouvida no café, de mesa para mesa. Por ela soube de um terreno imenso que estava à venda por tuta e meia. Não tinha tuta e meia. Associou-se com quem a tinha, o seu grande amigo Ernâni Roque. Compraram-no e depois venderam-no a peso de oiro. Couberam-lhe mil e tantos contos, que eram na época muito dinheiro. Os amigos, entre os quais este que escreve estas linhas, exultaram de alegria por o verem liberto da miséria. Aconselharam-no a aplicar o dinheiro, a tirar dele um rendimento mensal, de modo a não se preocupar mais com os aspectos materiais da vida. Como se enganavam e como eram pouco inteligentes! Assim com o dinheiro é que ele se preocuparia com os aspectos materiais da vida. Só sabia ser pobre. Só sendo pobre era livre. Só sendo livre era «um milionário de Deus».

Os mil e tal contos foram gastos, na sua maior parte, em obras na casa do Castelo, onde vivia. Fê-lo em memória da mãe, já falecida. Disse-me que queria que ela tivesse uma linda casa. Acreditava ou sabia que ela continuava a viver ali com ele.

Parece que Marcelo Caetano, segundo sabemos pelo que escreveu António Reis Marques em “O Sesimbrense”, terá ficado deveras impressionado ao ler uns textos do Rafael Monteiro que lhe vieram parar à mão. Fez com que o trouxessem até ele em Lisboa e disse-lhe mais ou menos o seguinte: “Apreciei muito os seus escritos! Você já é alguém, mas eu gostava que fosse alguém ainda maior pois tem qualidades para isso. Terei muito prazer em tê-lo como meu aluno na Faculdade de Direito. Estou pronto a ajudá-lo.”

Quando ouviu o Rafael dizer que tinha apenas a 4ª classe da instrução primária e, só com isso, não tinha acesso à Universidade, não pôde esconder a sua estupefacção.”

Compreende-se a estupefacção de Marcelo Caetano. É a de quem julga que só a Universidade dá autoridade, isto é, confere o direito de ser autor. O Rafael Monteiro, com a sua instrução primária, teve mais sorte do que o Fernando Pessoa, nem sequer se lhe pôs o problema de ter que desaprender tudo quanto lhe haveriam de ensinar na Universidade. 

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 19

17-04-2016 00:43

Positivismo e filologia[1]

 

Data da formação do Curso Superior de Letras um período de desenvolvimento dos estudos linguísticos em Portugal. A iniciativa de D. Pedro V, cujos altos intentos ainda não foram compreendidos, em breve foi deturpada por quem desviou aquela instituição, abrindo-lhe as portas aos vencedores de concursos de provas públicas e dando uma finalidade utilitária à preparação dos escolares. Este desvio deve-se, primeiro, ao predomínio social da mentalidade iluminista e, depois, com a entrada de Teófilo Braga para o corpo docente daquela escola, à instauração definitiva do positivismo. Mais ou menos positivistas foram os filólogos ilustres que ensinaram linguística e literatura naquela escola superior que D. Pedro V havia fundado com intenções mais elevadas.

Hoje, apesar de todas as vicissitudes da história cultural, a orientação dos estudos linguísticos e filológicos continua a obedecer aos mesmos princípios fundamentais. Propomo-nos neste artigo caracterizar o positivismo implícito ou explícito nas obras dos escritores e professores, aliás meritórios e ilustres, pelos profundos conhecimentos que revelam e pela honestidade dos processos didácticos e científicos, fazendo apelo às nossas convicções religiosas e filosóficas.

Fazer da linguística pura ciência, sem relação com a filosofia e a teologia, parece-nos um erro de que uma das menores consequências será a incompreensão da poesia e em geral da literatura. O positivismo vinha, porém, firmado no propósito de exterminar a filosofia do campo da cultura nacional e humana.

Ao introduzir na linguística a lei dos três estados, afastava do ensino público a verdadeira teoria da génese das línguas, que, assim, passavam a ser estudadas como derivando-se, na linha recta do progresso humano, de uma hipotética origem empírica, marcada pelo encontro do homem com os outros homens e com a natureza circundante. Servindo-se do darwinismo, pôde fixar o momento daquele encontro, quando no antropóide acordavam, em forma emocional, os primeiros prenúncios da razão. Gritos desarticulados seriam, naturalmente, a primeira forma de expressão humana. Daqui deriva o primado da glotologia, nos estudos linguísticos, pois aquela ciência dá as leis hipotéticas das transformações dos fonemas, com os seus conhecidos fenómenos de aliteração, abrandamento, metátese, síncope, assimilação, de desassimilação, etc. As obras provenientes do «Circulo Linguístico de Praga», de eminentes filólogos, tais como Trubetzkoy, Jakobsen, Martinet, são um elucidativo exemplo exemplo do que a linguística pode produzir no campo da glotologia. Os ensinamentos que contêm são seguidos, com as necessárias adaptações locais, nas Universidades europeias.

Outra consequência da mencionada hipótese da origem empírica das línguas é a nova doutrina ortográfica, se a qual se eliminam, para simplificar, aquelas letras que não têm valor fonético, do ponto de vista da glotologia, tornando-se irreconhecível para as pessoas não eruditas a origem etimológica das palavras. Entre nós, esta doutrina foi defendida por Gonçalves Viana e combatida por Sampaio Bruno.

Outra consequência ainda é a consideração da literatura pelo seu lado fonético, estudo este que é completado pelo da sintaxe e do léxico, incluída neste a semântica. Ninguém ignora, para citar o exemplo mais flagrante, em que consistem os estudos dantescos. Naquilo consistem e, sem mais, em inferências históricas e explicações alegóricas, mais ou menos morais, mais ou menos políticas, que falseiam o significado mais elevado da Divina Comédia. Entre nós, é, sobretudo, elucidativo o caso dos Lusíadas, pelos quais a gramática é ensinada no ensino secundário. Encerrar, assim, em limites tão estreitos as obras literárias mais dignas de admiração seria apenas ridículo se não revelasse intencional esquecimento do pensamento que as origina. Fique, embora, por saber o que o poeta ou o prosador realmente pensaram no plano de cruzamento com a realidade mais profunda, o que importa a esta linguística é verificar os sons e formular as leis que prendem o poeta ou o prosador a um suposto fundo primitivo, o que importa ainda é medir, de um certo ponto de vista, a distância que falta percorrer para reduzir a prosa e a poesia mais belas e significativas ao mecanismo da razão separada e impotente. Pois que, sempre, sempre, os estudos linguísticos em causa irradiam do ponto de referência do homem, em cada momento histórico, a dois extremos: ao primitivo antropóide e ao perfeito antropos.

Filólogos alemães, após a descoberta do sânscrito, introduziram na linguística o estudo comparativo das línguas, procurando reconstituir o famoso indo-europeu, idioma primitivo, de há muito desaparecido, do qual derivariam aquelas línguas que apresentam semelhança irrecusável. Esta hipótese, de inegável fecundidade e que poderia, na verdade, promover a autêntica filologia, foi, porém, interpretada pelos linguistas em modo estritamente histórico e prestou-se, aliás excelentemente, para explicar as anomalias aparentes que, em cada língua, representavam um obstáculo ao desenvolvimento da linguística, orientada pela directriz positivista. Algo, é certo, não se deixa nunca explicar, para o que se introduziu a «explicação por analogia». Como é de ver, as leis de transformação fonética são utilizadas para a reconstituição do indo-europeu, o qual será, assim, resultado da exclusão de todas as diferenças que caracterizam os diversos idiomas aparentados, quando o que aparece como evidente é que essa suponível língua, se língua originária das derivadas suas, tem de as conter concretamente em si, e, por isso, a ser reconstituível, deve sê-lo por um método eminentemente integrativo, método, portanto, que de nenhum modo elimine aquilo que em cada língua é essencial, enquanto significativo. Os caracteres adoptados para o indo-europeu são, porém, convencionais e baseados nos caracteres latinos. Os diferentes caracteres das línguas do mesmo ramo, como os gregos, não são tomados em atenção. Resulta isto, como se sabe, da suposição, feita por mediação historiográfica, de que a linguagem escrita é posterior à linguagem oral, de que o fonema é anterior à letra. O que, porém, é curioso notar, fundamentadamente no que dissemos, é que a linguística vê no indo-europeu aquela língua rudimentar a que atribui uma origem empírica. Não deixa de ter relação com tudo isto o realce que os linguistas dão ao facto de a Bíblia estar, na sua maior parte, tecida com proposições coordenadas, o que mostra, segundo eles, um atraso do pensamento em relação ao actual, muito comprovativo da superioridade da razão.

Referiríamos tudo o que se explica na mesma linha que vimos tentando descobrir na selva espessa e miúda das múltiplas projecções dos estudos linguísticos. Queremos falar em estudos da língua em relação à geografia, à sociedade, à economia, à política, etc. O leitor que consulte a obra de Leite de Vasconcelos terá ocasião de colher informações, fundamentar juízos e tirar conclusões, quanto ao valor destes estudos em Portugal. E sem dúvida que, perante obra de tão vasta informação e inteligência, não deixará de pronunciar-se afirmativamente. Os linguistas, porém, ao cometerem o erro de colocar no início o que só se encontra no fim, na fase saturnina das civilizações dissolutas, tiveram de sofrer as consequências da sua irreflexão. Uma das menores é, como dissemos de início e explicámos ao meio, a incompreensão da poesia e em geral da literatura.

Ao esboçarmos esta crítica, sem pretensões de originalidade, crítica já corrente em meios mais esclarecidos do que o nosso e de que nos dão notícia, aliás, alguns professores mais bem informados, estamos convictos de que ela há-de, pouco a pouco, ser compreendida pelas mais novas gerações e vir a transformar radicalmente a estrutura do ensino da linguística em Portugal.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 6, Lisboa, jun. 1953, pp. 248-249 e 260. Assinado por António Telmo Carvalho Vitorino.

 

 

CORRESPONDÊNCIA. 31

09-04-2016 17:13

CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 12

Estremoz

11-2-89

 

Meu caro António Cândido Franco

 

Pouco tempo depois de nos termos conhecido em Vila Viçosa, pediu-me o envio de um escrito sobre Pascoais para uma revista que tencionava editar com uns amigos. Hoje sou eu que venho pedir-lhe o envio de um escrito sobre Pascoais para uma revista que vou editar com uns amigos. Chama-se Princípio e vai ser desfraldada no alto castelo alentejano que é a planície reconquistada para o Espírito[1]. Como vê, esta frase reflecte a leitura do Panfleto Contra Portugal[2], que por três vezes ponderei e por tal modo considerei que, não houvessem as suas cartas e as duas breves conversas que tivemos, bastaria ele para lhe fazer agora este pedido. Se quiser juntar um ou dois poemas inéditos muito melhor. Não quererá também o António Cândido Franco, em quem tenho fundas razões para ver um homem da reconquista, colaborar na organização da revista?

Quando me responder, envie-me o endereço da Fiama que não consigo encontrar entre os meus papéis. Escrevi já uma apresentação em grande parte decorrente, com a indispensável adaptação, do Panfleto. Que belo título!

Será que se dispõe a passar um dia por Estremoz? Gostaria de lhe apresentar o Tomé Natanel[3], sábio cabalista, com loja aberta de Antiguidades em Estremoz.

Um grande abraço

António Telmo

 



[1] Nota do editor – Este projecto não se concretizou.

[2] Nota do editor – Opúsculo publicado por António Cândido Franco no início desse ano de 1989. Edição de Arauto/Jorge Cabrita.

[3] Nota do editor – Tomé Natanael, ou Thomé Nathanael, alter ego de António Telmo cujo nome reproduz de modo anagramático, surge pela primeira vez no conto “No Hades”, publicado em Filosofia e Kabbalah, livro que sairá a lume nesse mesmo ano de 1989.

 

VERDES ANOS. 18

09-04-2016 16:20

Retomamos hoje a publicação dos escritos com que, em 1953, António Telmo colaborou em A Bem da Língua Portuguesa, o Boletim Mensal da Sociedade de Língua Portuguesa, numa fase em que Álvaro Ribeiro integrava a Direcção desta associação, então a conhecer momentos de grande vitalidade. Para além de nomes como Francisco Torrinha, que fora professor da Faculdade de Letras do Porto no glorioso período leonardino da instituição, e de José Pedro Machado, entre outros, o boletim abre então as portas aos vultos da Filosofia Portuguesa. No primeiro semestre de 1953, além de Telmo, Álvaro Ribeiro, José Marinho e Orlando Vitorino assinam colaboração nas suas páginas. O facto é, aliás, saudado num artigo de Gaspar Machado, de Julho desse mesmo ano. O artigo de António Telmo que agora recuperamos, saído a lume em Fevereiro, não passou despercebido aos leitores...  

Ensino do Português e ensino do Francês[1]

 

Reconhecida uma vez a necessidade de proteger a língua pátria, ameaçada de completa descaracterização, têm vindo os linguistas combatendo o estrangeirismo, dos idiomas, sem dúvida, o elemento mais profundamente descaracterizante. Desviadamente têm procedido, porém, quando, preocupados com dirimir o estrangeirismo, entre nós, sobretudo, galicismo lexical, não atentam no, evidentemente, muito mais pernicioso e minaz galicismo estilístico. Mais próximas do «espírito da língua» não se hesita em pensar que são as suas formas estilísticas do que os seus elementos materiais.

A menor análise denuncia, nos modernos escritores de língua portuguesa, a obediência repetida ao paradigma da sintaxe francesa. Com relativa facilidade, dependente de uma fácil informação, adquirida ou não adquirida escolarmente, evita o escritor o uso de galicismos vocabulares. O que lhe é ou seria difícil é libertar-se dos esquemas sintáticos que a sua mente aderiu, por um processo mecânico do próprio pensamento. Como factor deste processo está, sem dúvida, a leitura uniforme e repetida de livros escritos em língua francesa, leitura a que, em grande parte, se viu forçado pelas condições próprias do comércio livreiro. Não nos propomos discutir as razões determinantes deste comércio; de qualquer modo, teve anteriores raízes, sem as quais não se explicaria, a passividade do leitor perante o livro. De facto, o conhecimento dos segredos próprios e intransmissíveis dum idioma dá a quem o possui a faculdade de conviver, sem perigo de compromisso, com os outros idiomas, como também a de escrever ou falar nativamente.

Quem considerar a falta, entre nós, de um autêntico ensino que proporcione a livre existência da língua portuguesa, não estranhará, nos modernos escritores, a dificuldade que porventura tenham em evitar, sem arbitrária alteração da ordem dos vocábulos, os esquemas sintáticos importados a que as suas mentes aderiram.

Com efeito, no ensino liceal e técnico a língua predominante é a francesa. Não se percebe que motivos levaram o pedagogista a preferir esta língua às restantes. Não é razão de facilidade didáctica, porque mais próximo do português está o espanhol, falado por milhões de indivíduos. Não é razão de utilidade, nas relações comerciais e industriais, porque nesse caso seria escolhido o inglês. Não é razão de importância científica, porque então optar-se-ia pelo alemão. Confessamos que não somos capazes de compreender porque é que aos estudantes dos liceus e escolas técnicas se impõe como condição indispensável de estudo a aprendizagem da língua francesa.

Compreendemos, sim, que, para recrutar tantos professores de francês, seja indispensável haver, nas Faculdades de Letras, os cursos de filologia românica, porque, para preparar professores de língua portuguesa, existem os cursos de filologia clássica. Contraditoriamente ao sentido do vocábulo que o adjectiva, o curso de filologia românica é, por sua mesma estrutura, o que menos condições oferece de melhoramento do idioma nacional. Senão, veja-se: nele, o ensino do francês tem vincada preponderância sobre o ensino do português. Assim, não se compreende que, sendo um curso de filologia românica e funcionando em país de língua românica, dedique três anos ao ensino prático do francês e nenhum ao ensino prático do português. Não é uma disciplina de filologia portuguesa, pouco menos do que reduzida à fonética, nem uma disciplina de literatura portuguesa, predominantemente historicista, que podem sequer contrabalançar, como se de contrabalançar se tratasse, a acção absorvente que exercem as disciplinas de língua e literatura francesas. Repare-se, além disso, que para o aluno os dois anos desta última são muito mais absorventes do que os respectivos anos de literatura portuguesa. Isto porque, coexistindo uma cadeira de francês prático, o aluno esforça-se por, através das obras literárias, desenvolver os seus conhecimentos de língua francesa. Quem alguma vez aprendeu uma língua avalia bem quanto esta afirmação tem de verdade.

Esta incongruência, verificada pela comparação exterior dos dois ensinos, é, quanto a nós, muito mais assinalável do que a que resulta da comparação do ensino do francês com os ensinos das restantes também línguas românicas, reduzidas a cursos semestrais. É muito mais assinalável, porque não se compreende que um curso de filologia românica, em Portugal, não se organize relativamente ao ensino do português. Nem também se compreende que, em terra portuguesa e para portugueses, um curso funcione ao exclusivo serviço de uma cultura estranha.

O povo francês realiza, no seu apogeu, a cultura mediterrânea. Desta cultura, também chamada «europeia», a francesa representa a perfeição, a fase terminal. Não surpreende, por isso, que a língua que melhor a exprime seja uma língua acabada, facetada, paradigmática. Pelo contrário, a língua portuguesa é uma língua atlântica. A indefinida superfície das águas desperta na alma do nosso povo a esperança numa inefável ilha remota. Connosco um outro mundo desperta. Por isso, dos descobrimentos a interpretação no sentido da cultura europeia é constantemente desmentida pelo mito do Encoberto.

Fácil é depreender agora quanto inibe a nossa língua o seu compromisso com a francesa, se não bastasse já o realce da autonomia idiomática. Seria este momento o oportuno para denunciar o verdadeiro motivo por que, de toda as culturas estrangeiras, a francesa tenha sido a que, no domínio da extensão, mais poderoso influxo exercesse sobre nós, se não nos preocupássemos, sobretudo, em mostrar que o ensino liceal e técnico não está bem confiado aos licenciados em filologia românica, o que, aliás, antes de ter lido estas linhas, o leitor certamente tinha visto já.

 

António Telmo



[1] A Bem da Língua Portuguesa, ano IV, n.º 2, Lisboa, Fev. 1953, pp. 75-76.

 

 

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