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UNIVERSO TÉLMICO. 41

20-09-2016 10:41

NOTA PRÉVIA

Sabemos hoje, pelos estudos de Anita Novinsky e da escola de estudos judaicos que criou na Universidade de São Paulo, que a construção do Brasil foi sobretudo obra de cristãos-novos fugidos à Inquisição. Bahia, Pernambuco, São Paulo são, desde muito cedo, pólos de proliferação marrana. A esta luz, creio eu, haverá que reequacionar a propagação do culto popular do Espírito Santo em solo brasileiro.

Falemos entretanto de gigantes. O grande Raposo Tavares, o maior dos bandeirantes, confessou matar em nome da lei de Moisés. Um antepassado de Fernando Pessoa andou por terras de Vera Cruz durante vinte e cinco anos e acabou reduzido a cinzas num auto-de-fé lisboeta. Anita Novinsky lembra, a propósito, que os versos de Álvaro de Campos ganham toda uma outra significação a esta luz.

Entre nós, apesar dos estudos de Moisés Espírito Santo, Jorge Martins ou Maria Helena Carvalho dos Santos, entre outros, muitos continuam a varrer o judaísmo português – e essa sua tão problemática como original metamorfose que foi e é o marranismo – para debaixo de um tapete. O Dicionário Essencial da Língua Portuguesa, denuncia Jorge Martins, não diccionariza a palavra judeu, mas não esquece os termos cristão e muçulmano. E o editor literário dos Apólogos Dialogais de Dom Francisco Manuel de Melo, fazendo quanto pode, ao abordar o Tratado da Ciência Cabala, para afastar o Melodino da pista judaica, cita inúmeras vezes a monumental biografia que Edgar Prestage dedicou ao seiscentista, mas esquece que a páginas 285 desse livro se refere a ascendência judaica do polígrafo, cristão-novo pelo lado materno.

O texto que agora se publica, desprovido de referências bibliográficas e passível de revisão em ordem à sua publicação, corresponde ao que disse no passado sábado na Sala dos Actos da Câmara Municipal de Alenquer, no decurso do Congresso Internacional do Espírito Santo. Como levo Agostinho da Silva bem a sério, há muito que interiorizei a velha máxima do seu alter ego Kertchy Navarro: só pode ser seu discípulo quem for contra ele. Não se trata, pela minha parte, de um propósito deliberado ou programático, mas tão-somente de manifestar franca e lealmente as discordâncias que mantenho com o Estranhíssimo Colosso no que respeita à sua visão do culto popular do Divino. Agostinho da Silva é porventura, a meu parecer, o mais complexo – e porventura o mais estimulante – caso de marranismo da cultura portuguesa do século XX, porque é aquele em que o dramatismo do ser dividido alcança o seu paroxismo, sempre em busca daquela síntese de que falava António Telmo e que o conduz a um novo e superior entendimento da religião. Não por acaso, na sua última entrevista de imprensa, frisava já o pensador, muito judaicamente, que o culto era “apenas” o culto da obra do Divino. Claro que isto pode brigar com a visão joaquimita que, nessa mesma entrevista, parece manter da festa do Império. Que o debate prossiga…   

P. M.

 

Agostinho da Silva, Joaquim de Flora e a demanda do Divino

Pedro Martins           

 

1. Agostinho da Silva pode ser considerado um pensador neojoaquimita, inscrito n’a posteridade espiritual de Joaquim de Flora, tal como Henri de Lubac a entendeu na monumental obra homónima, por ter recolhido «a ideia fundamental que Joaquim havia retirado da sua exegese: a de um «terceiro estado» a vir, no tempo e sobre esta terra, que seria a Idade do Espírito». O portuense, para quem «só pela teologia se poderá compreender a História», vai consequentemente adoptar e adaptar a tripartição do movimento histórico do monge calabrês. Na reelaboração de Agostinho, os estados triádicos designam-se, correspondentemente, por Idade Antiga, Idade Média e Idade Nova. A Idade Antiga termina quando a Igreja institucionalizada muda a face do Império, e isso basta para que a sua Idade Média se inicie muito depois da Idade do Filho de Joaquim, que começou a prosperar com a Encarnação e terá terminado em 1260. A Idade Média agostiniana ainda decorre.

Tal como os primeiros joaquimitas, Agostinho crê, expectante, na iminência da nova era.  Pressente-a pelos sinais, mas não sabe quando, ou onde, se iniciará, o que logo nos recorda a sua Vida de Lamennais, pós-joaquimita a quem Lubac consagra extenso capítulo no seu tratado. Posto que o trilho, fecundo, esteja inexplorado, não me alongarei na análise da influência que Agostinho, manifestamente, recebeu deste seu biografado. Assinalarei, somente, que das diversas fases da obra do francês colheu o português inúmeros contributos, incorporados na formação diacrónica do seu neojoaquimismo, pela revelação de uma experiência dramática com seu quê de comparável à evolução espiritual que irá viver, e que parece dar razão a Henry Corbin quando afirma que é no interior hierofânico de cada alma, e não na imanência do tempo histórico, que a Igreja de João sucede à de Pedro.

 

2. Nos escritos numerosos que, após o retorno a Portugal, em 1969, Agostinho dedica ao culto popular do Espírito Santo, não encontramos já a perspectiva crítica da heresia de Joaquim vigente na fase brasileira. Nesta, em que define e apura a estruturação principial, axiológica e cronológica das três Idades, não deixa o filósofo de censurar a audácia joaquimita. Repele-lhe o corolário do desaparecimento da Igreja institucional, à vista da injunção que, no rigor dogmático da teologia católica, determina a coeternidade das hipóstases trinitárias. No intuito de aproveitar a conveniente sedução do esquema joaquimita, surpreende-se o afã de Agostinho na reelaboração da “Terceira revelação”. Num escrito de Só Ajustamentos que a toma por título, fá-la refluir ao recesso psíquico da individualidade, resguardando-a de vicissitudes sociológicas, no que antecipa a abordagem angelológica, já aflorada, que Henry Corbin, no início dos anos 70, propõe do joaquimismo para o preservar da mácula imanente da mundanidade.

Posto que Lubac o omita a esse respeito, é possível incluir a leitura de Corbin nas interpretações «diversamente minimizantes», porém «dificilmente conciliáveis», do pensamento joaquimita que o cardeal agrupa pela comunidade do esforço com que buscam atenuar a «violenta interpretação» textual operada por Joaquim e «reconduzir a ideia da terceira idade a visões mais tradicionais». Encontramos, aliás, nestas palavras de Lubac uma síntese que se aproxima da tese de Corbin:

 

Para outros, sob a exterioridade de um desenvolvimento histórico, Joaquim teria simplesmente querido enumerar as etapas ascendentes da vida espiritual; as figuras do Liber Figurarum, considerado autêntico, sugeririam três fases místicas, mas somente duas idades históricas, antes e depois de Jesus Cristo.

  

Se bem que, pelo propósito operativo, transcenda a hermenêutica restritiva de Corbin, Agostinho, de alguma sorte, navega, por esses anos, nas mesmas águas. «A terceira revelação», escreve,

 

é a da íntima e profunda e secreta relação de cada um consigo próprio. Como poderia ela vir de fora com um pregador, um anunciador, um evangelista, que eu e os outros pudéssemos ver com os nossos olhos de carne e pudéssemos arquivar nos pobres e falíveis anais da nossa história? Cristo foi o mensageiro último de que os homens puderam ser testemunhas. O que não quer dizer que tivesse sido a última mensagem.

 

Ao dealbar a década de 60, em “Considerando o Quinto Império”, reformula essa revelação pelo anúncio «de que a criança deve ser o modelo de vida e que por ela se estabelecerá na terra o Reino do Espírito Santo». Por muito que se queira aproximar esta criança divinizada dos viri spiritualis de Joaquim, será forçoso reconhecer quão longe estamos já do visionário calabrês. Na recusa da heresia joaquimita desenha-se a invenção agostiniana.

A Educação de Portugal, escrita logo em 1970, inaugura uma fase de reconciliação com o joaquimismo. Ainda quando assinala a heresia, Agostinho limita-se a identificar-lhe os termos, sem tomar outro partido que não seja o de se conformar com o bom abade. Compreende-se. No iter evolutivo do seu pensamento, já a Liberdade sobreleva a Fraternidade, afrouxando os ditames de submissão hierárquica que esta, sob pena de quebra, opressivamente predispunha.

 

3. Parte do que Agostinho afirma do culto popular do Espírito Santo levanta-nos problemas pelos seus frágeis fundamentos históricos e etnológicos. Afeiçoada a ciência dos factos aos prejuízos do profeta, só como recriação mítica poderemos considerar sem mácula a sua invenção poética. 

 A problemática concepção agostiniana, bem patente e insistente em escritos vários dos anos 80, mas já amplamente desenvolvida no artigo “Algumas considerações sobre o culto popular do Espírito Santo”, de 1967, advém do modo como relaciona o culto com o joaquimismo, supostamente chegado a Portugal no reinado de D. Dinis, pela mão de Isabel e dos franciscanos espirituais que a acompanharam.

Diz Agostinho que «logo que a nova rainha ocupou a vila de Alenquer, seu presente de noivado, surge em Portugal, espalhando-se rapidamente por todo o País, o culto popular do Espírito Santo ou do Divino». Diz também que,

 

na sua forma mais perfeita, consistia a Festa, celebrada por altura do Pentecostes, na coroação de um imperador do Império do Espírito Santo, geralmente uma criança, na celebração de um banquete ritual, gratuito para todos que o quisessem, e no libertarem-se presos da cadeia local.

 

E acrescenta:

 

Com a Contra-Reforma, de estrita ortodoxia, o culto declinou rapidamente em Portugal continental, dele só restando vestígios, mas algumas ideias fundamentais aparecem em escritores como Fernão Lopes, Camões, Vieira e Fernando Pessoa, e cerimónias populares são ainda vivas nos Açores, na Madeira e no Brasil.

 

No texto citado, “O homem e as civilizações”, embora reconheça, pensando talvez em Prisciliano, que se terão «agregado à concepção de Joaquim de Flora elementos de origem mais antiga que faziam parte da vivência do povo», Agostinho, como vimos, afirma que foi em Alenquer, e com a nova rainha, que o culto surgiu.

Moisés Espírito Santo, nas Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa, lembra, porém, que certas capelas beirãs do Espírito Santo já existiam quando Isabel nasceu; e que Rocha Beirante, no seu Santarém Quinhentista, «diz igualmente que o culto do Espírito Santo em Santarém é anterior à Rainha Santa». No mais, o autor sublinha uma evidência:

 

Os cultos populares não são, nem nunca foram, nem poderão ser, «instituídos» por decreto ou pela boa-vontade de uma pessoa, seja ela rainha, beata ou santa. Certos autores tomam as sociedades e as culturas por multidões descerebradas que se põem a cultuar um deus por ordem ou a pedido de um rei ou governante. É possível imaginar um dirigente ou monarca, ou as respectivas esposas, a decretar um ritual, a ordem das procissões, os dizeres dos pendões? Como se os povos precisassem das directivas dos dirigentes para fazer a sua festa! Os rituais, como as religiões, obedecem exclusivamente aos ditames e à dinâmica da cultura e sempre inseridos na tradição. Aquela paternidade é uma invenção de Frei Manuel da Esperança, cronista da Ordem franciscana. No «dia da fundação», em Alenquer, a Rainha Santa até teria cercado a vila com um «pavio de cera a arder, o qual, preso à igreja do Espírito Santo, dava a volta à vila»… (Invenção milagrosa! Como pode um pavio de cera arder nestas circunstâncias?) Os informantes do cronista teriam referido «um círio», não «um pavio»; um círio é a deslocação de uma povoação, atrás de um pendão, a um lugar santo em obediência a um voto antigo, podendo tomar a forma de uma procissão; o círio de Alenquer dava a volta à vila a partir da capela.   

 

Diferente será afirmar que o patrocínio régio possa ter contribuído para a institucionalização do culto popular, conferindo-lhe «um aparato nunca antes visto», como acentua Manuel J. Gandra. Nesta linha, admitamos, como hipótese de raciocínio, que com Dinis e Isabel se tenham insinuado laivos de joaquimismo no ritual da Festa do Império, ficando, porém, por averiguar, se, e em que medida, o culto assim afeiçoado irradiou em território nacional, notadamente por efeito da acção real.

A respeito do elo que supõe ligar o joaquimismo à festa do Império, Agostinho, de ordinário assertivo, denota cautela. Pelo menos nas “Dez Notas…” de 1985, onde começa por afirmar que «parece assente, sob o ponto de vista histórico, que o Culto Popular do Espírito Santo (…) tem sua origem no pensamento de Joaquim de Flora», para, mais à frente, não deixar de reconhecer que

 

da questão teológica não há, como era de esperar, nenhum vestígio no Culto Popular, a não ser que a Igreja, sobretudo depois de Trento, sempre fez todo o possível por eliminar o Culto. Mas nada nos garante que não haja entre essa ideia fundamental de Joaquim de Flora e as vivências do Povo de Portugal um elo da maior importância, que por outro lado se liga, ao que penso, ao problema da existência ou não existência de pensamento filosófico na Cultura Portuguesa, quer nos intelectuais quer no Povo.

 

Concluindo pela usual resposta negativa a esta sua velha questão, porque, «para o Português, o importante não é a Filosofia, é a Vida, com toda a sua variedade e todas as suas contradições, que pode não aceitar, mas corajosamente assume», o pensador atribui em seguida aos «certamente analfabetos portugueses» a façanha de resolverem, no contexto «concreto» em que se moviam, os «problemas de bem difícil contexto teológico e filosófico» em cuja solução não foram tão longe «os atilados, inspirados e eruditos teólogos».

Que solução foi essa? Uma «popular intuição»: «o estabelecer-se um Império do Espírito Santo» não «implicava o desaparecimento da Igreja de Cristo; Deus se revelaria sempre trino em cada uma das Pessoas que nele haveria que distinguir, tanto no Eterno como no Tempo, e até, talvez, haveria uma Divina Igreja cada vez mais se alargando no domínio dos fenómenos, cada vez abrangendo maior número de homens».

Fica por saber o que, sem o desaparecimento da Igreja de Cristo, resta afinal do problemático joaquimismo. Quando, em seguida, concretiza as feições da nova idade histórica tal como os portugueses a teriam visionado, depara-se-nos o intuito de, «sem quebra com a Igreja, ou as Igrejas, anteriores, levar esta última, verdadeiramente católica ou universal, ao todo da Ecúmena». Reincidindo nas ideias medievas da sua fase brasileira, Agostinho apresenta-nos um proselitismo de conversão mais paraclético do que cristológico, desta sorte favorecido pelo desvio da ênfase para a unidade essente do Espírito. 

Fica, sobretudo, por entender o prodígio dessa intuição, que não se vislumbra possível sem o conhecimento dos termos – filosóficos e teológicos – do problema a resolver. Na obra já citada, conta Moisés Espírito Santo como «Frei Bartolomeu dos Mártires deplorava a ignorância dos Minhotos que pensavam cair nas boas graças do bispo saindo ao seu encontro a gritar «Viva a Santíssima Trindade, que é irmã de Nossa Senhora!». E acrescenta:

 

Na região da Batalha, onde se celebra, pelo menos desde o século XV, um importante e imponente bodo de pão «contra as formigas», em honra da Santíssima Trindade, supõe-se que o ente a quem se dirige o culto é «uma santa mais importante do que as outras», pois é tratada no superlativo e tem um nome feminino. Na percepção religiosa dos Beirões, nem sequer está implícito que Deus seja eterno, porque se ouve dizer com a maior das canduras: «Isto já vem dos tempos antigos, ainda Deus não era nascido.» Jesus Cristo é a única expressão de Deus. Para dois mil anos de cristianismo, o balanço não é encorajador!

 

Ainda segundo o etnólogo, episódio convergente foi vivido por Jaime Cortesão, ao verificar ocasionalmente que, perante uma escultura da Santíssima Trindade, impropriamente chamada do Espírito Santo, os fiéis não identificavam este último

 

com a pomba, mas com o Ancião de barbas onduladas, coroado, e de semblante carregado, que sustém a cruz nas mãos. Jaime Cortesão apercebeu-se bem desse importante pormenor; notou o facto mas, segundo ele próprio diz, não entendeu a razão. A razão é esta: para os Judeus-secretos, o Espírito Santo equivale a Yaveh, que é o ancião da escultura.

 

Eis o motivo por que Agostinho não encontrou no culto popular do Espírito Santo vestígios da questão teológica suscitada pela heresia joaquimita: nunca ali terão estado presentes. Escreve Moisés Espírito Santo: «O culto vem directa e inteiramente da tradição hebraica». Acto contínuo, enfatiza: «O Espírito Santo dos cultos populares não é a terceira pessoa da Trindade Cristã». É, sim, conformemente àquela tradição, a força ou princípio vital que enforma, sustenta e renova o Universo, tão certo ser o judaísmo o culto que electivamente se dirige ao aspecto criador da Divindade: os Elohim que, no Genesis, proclamam a bondade da criação.

A argumentação do etnólogo é opulenta e tendencialmente exaustiva, como se verifica pela leitura do seu estudo, escorado no fundo conhecimento das religiões e da tradição etnográfica e num trabalho de campo desenvolvido na década de 80, sobretudo nas regiões de Leiria e da Beira Baixa, reconhecidos pólos de proliferação judaica onde, no terreno, registou fenómenos cultuais persistindo pelos séculos.

Não obstante, Agostinho, na mesma época, parece apenas levar em conta o culto do Divino nos Açores, de resto de origem beirã. É possível que esta redução influencie o erro de, em “O Império do Passado e do Futuro”, afirmar que «logo», isto é, desde a suposta criação da festa do Império pela Rainha Santa Isabel, o povo coroou «seu real monarca a genial imaginação da criança, sufocada por escola alguma», depois de, como se viu, ajuizar que isso sucedia «geralmente».

Não há notícia histórica da coroação de um menino nos primórdios do culto. Por longo tempo, coroaram-se adultos – homens do povo, gente de baixa condição – sem que se possa asseverar quando e por que razão surge a criança no centro da cerimónia. Segundo António Quadros, nas Festas do Penedo, em Sintra, ainda activas no século passado, «as coroas (feitas inicialmente para adultos), são grandes demais para os meninos Imperadores, pelo que há sempre pessoas que as seguram, simulando-se no entanto que estão colocadas nas cabeças das crianças».

Noutros lugares, como Alcabideche, onde as festas perduraram até ao princípio do século XX, continuaram os adultos a ser coroados. Em Nisa, no século XIX, o imperador era um mancebo. No litoral, como na Beira Baixa, Moisés Espírito Santo mostra ser regra a coroação de um «benfeitor» – um emigrante que enriqueceu, um homem próspero da aldeia – como imperador ou juiz.

Por que surge a criança coroada? Não se sabe. Mas parece insustentável a razão sugerida por Agostinho, na qual, aliás, suspeito existir anacrónica projecção da sua pedagogia.

Este intento parece tê-lo conduzido à perigosa inversão simbólica concretizada pela divinização da criança. Sempre Agostinho se mostrou pouco atreito ao sério código ocultista. Daí, a meu ver, a dificuldade do seu ecumenismo em superar os dogmas. Se assim se pode dizer, é um exoterismo sem esoterismo. A boa vontade, decerto louvável, é precária.

Vem a propósito o seu ensaio “De como os Portugueses retomaram a Ilha dos Amores”, onde emerge a figura, jocosa e dúbia, do estucador de Alpiarça, um pobre diabo que replica António Telmo. Não terá Camões, como pretende Agostinho, aludido a Zoroastro ou à Cabala (que implica sobretudo Fiama)? Com respeito àquele, e embora o tenha feito, por mais de uma vez, como Telmo mostrou, não precisaria sequer de o fazer. Bastava-lhe a insólita atenção à «matéria perigosa» do cristianismo gnóstico de Tomé, com a qual pôde Telmo, no Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, encontrar um elo de ligação entre a Pérsia e o priscilianismo.

Esqueceu-se Agostinho do que talvez soubesse por René Guénon: as verdades tradicionais não se escancaram. Revelam-se. Mostram-se para se ocultar. É da natureza das coisas: esotérico quer dizer interior. E Guénon adita razões de defesa: da doutrina e do iniciado. Se é preceito evangélico não dar pérolas a porcos, seria insânia oferecê-las aos monstros do Palácio dos Estaus. Agostinho passa como cão por vinha vindimada perante o labor probatório do discípulo, que, como o de Fiama, é plausível quando não é inequívoco.

Para ele tudo vem já do fundo cultural inato dessa improvável abstracção a que chamou Portugal, «como se tudo o atribuído a persas, indianos ou judeus fosse do tesouro, comum e nativo, dos portugueses de todos os tempos». Curiosamente, relançando antiga freima, reincide na sugestão de que Camões, na Ilha dos Amores, sofreu a influência de Joaquim de Flora, porque ali soube congraçar o tempo com a eternidade, «como se a nossa peça fundamental» – escreve – «embora com personagens diferentes, uns eternos, outros perituros, se representasse em dois palcos da mais exacta correspondência», com o que Camões daria expressão a um conceito «tão da natureza do povo de Portugal que imediato o inseriu em sua religião popular».

Colossal estranheza! Se realmente sabemos do encontro do tempo e da eternidade na Ilha, foi porque Telmo, vivendo a verdade do símbolo sob o signo de Hermes, o demonstrou numa leitura aguda e arguta, que reconduz o desenrolar da «peça» ao palco luminoso do mundus imaginalis, onde os espíritos se corporizam e os corpos se espiritualizam.

Desprovida daquela acuidade que só a exacção da letra, na extensão do texto e no contexto do entrecho, à vista de uma significação global, permite garantir, a leitura agostiniana da Ilha instituiu uma vaga alegoria: rochedo batido pelas ondas do providencialismo no oceano das ideias. Tudo isto é irónico em quem conviveu com Eudoro e recomendou a Telmo a leitura de Américo Castro e Henry Corbin…

Num ensaio que dediquei ao presumível marranismo de Agostinho, avancei a hipótese, congruente com o criptojudaísmo do culto, de a coroação do Menino traduzir a intromissão, no cerimonial, da figura de Metatron, o Anjo da Face da kabbalah que Telmo viu cifrado no Portal Sul dos Jerónimos. «Tal é a razão», ensina André Benzimra, «pela qual se lhe dá o nome de pequeno YHVH. E se ele é representado sob os traços de um adolescente, é para se significar que se trata de um Deus ainda na infância.» Intermediário celeste, mediador do Céu e da Terra e irmão-gémeo da Shekinah, responde ainda ao nome de Schadaï, que, na lição de Benzimra, é «o federador do Céu e da Terra, o grande Reconciliador de qualquer discórdia», e que, naquele seu outro aspecto a que melhor convém o nome de El-Schadaï, «será chamado a desempenhar um papel primordial nos tempos messiânicos». Numa perspectiva cristo-angelológica Metatron surge, assim, em correspondência com o Espírito Santo.

Aqui, importa de novo citar Moisés Espírito Santo, quando trata da figura do Imperador no culto do Divino: «Os Hebreus não faziam distinção entre Deus de Israel, Rei de Israel, «Anjo do Senhor» ou Enviado de Deus e Messias». Pouco adiante, acrescenta: «O Rei de Israel tanto era o «Anjo de Deus» como o próprio Deus, que toma a figura humana para executar as suas vinganças. Segundo a concepção religiosa dos Semitas, Deus desdobrava-se em personagens terrestres». Por fim, consigna:

 

É muito significativo que, da região de Leiria à do Fundão, se designe a personagem do imperador, do rei ou do juiz desta cerimónia como o «Espírito Santo», isto é, a sua incarnação ou representação terrestre. O imperador é um sósia ou um duplo do Espírito Santo, do Messias. O ritual constitui assim um anúncio, uma catequização e uma promessa desse evento.

 

Eis um dos inúmeros argumentos que o etnólogo aduz na demonstração de que o culto popular do Espírito Santo mais não é, entre nós, na sua essência profunda, que uma manifestação críptica das celebrações do Pentecostes judaico.

Esboço um sorriso, ao ler, em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa, que

 

os judeus por seu turno não levantavam oposição alguma a assistir reverentemente a esse culto do Espírito Santo, o qual, como já foi dito, descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado.

 

Não preciso de explicar por quê.

           

Alenquer, 17 de Setembro de 2016.

UNIVERSO TÉLMICO. 40

19-09-2016 10:41

O Marranismo e o Culto do Espírito Santo em Portugal

António Carlos Carvalho

Somos sempre mais, e mais antigos, do que imaginamos ou do que julgamos  saber. Nós, portugueses, e este País que é o nosso.

1496-97: com a expulsão e conversão forçada termina em Portugal o que Elias Lipiner chamou, e bem, «o tempo dos Judeus», começando então o tempo dos cristãos-novos, que irá durar até ao governo do Marquês de Pombal, o qual, em 1773, acabou com a distinção entre cristãos «novos» e «velhos».

Claro que os «baptizados em pé» mudaram de nome, adoptaram novas práticas religiosas para os outros verem, mas dentro das suas casas e dos seus corações continuaram a ser quem sempre tinham sido: portugueses e Judeus. E assim nasceu um cripto-Judaísmo, um Judaísmo secreto, um marranismo, algo muito complexo e ainda hoje pouco conhecido que acabou por caracterizar os portugueses judeus. Uma maneira de ser e de estar na vida marcada profundamente pela sua ambiguidade e pela duplicidade: uma vida aparente, pública, e outra secreta; um nome para a rua e outro para se usar dentro de casa; uma religião oficial e outra, a verdadeira, seguida em privado, com as portas e as janelas fechadas. Alguns chamaram a isto hipocrisia, outros viram todo este comportamento como uma série de engenhosas estratégias de sobrevivência – sobretudo a partir do momento em que o chamado «Santo» Ofício da Inquisição se instalou entre nós, na primeira metade do século XVI, e as vidas de todos, públicas e privadas, se tornaram objecto de vigilância cada vez mais apertada. Então tornou-se necessário esconder tudo. (Curiosamente, ainda esta semana foi noticiado que tinha sido encontrada uma Torah com mais de 400 anos na Covilhã, escondida numa casa particular).

Mais do que uma religião, o Judaísmo é um conjunto de tradições ancestrais, com milhares de anos, que dão razão de existência ao que significa ser-se Judeu. Essas tradições, transmitidas de geração em geração, são constituídas por ritos próprios de fundação bíblica, celebrados de acordo com o calendário das sete festas principais: Roch Hachanah, o Novo Ano, Yom Kippur, o Dia do Perdão, as três festas de peregrinação, Pessah, Páscoa, Chavuoth, Pentecostes, e Sucoth, a festa das Cabanas – cinco festas promulgadas por Deus, segundo a Torah – e ainda duas festas instituídas pelos próprios homens, Purim, a festa de Esther, e Hannukah, a festa das Luzes.

Obrigados a viver uma vida dupla, e às vezes tripla, os marranos deitaram mão a tudo o que puderam imaginar para poderem continuar a celebrar essas festas e rituais, que eram a sua herança sagrada e pelos quais se definiam, e que, inclusivamente, lhes lembravam cíclicamente quem eram e quem deviam continuar a ser.

Não é difícil perceber as dificuldades que tinham de enfrentar para que esse calendário sagrado fosse cumprido. O próprio Shabbath tinha de ser celebrado no segredo da casa, com os candelabros ou candeias acesos dentro de armários...

Mas havia pelo menos uma festa que podiam celebrar às claras, mesmo nesse regime opressivo e de quotidano vigiado: a festa de Chavuoth. Falamos do Pentecostes, da festa do Espírito Santo, ou do Divino, um culto essencialmente popular, celebrado em quase todo o País desde tempos muito antigos, embora depois tivesse sido oficializado por D. Dinis e pela rainha Santa Isabel.

Assim, aquilo que para os cristãos-velhos significava essencialmente a descida do Espírito Santo sobre os Apóstolos, para os cristãos-novos era algo substancialmente diferente, com um simbolismo múltiplo tendo raízes na Torah – a festa do dom dessa mesma Torah no Sinai, 50 dias depois de Pessah, a renovação da Aliança no Sinai, a festa das Ceifas, das Colheitas ou das Primícias.

Nessa festa de Chavuoth lê-se o rolo ou livro de Ruth, a mulher justa, humilde e recatada, que escolheu abrigar-se sob as asas da Presença Divina, da Ruah ha-Qodesh, do Espírito de Santidade que inspirou os profetas e que estava presente, pairando acima das águas, logo no início do Génesis. O ambiente desse livro-rolo de Ruth é todo ele o das colheitas, das ceifas. De festa das primícias, bem presente na Festa dos Tabuleiros de Tomar, tabuleiros esses que lembram pela sua forma os rolos da Torah, também encimados por uma coroa imperial – a coroa que simboliza a Vontade divina.

E Ruth é a bisavó do rei David, o rei messiânico, que terá nascido e morrido nesse mesmo dia de Chavuoth.

E as asas sob as quais Ruth escolheu abrigar-se lembram as asas da Pomba, que é também símbolo de Israel. Repare-se que é uma pomba e não um pombo, tal como Ruah, de Ruah ha-Qodesh, é uma palavra feminina.

Chavuoth é também a festa da realeza, a de Deus, Rei dos Reis – daí a coroa e a coroação do Imperador, que era sempre um homem pobre e humilde (antes de passar a ser um menino), como David e uma figura do Rei-Messias. E essa é uma outra faceta de que esta festa se reveste: o seu carácter messiânico – o anúncio de um tempo em que não haverá fome nem sede (por isso o bodo da festa inclui pão, carne e vinho para todos), em que não haverá mais injustiças (daí a libertação dos presos das cadeias, como ainda se pode ver nas Festas do Divino em Paraty, Brasil) e em que reinará a paz no mundo e o reconhecimento universal  do Deus Uno, tal como foi anunciado pelos profetas inspirados pelo Espírito de Santidade – como Obadias, cuja profecia inclui uma referência a Sefarad, o nome bíblico da Península Ibérica.

Os portugueses marranos souberam integrar-se nessas festas populares, tornando-se «foliões do Espirito Santo», membros das irmandades que o celebravam – tal como se tornaram membros de outras irmandades e confrarias, construindo capelas e até mesmo mandando fazer estátuas de santos que para eles tinham outro significado. Onde os cristãos velhos viam este ou aquele santo ou santa, ou até mesmo a Virgem em pose majestática, os marranos viam a rainha Santa Esther, uma espécie de padroeira dos cripto-Judeus, também eles obrigados a esconder a sua verdadeira identidade.

Temos um bom exemplo dessa prática no caso da estátua de Esther «disfarçada» de Nossa Senhora dos Campos no mosteiro de monjas com esse nome, perto de Montemor-o-Velho, no início do século XVII, em que algumas monjas judaizantes estavam igualmente ligadas ao culto de S. Diogo, supostamente S. Diogo de Alcalá, franciscano do século XV, mas na verdade tratava-se de Frei Diogo da Assunção, frade do Mosteiro de Santo António da Castanheira, aqui perto de Alenquer – um judaizante que anunciava a vinda em breve do Messias e que morreu na fogueira da Inquisição em 1603. Esse outro «S. Diogo» foi venerado como mártir por uma confraria em Coimbra, presidida pelo cripto-Judeu António Homem, lente da Universidade, especialista de Direito Canónico, que viria a morrer igualmente na fogueira em 1624. O mesmo Dr. António Homem que muito se bateu pela canonização da Rainha Santa Isabel, em quem ele e os outros membros da confraria viam a representação da Santa Rainha Esther.

 

Em resumo: quem se vê perseguido até à morte por ser diferente, por ter outra religião e outro pensamento no tempo da religião única e do pensamento único, agarra-se ao que pode para sobreviver, ele próprio e as suas tradições religiosas. Foi o que aconteceu em Portugal, durante quase três séculos, no tempo da Inquisição.

Termino lembrando o ensinamento do sábio Hillel, contemporâneo de Jesus, procurando explicar em breves palavras a essência da sua religião: «Não faças aos outros o que não gostavas que te fizessem a ti. Isto é o essencial. O resto é comentário. E agora vai e estuda.»

 

Bibliografia de apoio:

 

«Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa», Moisés Espírito Santo», ed. Assírio e Alvim, 1988

«Symboles du Judaïsme», Marc-Alain Ouaknin, ed. Assouline, 1995

«Le Chandelier d’Or», Josy Eisenberg e Adin Steinsaltz, ed. Verdier, 1988

«Confraria de S. Diogo – Judeus Secretos na Coimbra do séc. XVII», João Manuel Andrade, ed. Nova Arrancada, 1999

«A Terra Prometida», António Telmo, ed. Zéfiro, 2014

«Um António Telmo», Pedro Martins, ed. Zéfiro, 2015

«O Encoberto», Sampaio Bruno, ed. Livraria Moreira – Editora, 1904

Idem, «Os Cavaleiros do Amor», ed. Guimarães Editores, 1960

«Histoire des Juifs Portugais», Carsten L. Wilke, ed. Chandeigne, 2007    

DOS LIVROS. 50

16-09-2016 21:38

Louvor da matéria

 

1. O «manuelino» é a arquitectura da Árvore, porque a matéria do mundo é a madeira.

2. A madeira é o que cresce indefinidamente, é o princípio da multiplicação sem divisão.

3. As árvores crescem em direcção ao Sol, mas quanto mais se aproximam da luz mais fundo mergulham as raízes na terra.

4. Alimenta-se de luz a árvore do mundo, como as pobres e belas árvores dos nossos campos.

5. A matéria é a árvore sephirótica.


6. Há corpos sem matéria de tão densos que são.

7. Todos os pontos da totalidade infinita estão unidos entre si por uma árvore invisível.

8. Esta árvore não cresce de baixo para cima, mas do alto para o abismo. Compete ao homem justo inverter em si a corrente que vem das alturas, concitando as vozes mais fundas do abismo a um cântico de louvor.

9. Eu sou o fruto da árvore; serei a semente que apodrecerá nas águas inferiores ou que germinará nas águas superiores, criando um novo futuro.

10. Os últimos produtos da árvore são as folhas secas, que dela se soltam, que se amontoam no chão do Outono, até que venha o vento frio do Inverno e as espalhe sobre a terra para formar o húmus onde as sementes germinarão. 

11. As belas cores do Outono são o resultado da decomposição dos corpos (Gustavo Meyrink).

12. O mal são as cascas, o exterior, o rígido que está morto no vivo, mas que pode ser queimado, purificado no fogo do fim do mundo.

13. Em grego, matéria diz-se úlê, palavra que corresponde a silva no latim. Em português, matéria é madeira, que se arranca das florestas.

14. Se quando falamos em matéria pensássemos em madeira, não diríamos tantos disparates sobre o que ela é, sobre o que são as suas relações com o espírito. Aristóteles e Platão e os outros gregos pensaram a matéria através de uma palavra que tinha como sentido imediato madeira ou floresta. Foi uma grande vantagem.

15. Há ainda outra conotação, matéria e mater, matéria e mãe.

16. As raízes e as matrizes. 

17. Uma árvore pode ter muitas raízes, mas o número exacto é três. Pode ter muitos ramos, mas o número exacto é sete.

18. Um ensinamento maçónico: ««O Grande Arquitecto do Universo edificou o Templo do Mundo sobre a Madeira».

19. Por isso a arte da carpintaria, que parece auxiliar a maçonaria, é-lhe anterior.

20. A planta do Templo é a árvore dos números e das letras. Por isso, uma árvore pode ter muitas raízes, mas o número exacto é três: keter, hochmah, binah, a coroa, a sabedoria e a inteligência. 

Daqui tudo deriva e tudo cresce, conhecendo o Abismo. 

Por isso uma árvore pode ter muitos ramos mas o seu número exacto é sete.

21. A suprema arte do carpinteiro trabalha com a matéria do mundo e os aprendizes têm de transformar-se em pássaros para não sentirem a vertigem sobre os altos andaimes.

22. Em tiferet, no centro dos centros, já não há o perigo de cair, porque o baixo é o alto e o alto é o baixo. O Sol não cai, imóvel no centro do seu sistema. Pois para que lado se há-de cair, se já não há lado?

23. O ser em si dos filósofos, o ser que em si tem o seu princípio, é como um pássaro que voa de ramo em ramo, sustentado, não pelas asas, mas pelo que move as asas.

24. O ser em si, livre por não ter o seu princípio noutro ser, é, mais do que o pássaro, o voo.

25. O pássaro foi pensado na ideia (em Aziluth) como voo puro, foi criado como arcanjo em Beriah, formado na energia de uma imagem em Yetzirah, feito como pássaro em Aziah. Mas de keter a malcuth, pela linha vertical, a ideia é um relâmpago, onde o pássaro é o voo e o voo o pássaro.

26. O pássaro dos Jerónimos, da coluna do oriente, é um galo, a visão imediata do Sol, a essência ígnea do homem redimida de seiva em flor vermelha.

27. Nos reis, em D. Manuel por exemplo, o galo é substituído pela águia, essa senhora dos vastos domínios do Sol, ser absoluto sem vertigens.

28. A vertigem é a sensação do vórtice que anima o mundo, sem se estar no centro desse vórtice. A sensação periférica.

29. E até lá? O pavor da queda e a sedução dela.

30. Meu Deus, que farei de mim quando me encontrar sem este corpo em que me estabeleci e firmo e que guarda a minha alma? »

 
 
António Telmo
 
 
(Publicado em Filosofia e Kabbalah seguida de Álvaro Ribeiro e a Gnose Judaica, 2015)
 

DOS LIVROS. 49

06-09-2016 14:43

Gurdjieff

 

  — Ó  meu cavalo inquieto

       Diz-me lá o que tens tu?

  — Não consigo sossegar

       Com as moscas de Belzebu.

  — Das moscas de Belzebu

        Já te vou a livrar,

        Já te ponho a correr

        Para longe as enxotar

        Até o mundo morrer

        Até o mundo acabar.

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

VERDES ANOS. 20

03-09-2016 14:43

O SOM E O SONO NA PSICOLOGIA DE HENRIQUE BERGSON[1]

 

Entre os erros, já denunciados, do nosso ensino humanista, o da filologia, do curso de românicas das Faculdades de Letras, constitui, para quem saiba ver, um dos maiores que o positivismo produziu. Distinguindo as ciências pelo objecto, o positivismo não admite o principio axiológico de unidade dinâmica, segundo o qual o estudo de cada ciência implica o conhecimento virtual de todas as outras. Assim, a filologia aparece como um especialismo, propriamente como linguística, à qual a sociologia empresta depois uma falsa e fictícia aparência de unidade com as ciências restantes. Não obstante, esses desgraçados que ignoram a filosofia são capazes de se sentirem indignados quando ouvirem alguém afirmar que a filologia não progride sem o estudo das várias modalidades do sono e dos vários graus de cada uma dessas modalidades, de tal maneira que a biologia, a psicologia e a pneumatologia se integram no sistema de conhecimento especial que designamos por filológico. Tal é, no entanto, como procuraremos mostrar, a natureza do ensino bergsonista da filosofia.

Torna-se, porém, necessário fazer um pouco de história, como infelizmente é indispensável neste país nosso de historiadores. A persistência em negar, combater, ou esquecer a filologia autêntica, da parte de quantos a ignoram ou dela têm evasivos sinais, acelera o processo de degenerescência mental que se acentuou entre nós quando o positivismo contaminou os meios cultos que desde os Descobrimentos se esforçavam por encontrar a palavra perdida. Muito bem se explica que aqueles que não foram convencidos nem dominados pelo positivismo se apoiassem, desde então, na autoridade de filósofos estrangeiros, o que deu à expressão do nosso pensamento uma aparência de servilismo, atraso e falta de originalidade, com gáudio dos medíocres que assim puderam conquistar todos os lugares nos jornais, nas cátedras e nos diversos serviços públicos, pela exibição, nos vários ramos exteriores do conhecimento, orientado pela disciplina positivista, de um aparato erudito, conseguido à custa, muitas vezes, do próprio envilecimento. Todavia, aqueles portugueses ainda movidos pela esperança, em breve, se desgostam dos filósofos europeus, para os quais foram atraídos por alguns vestígios, indícios ou resíduos da filosofia autêntica que Pascoal Martins emprestou à Europa.

Tem causado algum escândalo a defesa por Álvaro Ribeiro duma filosofia portuguesa superior à dos outros povos europeus. Viciados polo método positivista de comparação de quantidades, os nossos historiadores, quer sejam poetas, críticos ou ensaístas, são de uma sincera e honesta inconsciência, quando, perante a lista europeia de tantos nomes ilustres, consideram megalomania o que é, dentro dum critério de comparação menos positivista e, por conseguinte, mais qualitativo, simples enunciado de uma verdade evidente. Sem dúvida, a filosofia europeia é inferior à filosofia portuguesa, não só porque representa, do século XVIII em diante, no seu melhor aspecto, uma degenerescência desta filosofia, tal como se exprime no ensino de Pascoal Martins, como, considerada na sua linha cartesiana, que é a  que conta essencialmente para os menos[2] intelectuais, mostra uma pobreza de princípios lógicos tão grande que os próprios franceses, depois de Bergson apenas por motivos patrióticos de internacionalismo político-cultural, por vezes até contrários às directrizes fundamentais do seu espírito, dificilmente mantêm Descartes no ensino oficial de filosofia.

Queremos dizer que, se em vez de compararmos nomes, figuras e números, investigarmos os princípios fundamentais da filosofia europeia, paralelamente com os princípios fundamentais da filosofia portuguesa, não podemos deixar de reconhecer a superior qualificação espiritual do povo que une o Ocidente ao Oriente. Um destes princípios é o da tríplice constituição do homem. A razão porque o indicámos não se esconde a quem souber que da antropologia, até na visão teocêntrica, dependem o valor, a amplitude e a profundidade do todo filosófico. O homem resume o universo, mas pensá-lo implica dissolver a sua imagem sensível para conceber o arquétipo primordial ou espírito vivente.

No pensamento de Bergson, o filósofo que melhor traduziu para o seu país Pascoal Martins, este princípio tende a parecer dissolvido no dualismo da «matéria e memória», da «alma e corpo», da «consciência e vida». Estas dualidades que, aliás, se encadeiam, constituem, porém, pontos de partida, – os pontos de partida da mentalidade comum e corrente, formada pela divulgação do cartesianismo. Porquanto, se retomamos as relações da palavra com o sono, verificamos que Bergson considera essas relações nas suas três modalidades correspondentes aos elementos constitutivos do ser humano: – o sono natural, o sono magnético, e o sono supranormal.

O primeiro, no qual o homem cai, por uma espécie de simpatia física com os ciclos naturais do dia e da noite, pode ser explicado por uma teoria geral da queda, com base na existência do corpo.

A biologia vem explicar o adormecimento ascendente das resistências físicas, pois o cérebro é o último órgão a manter-se desperto. O sonho, porém, oferece-se como um enigma só decifrável pela psicologia profunda. Bergson estuda então o sono magnético, que apresenta maiores analogias com o sono adâmico em que se elabora a criação de Eva. O processo pelo qual se opera esta segunda espécie de sono é inverso do processo segundo o qual se dá o sono natural. A acção dos ritmos, artisticamente dirigidos, do gesto, do sopro e da voz, sugere ao filósofo uma inédita explicação da arte. Pelos olhos se transmite o fascínio das figuras plásticas, pelos ouvidos o encantamento das formas rítmicas. O ritmo essencial é o binário, que encanta, adormece e torna a alma passiva à emanação das imagens do sonho, – ao mito versificado pelo poeta. O modernismo, ao combater o estudo da prosódia, não pode nunca ser confundido com o bergsonismo.

O sono supranormal corresponderá a uma operação do espírito que Bergson designa por intuição. Diz assim um texto conhecido: «Faz por sair de Ti mesmo, como acontece aos que dormem e sonham, mas Tu sem dormir!» Falar aqui de sono só é possível porque antes de passar pelo sono ninguém desperta para a vida supranormal do espírito. Trata-se de fazer a viagem ao contrário, pela absorpção, no centro superior do ser de todos os elementos psíquicos. Mas uma barreira, simbolizada pela queda, impede a passagem para os planos superiores da consciência, e, por isso, o exercício da razão, no sentido bergsonista de inteligência, não nos liberta das condições limitativas do espaço. Ao filósofo importaria ver como Bergson relaciona com uma teoria dos tropos o processo de transmutação interior, desencadeado pela intuição.

Tudo quanto ouvimos e lemos nos contos fantásticos da idade em que ainda não sabemos falar, as metamorfoses dos homens em animais, o aparecimento súbito e espantoso de palácios, a descida aos subterrâneos com árvores de pedras preciosas, é aquilo que a filosofia de Bergson fala transformando em processos lógicos o que o positivismo só pode ver como esquemas pré-lógicos, ao descrever como história a gradual revelação do espírito. Não é apenas, porém, um erro de perspectiva que aqui comete o positivismo. Ao negar realidade à imaginação no plano gnósico, esta doutrina para homens que não esperam nascer segunda vez fica incapaz de, perante os poucos fenómenos que admite, dar a sua articulação em leis com autêntico carácter de ciência. De modo que o positivismo é a menos científica das explicações da natureza e da vida humana, aquela que menos adequa o pensamento à realidade. A natureza é a metamorfose, inexplicável mecanicamente e na humanidade não há nada, absolutamente nada, que se represente por um movimento que não implique a operação secreta de agentes activos.

«Todos os seres, todos os fenómenos da natureza, estão ligados, como se entre eles houvesse fios invisíveis, pelas leis misteriosas da analogia». Relacionando esta bela e sábia frase de Bergson com o quanto nos diz sobre a simpatia e a antipatia dos seres, estamos no limiar duma poética em que os movimentos da palavra não se dissociam de repercussões psíquicas e até físicas. A analogia, como a praticam os cientistas, reduz-se a esquemas mecânicos, constituídos pelas abstracções mentais que elaboramos sobre as formas viventes. Pode então ser formulada uma regra de três em que o termo desconhecido substitui e ilude a causa oculta e activa. A analogia, para Bergson é a evolução criadora do pensamento.

Daqui deriva o interesse do estudo da filosofia, com o fim de encontrar os instrumentos lógicos, os órgãos, o organon do pensamento. Bergson atribui grande importância ao som, na sua modalidade humana. Quem ler, com o ouvido atento, uma página dum livro seu, verifica que os sons das palavras se articulam segundo significações, que não são as dadas pelo arranjo sintático dos termos do discurso. Isto, que à primeira vista, parece um jogo sem consequências na ordem filosófica, à segunda vista, surge como um processo de persuasão de quem sabe que a acção sobre o inconsciente do leitor, sendo embora mais lenta nos efeitos de repercussão remota, é muito mais subtil, profunda e transformadora. À terceira vista, implica uma concepção da palavra e das suas relações com o pensamento, segundo a qual essas relações não se estabelecem pela inteligência dos esquemas visuais, mas pela intuição dos elementos primitivos do som primordial, donde emerge, segundo o Génesis, a primordial luz.

Vejamos agora, porque tem oportunidade, como Bergson via a linguística, propriamente, dentro da mesma ordem de ideias. Ele admitia que os mesmos princípios que explicam o homem singular explicam também a humanidade e o universo. Assim, a sociedade igualmente dorme um sono magnético, no qual as imagens lhe são sugeridas por agentes externos, sobre cuja natureza no Riso se pronuncia mais claramente. Daqui, a importância dos estudos linguísticos, de modo a situar, classificar e caracterizar as correntes mentais dominantes no espaço e no tempo. Quanto diverge este ponto de vista do da sociologia positivista escusado é dizê-lo. As linguagens, na medida em que fixam preconceitos e imagens, são índices exactos do modo como se organizam as influências errantes, errantes porque sem relação com princípios superiores. O princípio de organização é a inteligência, palavra que Bergson usa mal para designar a faculdade de perceber, conceber e realizar um espaço sem qualidades. A noção dum meio homogéneo constitui a base de fabricação de máquinas, dos vários artifícios empregados para captar e dirigir as forças naturais. Analogamente, a língua funciona como um mecanismo utilizável na apreensão das forças subtis e muito mais poderosas da imaginação.

Julgamos chegado o momento de terminar estes apontamentos, mas não queremos fazê-lo sem apresentar as nossas humildes objecções. A poética de Bergson é muito mais uma poética do estilo do que uma poética do símbolo, a não ser que não tivéssemos sabido ler bem. O mundo invisível, a que os filósofos chamam o espírito invisível, pode, com efeito, ser concebido directamente, sem a intermediação de imagens, porque é próprio do espírito conhecer-se; mas a poesia, sendo inferior à filosofia, exprime-se por símbolos que condensam, ou sinalam, ou traduzem as universais significações concretas.

Esta minoração da arte como simbólica coincide, em Bergson, com a confusão dos géneros literários, que não identifica às substâncias, aliás como lhe acontece perante os géneros biológicos. Há, no seu pensamento, a tendência para um monismo místico, muito semelhante ao de Sampaio Bruno, com a sua teoria do homogéneo inicial. A divisão atómica, agenciada pela matéria, há-de corresponder, inversamente no espírito, à permanência dos diferentes, porque só o diferente, concebido como Leibnitz concebe a mónada, assegura o princípio da unidade transcendente. É sempre, porém, difícil tomar posição perante um pensador que só se exprime por cifras.

 

António Telmo



[1] 57, ano II, n.º 5, Setembro de 1958, p. 11.

[2] Nota do editor – É provável que se trate de gralha tipográfica, e que António Telmo tenha escrito, no original, “meios”.

 

VOZ PASSIVA. 70

03-09-2016 14:30

Em 20 de Junho de 1980, António Telmo proferiu, na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, a célebre conferência “O Segredo d’Os Lusíadas”. Integrada nas comemorações oficiais do IV Centenário da morte de Camões, resultou de um convite de Afonso Botelho, seu amigo e condiscípulo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Botelho era então o Director de Serviços Literários da Direcção-Geral da Divulgação, numa época em que António Braz Teixeira era Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. A título de curiosidade, refira-se que Telmo recebeu, de honorários, 6.000 escudos pela realização da conferência, que viria primeiramente a ser publicada no livro Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, editado pela Secretaria de Estado da Comunicação Social. Mais tarde seria recolhida em Filosofia e Kabbalah, de 1989, constando hoje, também, de Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, que foi lançado em 20 de Junho de 2015, em Estremoz, trinta e cinco depois da realização da conferência camonina de Lisboa.

A apresentação do conferencista coube a Afonso Botelho. Dela nos ficou o respectivo texto, igualmente foi dado à estampa em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. 

____________

 

Apresentação do Sr. Dr. António Telmo pelo Sr. Dr. Afonso Botelho, Director de Serviços Literários[1]

Afonso Botelho

 

Na modesta proporção que um brevíssimo espaço de tempo nos consentiu, juntámos nesta exposição em torno de um mesmo tema, alguns géneros artísticos, vários gostos e épocas, diversas culturas nacionais.

Quem quiser pode, com esta matéria, fazer diferentes leituras do retrato de Camões, desde que não rejeite o estímulo que ela constitui para a imaginação. Porque, conforme o sentido da legenda de uma estampa, ali exposta, a imagem dá-nos apenas o que teria sido o corpo do poeta, enquanto a sua nobilíssima obra o revela à imaginação. O que se torna visível na diversidade destes retratos, mais não é do que uma ajuda para que encontremos, o que em todos, e em nós próprios, está como invisível.

Não foi, assim, nosso propósito acentuar a multiplicidade e consequente indefinição das imagens plásticas, mas, pelo contrário, apresentar, na sua variação e diferença, degraus de um conhecimento ascendente para o uno. E confirmámos esse intento, acompanhando a exposição iconográfica com outras interpretações, ordenadas no mesmo sentido – do visível para o invisível. Eis porque, nas duas primeiras conferências, se foi configurando o poeta, por intermédio dos sinais concretos que deixou nas letras e na admiração de homens ilustres, tanto como nos indícios que os inventários familiares registavam, nos períodos essenciais da história, em que a aristocracia do sangue tende a identificar-se com a aristocracia do espírito. Eis porque, também hoje, vos proporcionámos a aproximação de uma leitura de Camões que nos inicie no que até agora, mais do que invisível, se tenha guardado secreto.

Ainda no sentido da legenda a que aludimos, nos anima o desejo de conhecer o maior segredo de Camões, que não é certamente uma mensagem transmitida de emissor a receptor, na modalidade mecanicista que hoje se adopta para ensinar a língua pátria, mas a que estará velada na «nobilíssima obra». Por isso pedimos ao autor da História Secreta de Portugal que nos dissesse qual o segredo d’Os Lusíadas.

Seria impertinente este pedido, se António Telmo não se tivesse proposto realizar uma história secreta de Portugal e se não a tivesse realizado como a realizou, lendo o interior do exterior do ser, segundo «rigorosa aplicação da lei da analogia».

Um dos capítulos desta obra crucial (do calvário da Pátria Portuguesa) abre-nos o caminho para o saber esotérico d’Os Lusíadas.

A ruptura entre este saber e aquele que converge nas instituições de ensino, nas igrejas do culto e do oculto, e nas forças organizadas da cultura, obrigar-nos-á a um arriscado salto de qualidade, mas o conferencista de hoje, à claridade íntima de iniciado, associa os dons do magistério, em que é, aliás, exímio. Diríamos noutra linguagem, que ele se ilumina na tradição do pensamento português, que aflorou, nos começos do século, no movimento da Renascença Portuguesa, que foi ensinado na Faculdade de Letras do Porto, por Leonardo, e, que de discipulato em discipulato, não mais deixará de criar escolas de filosofia.

Até no pequeno percurso, que esta exposição iconográfica nos oferece, é fácil reconhecer a degradação dos princípios e o afastamento dos arquétipos, na sucessão dos retratos de Camões.

Enquanto o desenho das estampas mais antigas preserva ainda, não direi a riqueza mas, pelo menos, o rigor da simbólica e, nas composições românticas, se eleva de novo a realidade à altura dos grandes ideais, as obras em que se firma o realismo valem tão-só pela factura artística. Caso extremo desta pobreza de símbolos é, sem dúvida, a aguarela assinalada por el-rei D. Carlos, que figura o Príncipe dos Poetas como um velho reformado da corte, suporte de cores de um grande aguarelista, manequim de vestuário da época. A realeza estava já distante do segredo d’Os Lusíadas, como a cultura dos seus detractores o estava também. A realeza havia perdido os fundamentos primordiais do real, os homens cultos de então mal sabiam o que haviam de fazer com ele.

Veja-se o que se passa com os dois Bordalo Pinheiro, talentosos artistas que dominam uma geração. Em face d’Os Lusíadas, ainda é o caricaturista, de arte menor, que melhor exprime a grandeza e qualidade espiritual do Poema – coloca o Zé-Povinho inclinando-se para a superioridade d’Os Lusíadas, apesar dos esforços dos gnomos políticos do tempo para que ele opte pela maior valia da Carta Constitucional. O povo não lera o Poema mas era e é capaz de jurar sobre ele, como jura sobre a Bíblia, mesmo que não a tenha lido na imagem dada por Lopes Ribeiro ao introduzir aqui o filme Camões. Em contrapartida, o grande Columbano, nas alegorias inspiradas na épica camoniana, contradiz-se esteticamente, porque o símbolo não procura o simbolizado e o real das figuras vicia o irreal. São mulheres, em vez de seres mitológicos o que Columbano pinta, são modelos de «atelier», mas não modelos da História de um Povo.

Culturalmente, será já este século um recomeçar, sob o signo dos mais transcendentes poetas que Portugal teve, depois de Camões. Ou, com a lucidez dos filósofos, poderá também ser a visão serena da própria ruptura.

Tudo indica, porém, que o corpo da Pátria sofrerá ainda, por longa espera, os efeitos das doutrinas que lhe ocuparam a alma.

Enquanto o idealismo crítico subjugar o modo de ser colectivo, invertendo o sentido do real, obrigando-nos a pensar por equivocidade, como se fosse por analogia, quem poderá ler os sinais do outro Portugal que somos, dos outros Lusíadas que são?! Quem poderá imaginar o outro retrato de Camões, o outro dos múltiplos que é possível juntar e expor?!

Vamos ouvindo com toda a atenção quem nos possa segredar algo sobre o que mais nos importa. Tenhamos, contudo, a certeza que esse alguém será, como António Telmo é, discípulo e mestre numa escola secreta de pensamento português.



[1] Publicado em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, Lisboa, Secretaria de Estado da Comunicação Social – Direcção-Geral da Divulgação, pp. 61-65.

 

DOS LIVROS. 48

29-08-2016 11:26

Afonso Botelho, o filósofo da saudade

 

Esta homenagem a Afonso Botelho é prestada em saudade.

Com uma ou outra possível excepção, todos quantos o homenagearam antes de mim o conheceram pessoalmente ou foram, à distância, seus amigos. Temos saudades do Afonso Botelho e não de Afonso Botelho, do Afonso Botelho vivo. A morte tornou impossível vê-lo onde ele está agora.

A saudade é sempre do que é vivo e existente, por isso o recurso ao espiritismo é uma anormalidade, uma violência contra a saudade.

Nesta terra onde todos vivem para a perpetuação da carne, comendo e procreando, o sangue, esse fluido vivente, circula pelos corpos voraz e insaciável, mas animando de vida a tessitura dos músculos, dos nervos e dos ossos. Terrível contradição, a que a morte vem pôr fim quando se detém a corrente sanguínea. E então, se nos é lícito imaginar qualquer forma de sobrevivência, o que fica é o fantasma, uma pálida imagem sem diafragma e sem vontade, uma espécie de massa protoplásmica que a nossa recordação gostaria que se revestisse da melhor das formas.

O horror aos fantasmas, ao esoterismo mal entendido vem daqui. Os gregos, como lemos, por exemplo, em Homero, viam o Hades (o Inferno que neles não tinha o mesmo sentido do catolicismo) povoado de pálidas e inanes imagens que vogavam sem consciência no outro mundo. Por isso, eles amavam a vida e o sol que nela brilha.

Ulisses, ao descer aos Infernos, se quis consultar os manes, teve que dar-lhes a beber o sangue de um animal sacrificado. Só assim lhes restituiu a memória e a palavra perdidas, podendo ouvir os sons oraculares.

Esta dependência do sangue que nos faz beber, comer e procrear está aqui transferida para o outro mundo. O mesmo horror habita a nossa terra e a terra dos mortos, só que, aqui, os mortos julgam estar vivos na ilusão de uma consciência automatizada, que o mundo moderno acentua progressivamente.

Mas nós vemos o Afonso Botelho em saudade. Vemo-lo neste ou naquele lugar onde estivemos com ele. Era um homem que, para além da sua condição de mortal nascido da carne, amava e pensava pelo espírito, progenitor da sua alma, segundo o evangelho.

É que os heróis, se recordamos os de Carlyle, não são somente aqueles que se distinguiram pela guerra das armas ou pela audácia das navegações marítimas. Estes merecem o nome de heróis quando a guerra e a navegação foram feitas para manifestar a glória de Deus. Por isso a literatura, quando o escritor pensou heroicamente, é igualmente uma guerra e uma navegação. Foi o caso do Afonso Botelho.

Os gregos não punham os heróis no Hades entre as pálidas imagens dos mortos. Imaginavam-nos morando nas Ilhas Bemaventuradas e, o que é extraordinário, envolvidos de um corpo sensível como o nosso, com a consciência e a vontade inalteráveis, mas sobrenaturalizadas. No corpo de luz que habitavam e que lhes servia de carro conservava-se o diafragma com tudo o que a etimologia desta palavra implica.

Falei em corpo de carne e agora falo em corpo de luz. Exconjurei os fantasmas, erguendo a minha espada, a minha e espero que também a das vossas inteligências.

É que o corpo de carne, formado pelo ininterrupto solve et coagula do sangue, movimento de vida constante­mente ameaçado de morte, aparece-nos, depois da queda, como uma degradação do corpo de glória de Adão, o senhor do Paraíso.

Entre um e outro há apenas uma diferença de grau. Como sabeis, as plantas absorvem a energia solar que as torna ascendentes e fototrópicas, compondo a forma surpreendente da flor; os herbívoros vão buscar às plantas essa mesma energia; os carnívoros devoram os herbívoros apoderando-se dela ou devoram-se entre si arrastados pelo sonho turvo da vida. Mas a energia solar é uma metáfora da energia transcendente do espírito. Esta, essa, aquela capta-se pelo pensamento articulado em orações. É a energia espiritual, que não devemos conceber fantasmaticamente, mas como a própria luz que é o Logos, de que nos fala São João no Evangelho.

É uma luz que, pela imaginação, é possível projectar na própria corrente sanguínea e subtilizá-la, aquela luz invocada por Guerra Junqueiro na Oração e que, não obstante a sombra do monismo a que dá abrigo, a vemos progredir da treva para o pensamento.

Para o Afonso Botelho, que amou, pensou e saudou lealmente o Rei Supremo, escrevi este epitáfio, que publiquei no Setubalense:

 

“Partiu mais um.

Como é próprio da fase outonal do ciclo, vão-se, uma a uma, desprendendo as folhas da Árvore que está plantada no centro de Portugal e que é, simultaneamente, a Árvore da Vida e a Árvore do Conhecimento.

Ei-la, despida mas não morta, tal choupo na margem da corrente do mundo político-económico, com duas ou três folhas ainda presas, lembrando a Primavera que nunca foi. Reverdescerá um dia, transmutada em árvore de folha perpétua, como o “verde pinheiro” de D. Dinis.

Entretanto, junto à corrente, choramos como as irmãs de Faéton, nela precipitado por não ter sabido conduzir, jovem e louco, o carro de seu Pai. “Menina e Moça me levaram para longe da casa de meus pais”. Portugal é o país do verdadeiro exílio, porque é quando estamos nele que dele temos saudades. Estranho paradoxo! Pensemos nisto.

Partiu mais um. Este chamava-se na terra Afonso Botelho. Quem o conheceu e viu não pode esquecer as linhas da sua nobre figura que o assemelhava a uma “bouteille”, direita e hierática como a do oráculo de Rabelais, ou a D. Duarte sobre a sela do cavalo olhando os longes da filosofia. Uma garrafa que os nautas do mar desconhecido lançaram à água encerrando preciosos manuscritos é tanto como a figura de um rei montado no seu cavalo magnificamente respeitável. Quem há, porém, aí capaz de decifrar essa carta de marear que é a Teoria do Amor e da Morte?

Direitos e sérios, meditativos e saudosos como ele, contemplemos demoradamente o epitáfio:

“Aqui jaz Afonso Botelho, filósofo insigne. Porque havia destino cumpriu o destino; porque há o espírito, foi livre. Paz à sua alma!”

 

António Telmo

 

(Publicado em Viagem a Granada, 2005)

INÉDITOS. 63

21-08-2016 00:04

ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

Faz hoje seis anos que nos deixou, mas está sempre presente. No aniversário da partida de António Telmo, um poema inédito que integrará o sexto volume das suas Obras Completas, a sair, no próximo mês de Dezembro, com a proverbial chancela da Zéfiro: Viagem a Granada seguida de Poesia. Paulo Samuel prefacia e Risoleta C. Pinto Pedro assina o posfácio, especialmente dedicado à publicação integral da poesia de Telmo, por cuja edição literária será a responsável.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

[Fazer versos naturais]

 

Fazer versos naturais

Que se possam conversar

Mas que escondam lá por dentro

O que não é p’ra contar.

 

Com doce cadência certa

Que fascine o pensamento

E dê som ao insonoro

E me adormeça por fora

E me desperte por dentro.

 

Cada palavra um sentido

Duas um casamento

Donde nasça o imprevisto

Como trazido num vento.

Donde nasça o nunca ouvido

Donde nasça o nunca visto.

 

E, porém, tão natural

Que, ao vê-lo, se ouça dizer

Que é coisa de trazer

Nesta vida tal e qual

Como se já se soubesse

Como se fosse o que havia

Dentro de aquele que lê

E se antes não o sabia

Acorda do que o adormece

E vê. 

 

António Telmo

 

UNIVERSO TÉLMICO. 39

14-06-2016 12:27


A Bíblia na Maçonaria
Risoleta C. Pinto Pedro

 

Para a Estela,

estrela “entre as flores”

(in Os Lusíadas)

 

Celebro multiplamente este dia.

Pelo aniversário da Estela, por eu poder estar presente, pela beleza do lugar de tolerância e alquimia que é o convento de Dominicanas onde nos encontramos, pelo colo que este dia é, assinalado por vários símbolos:

A cruz na parede exterior da capela, uma cruz côncava, a lembrar um colo, um útero ou um berço, a única cruz capaz de me fazer reconciliar com tudo o que de doloroso a cruz me evoca. Já aqui estivera há uns anos, esta cruz já aqui estava, mas os meus olhos encontravam-se, ainda, despreparados para a ver além do olhar. A cruz antecipava já esta assembleia aqui colocada em semi-círculo, como um colo, um berço ou um útero.

Por isso, por ser dia de Natal de uma Estrela, aqui trago uma passagem de um texto de António Telmo, um iniciado ainda antes de o ser, o filósofo do futuro, aquele que sempre desejou e perseguiu aquilo que ele designava como a síntese superior: a conciliação harmónica e amorosa entre o cristianismo e o judaísmo, na sua mais alta expressão.

É ele um dos que melhor pensaram e escreveram sobre a palavra enquanto lugar simbólico e sagrado. E o conceito de Misteriosofia.

E cito:

“[…] uma Loja não pode nem deve funcionar como um liceu ou uma universidade, onde um professor ou professores transmitem um saber previamente conhecido, ao alcance de qualquer profano dotado de um mínimo de inteligência e suficientemente aplicado. Na Loja estamos perante um mistério, mais do que isso fazemos parte desse mistério. Emprego a palavra mistério no seu sentido original e não na acepção que popularmente recebeu de insólito e contrário ao curso natural dos fenómenos. No seu sentido original a palavra deve ser referida à sua raiz um, comum a outras palavras como Mudo, murmúrio, mito e místico. Ao pronunciarmos o fonema m fechamos os lábios. Fechamos a entrada da caverna bucal, que é o lugar do Verbo. Escrevo na véspera de Natal, por isso, por isso, ao dizer o que digo, logo me ocorre a gruta onde nasceu o Menino Deus.

Tendo em conta esta etimologia do mistério, não é difícil ver que o ensino aqui se faz pelo silêncio, um silêncio que se torna significativo, no que ele tem de mais profundo, pelas indicações subtis, por aquilo que há de menos discursivo nos ritos e nos símbolos. Os sinais, os toques, as letras e os nomes são talvez o que melhor exprime o que pretendo significar com o termo de «indicações subtis».[…]”

In: TELMO, António. A Aventura Maçónica, Viagens à Volta de um Tapete

Ed. Zéfiro, 2011

Assim, como introdução a esta celebração do Natal de Estela através da palavra sagrada do Livro, uma forma de silêncio, nesta gruta circular assinalada por uma cruz maternal, eu não poderia ter encontrado melhor texto nem melhor autor.

E assim entro no tema que me foi proposto.

Os textos bíblicos que aparecem nos rituais maçónicos, os quais, começo por informar, estão disponíveis em livrarias especializadas ou em secções especializadas de livrarias, ou na Internet, pelo que poderão confirmar tudo o que aqui afirmo, são, na sua maioria, os do Antigo Testamento, mas não só.

Pela sua extraordinária simbologia, a Bíblia presta-se a exercícios de reflexão e estímulo no rituais iniciáticos, como é o caso do maçónico.

Este facto vem repor ordem e verdade naquilo que por vezes se diz acerca de uma pretensa hostilidade entre a Maçonaria e Religião, que não é de todo verdade. A prová-lo, muitos homens da hierarquia da Igreja, nomeadamente bispos e cardeais que pertenceram e pertencem à Maçonaria, assim como muitos cristãos e judeus dela fazem parte. É um problema que a alguns interessa alimentar, mas que não é real.

A Maçonaria não é hostil a nenhuma religião, pelo contrário, a todas abarca, e até agnósticos e ateus aí podem, em algumas lojas, ter lugar. O que acontece com frequência. No rito francês é muito frequente encontrar maçons ateus e agnósticos em franca maioria. Juntamente com crentes. E todos se aceitam e respeitam.

Há Lojas e/ou Odediências onde, para ingressar, é preciso verbalizar uma crença em alguma entidade transcendente, seja ela qual for, independentemente de qualquer religião, mas em outras nem isso é necessário. E lá dentro é possível encontrar lado a lado, trabalhando simbolicamente em conjunto, ateus, agnósticos, cristãos, judeus e crentes de outras religiões.

Centrar-me-ei sobretudo em alguns ritos maçónicos, em particular no Escocês Antigo e Aceite.

A simbologia bíblica está presente de diversas formas:

Com: A- símbolos, desenhos, objectos: B- através da presença dos próprios textos bíblicos no ritual; C- em palavras bíblicas usadas como palavras-passe ou palavras sagradas; D- em alusões ou gestos

A-     Sob a forma de símbolos, desenhos, objectos

             1 . A presença do livro sagrado no altar.

Em muitas lojas, não em todas, a Bíblia está presente. Não está lá enquanto livro de uma, duas ou três religiões (e aqui refiro-me às designadas três religiões do Livro: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, mas enquanto símbolo do texto sagrado. Normalmente aberta no primeiro capítulo do Evangelho de S. João, nomeadamente em lojas do Rito Rectificado e no Martinismo.

Em algumas lojas maçónicas o livro pode ser a Torah, o Alcorão, os Vedas, o Tao Te King, ou vários. Outras optam pela presença de um livro branco.

É natural que aquele texto sobre a luz (como vamos ver) esteja no altar, onde também é colocada a luz (uma lamparina) a partir da qual todas as luzes do templo serão acesas.

Uma parte dos versículos da passagem que se segue (6-8) é lida no ritual de S. João de Verão, pelo Orador:

INÍCIO DO EVANGELHO DE JOÃO

(1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

2 Ele estava no princípio com Deus.

3 Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.

4 Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

5 E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

6 Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7 Este veio para testemunho, para que testemunhasse da luz, para que todos cressem por ele.

8 Não era ele a luz, mas para que testemunhasse da luz.

9 Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.

10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.)

 

O quinto versículo deste poema simbólico, pois assim o leio, contém a afirmação:

“a luz resplandece nas trevas”, o que é muito próximo do que o Orador, um dos oficiais de uma Loja Maçónica e um dos  três oficiais que estão no Oriente, verbaliza no final da sessão de trabalhos na Maçonaria:

“A luz resplandece mesmo na obscuridade mais profunda”

2. À entrada do templo maçónico existem duas colunas, Jaquin e Boaz. À semelhança do templo de Salomão, na Bíblia descrito.

Há quem relacione “Jaquin” com estabilidade e “Boaz” com poder, o que faz sentido, sendo as colunas que sustentam a entrada.

A propósito, cito, do Livro dos Reis 7, e chamo a atenção para o rigor da descrição:

“1 Salomão levou treze anos a terminar a construção do seu palácio.

[…]

10 Os fundamentos eram também feitos de pedras escolhidas de grande dimensão, pedras de dez e de oito côvados.

11 Por cima havia ainda pedras escolhidas, talhadas sob medida, e traves de cedro.

12 O muro, que cercava o grande pátio, tinha três ordens de pedras talhadas e uma fileira de vigas de cedro, assim como no pátio interior do templo do Senhor e no pórtico do palácio.

13 O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hirão,

14 filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro. Hirão era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. Apresentou-se ao rei Salomão e executou todos os seus trabalhos.

15 Fez duas colunas de bronze: a primeira tinha dezoito côvados de altura; a sua periferia media-se com um fio de doze côvados. Tinham quatro dedos de espessura e eram ocas. A segunda coluna era semelhante a esta.

16 Fundiu dois capitéis para pô-los no alto das colunas; ambos tinham cinco côvados de altura,

17 e eram ornados de redes de malhas e grinaldas em forma de cadeias; havia sete grinaldas para cada capitel.

18 Dispôs em círculo ao redor de cada uma das malhas duas fileiras de romãs, para ornar cada um dos capitéis que cobriam as colunas.

19 Os capitéis sobre as colunas no pórtico tinham a forma de lírios, com quatro côvados de altura.

20 Os capitéis colocados sobre as duas colunas elevavam-se acima da parte mais grossa da coluna, além da rede; em volta dos dois capitéis, havia duzentas romãs dispostas em círculo.

21 Hirão levantou as colunas no pórtico do templo; a coluna direita, que chamou Jaquin, e a esquerda, que chamou Boaz.

22 Por cima das colunas pôs um trabalho em forma de lírio. E assim foi acabada a obra das colunas.)”

Assim são, também,  as colunas do templo maçónico, em cima coroadas por lírios e romãs.

Esta extensa descrição arquitectónica pormenorizadíssima, como um engenheiro a faria, faz-nos pensar em várias possibilidades. Para que não esqueçamos como se faz um templo? Ou para termos presente que os pormenores não são detalhes? Ou então, que os detalhes não são pormenores? Ou porque tudo é símbolo, e não é igual, do ponto de vista das repercussões cósmicas, um templo ter duas colunas com dezoito côvados de altura e a sua periferia medir-se com um fio de doze côvados, ou as medidas serem outras… Que as formas, as quantidades e as medidas da matemática e da geometria não são aleatórias, mas de natureza essencial e de repercussões dramáticas ao nível do Universo?

Não é ao acaso que cada maçon ocupa um determinado lugar no Templo, consoante o seu grau e função. A Loja é um templo, e na construção dos edifícios não é indiferente o lugar onde cada pedra é colocada. Cada maçon é uma pedra sobre a qual se ergue o templo. Dos alicerces que todos representam, e da sua qualidade, depende a qualidade da estrutura, que deve honrar o seu construtor, o Grande Arquitecto.

Vejamos o rigor na descrição das medidas de um templo maçónico:

“A sala deve ser um duplo quadrado a Ocidente com um Oriente semi-circular e deve ter pelo menos dois terços a mais no sentido do comprimento do que no da largura. A extremidade do fundo está mais elevada que a restante parte do Templo: é o Oriente, para o qual se sobe transpondo-o com três passos ou degraus. Entra-se no Templo pelo ocidente. “

B-    A presença de textos no ritual

. Lendas simbólicas

Como é o caso da lenda de Hiram, o construtor do templo de Salomão, acima referido:

O nome Hiram Abiff, figura altamente simbólica no ritual maçónico, não consta na Bíblia, mas existem referências a pessoas chamadas Hiram, que são:

Hiram, rei de Tiro, referido em II Samuel 5:11 e em I Reis 5:15-32 por ter enviado material de construção e um homem para a construção do templo original de Jerusalém.

Em I Reis 7:13–14, Hiram é descrito como um homem de Tiro que trabalhava em bronze, filho de uma viúva da tribo de Neftali .

Quanto à lenda de Hiram Abiff , o nome é de origem hebraica, embora os dois Hiram referidos na Bíblia proviessem do Líbano. Temos Hiram ou Hirão rei de Tiro e Hiram Abiff, o artífice que esse Rei enviara a Salomão para o embelezamento do Grande Templo.

Como vimos, o relato bíblico tece louvores à habilidade profissional de Hiram: “era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze.”

Contudo, por ocasião da consagração do Templo, não é mencionado.

Talvez por isso, devido ao apagamento em torno dessa personagem, se tenha criado, no universo maçónico, a Lenda de Hiram Abiff, que assim assume um valor simbólico ainda mais acentuado e o dá como tendo sido assassinado por três maus companheiros. Hiram, o arquiteto, existiu; a história dos Hebreus refere-o; na lenda foi assassinado por três companheiros, porque ele era o único que sabia decifrar as escrituras do templo de Salomão, pelo que era alvo de inveja.

A propósito disto, mas sem grandes interpretações, recordo que é a palavra “inveja” aquela que encerra a nossa grande Bíblia épico-lírica chamada Os Lusíadas.

Segundo a etimologia, a palavra inveja, formada pelos étimos latinos in (dentro de) e videre (olhar), aponta para um olhar penetrante, um olhar que se insinua no outro, algo que adquire uma má conotação.  Uma outra interpretação vê no prefixo in o seu outro significado de negação, e assim  entende a inveja como um olhar pela negativa, aquele que ao invés de incluir, exclui, a inveja  é o sentimento daquele que não vê, aquele que não consegue aceitar sem desconforto, a diferenças entre ele e o outro, que vê as qualidades alheias como exclusivas do outro, que não consegue vê-las em si e as considera fora do seu alcance, com o sofrimento que isso traduz.

Em termos de auto-conhecimento das insondáveis sombra da alma, esta lenda tem potencialidades iniciáticas profundas, daí a sua inclusão no ritual do Rito Escocês Antigo e Aceite da Maçonaria, que contempla Hiram Abiff, ao qual é associada uma simbologia esotérica que a liturgia iniciática maçónica inclui.

O simbolismo da palavra Abiff aumenta se tivermos em conta que se trata de uma palavra composta pelas iniciais extraídas de outras quatro palavras que também são letras: Aleph, Beth, Iod e Vav, todas hebraicas. Significa "pai". É também, um título de reverência. O Rei de Tiro ao referir-se ao seu artífice chama-lhe "meu pai Hiram". No Livro de Crônicas, é chamado "Seu Pai, Hiram Abiff". O apelido resulta como título de honra a Hiram, o pai da construção do Grande Templo.

C-    Sob a forma de palavras passe ou palavras sagradas.

É o caso da palavra Shibboleth, no ritual maçónico sendo uma palavra ritualística de valor muito importante, uma palavra passe, já se vai perceber porquê:

No Antigo Testamento, em Juízes 12: 1-15, está escrito que esta palavra foi usada para distinguir entre duas tribos semitas, os gileaditas e os efraimitas, que se encontravam em luta. Os gileaditas, vencedores, bloquearam todas as passagens para o Rio Jordão a fim de evitar que os efraimitas fugissem. Os guardas exigiam que todos os que ali passassem pronunciassem a palavra "shibboleth", mas como os efraimitas não tinham o fonema /x/ no seu dialeto, só conseguiam pronunciar "sibboleth", utilizando o fonema /si/ na primeira sílaba, sendo assim reconhecidos e executados.

 

NA BÍBLIA:

Juízes 12
“…Depois os homens de Gileade tomaram de Efraim as passagens do Jordão, de maneira que, quando um fugitivo de Efraim solicitava: “Deixa-me passar!” Os gileaditas perguntavam-lhe: “És eframita?” Se declarava: “Não”,  ordenavam-lhe: “Então diz: Shibolet”. Se a pessoa dissesse “Sibolet”, sem conseguir pronunciar corretamente a palavra, prendiam essa pessoa e matavam-na no lugar de passagem do Jordão. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos naquela época. Jefté comandou o povo de Israel durante seis anos. Então Jefté, o gileadita, morreu e foi sepultado na sua cidade natal, nas terras de Gileade. »

Igualmente, mas sem perigo de morte, um dos graus da maçonaria tem como palavra-passe a expressão “Shibbolet”. Sem ela não é permitida, nesse grau, a entrada no Templo.

D-   Sob a forma de alusões ou gestos:

. Por exemplo, a alusão ao facto de as lojas maçónica serem normalmente designadas como lojas de S. João, o patrono da maçonaria. Que há quem considere que são os dois; o Baptista e o Evangelista, respectivamente celebrados pelos maçons por ocasião dos solstícios de Verão e de Inverno.

Entre os antepassados da maçonaria, na Europa, era também normal escolher-se um santo protetor para cada corporação de ofício. Resultou assim, que os dois santos, São João Batista e São João Evangelista tenham sido eleitos como os padroeiros das associações de pedreiros e construtores das catedrais, que sustentam uma parte da história da maçonaria.

Filho do sacerdote Zacarias e Isabel (Elizabete), prima de Maria, mãe de Jesus, João Baptista foi considerado profeta e tido pelos cristãos como o precursor do prometido Messias (ou Cristo). Baptizou Jesus "o Cristo" bem como muitos outros, e introduziu o baptismo de gentios nos rituais de conversão judaicos, que mais tarde foram adaptados pelo cristianismo e que encontramos também na maçonaria pelo valor simbólico que se dá à água enquanto elemento ritualístico. São João Batista é o precursor da Luz e com a prática da purificação, pela água, é considerado o profeta das iniciações. Uma organização iniciática como é a maçonaria não poderia ignorar este grande Iniciador do Jordão.

. Como é a já referida alusão ao facto de o templo maçónico pretender ser uma réplica simbólica do Templo de Salomão, edifício construído por este rei de Israel para a Glória de YAHWE.

. O facto de os juramentos serem prestados com a mão sobre o Livro, que frequentemente é a Bíblia.

. A comunhão: por ocasião de um dos solstícios e nos ágapes rituais, existe a partilha do pão e do vinho.

Na Eucaristia;

“ Lucas 22:19-20

Tomando o pão e tendo dado graças, partiu-o e deu-o aos discípulos, dizendo: Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.

Depois da ceia tomou do mesmo modo o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós.”

 No Banquete de Ordem Maçónico:

“Que este gesto seja o símbolo da partilha do alimento do corpo e do espírito”

O Venerável parte um pão em dois, toma um bocado e reparte o resto à sua direita e à sua esquerda.  Depois bebe da sua taça, imitado por todos os convivas, após ter dito:

“Que este vinho aqueça o nosso corpo e conforte em nós o amor fraternal”.

Uma outra alusão surge no ritual de S. João de Verão, ou Evangelista, onde  perante a pergunta:

“Porque escolheram os Franco-maçons S. João Baptista como seu patrono?”, um oficial responde: “Porque ele consagrou a sua vida à tarefa de abrir os olhos dos seus contemporâneos para a LUZ que brilha na trevas e permaneceu fiel a essa missão até à sua morte.”

A luz é a da liberdade, a expressão superior do Amor, a libertação individual, não com um foco egoísta, mas fraterno, o mais alto ideal de liberdade, isto é, a liberdade para todos, a conduzir a ideia de igualdade e fraternidade. Que, afinal, atravessa toda a Bíblia, desde a preocupação com a justiça, uma forma de igualdade, no Antigo Testamento, ao alto ideal do Amor fraterno, compassivo e incondicional que a presença de Cristo imprime ao segundo. Para a total libertação da Humanidade, num Império que alguns apelidam de Espírito Santo.

 

Risoleta Pinto Pedro, 21 de Maio de 2016

 https://www.triplov.com/novaserie.revista/barra_590.jpg

A Bíblia no ritual maçónico

(textos bíblicos:)

 

INÍCIO DO EVANGELHO DE JOÃO

 

(1 No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus.

2 Ele estava no princípio com Deus.

3 Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito se fez.

4 Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens.

5 E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam.

6 Houve um homem enviado de Deus, cujo nome era João.

7 Este veio para testemunho, para que testemunhasse da luz, para que todos cressem por ele.

8 Não era ele a luz, mas para que testemunhasse da luz.

9 Ali estava a luz verdadeira, que ilumina a todo o homem que vem ao mundo.

10 Estava no mundo, e o mundo foi feito por ele, e o mundo não o conheceu.)

 

 

Livro dos Reis 7:

“1 Salomão levou treze anos a terminar a construção do seu palácio.

[…]

10 Os fundamentos eram também feitos de pedras escolhidas de grande dimensão, pedras de dez e de oito côvados.

11 Por cima havia ainda pedras escolhidas, talhadas sob medida, e traves de cedro.

12 O muro, que cercava o grande pátio, tinha três ordens de pedras talhadas e uma fileira de vigas de cedro, assim como no pátio interior do templo do Senhor e no pórtico do palácio.

13 O rei Salomão mandara vir de Tiro um homem que trabalhava em bronze, Hirão,

14 filho de uma viúva da tribo de Neftali, cujo pai era de Tiro. Hirão era talentoso, cheio de inteligência e habilidade para fazer toda espécie de trabalhos em bronze. Apresentou-se ao rei Salomão e executou todos os seus trabalhos.

15 Fez duas colunas de bronze: a primeira tinha dezoito côvados de altura; a sua periferia media-se com um fio de doze côvados. Tinham quatro dedos de espessura e eram ocas. A segunda coluna era semelhante a esta.

16 Fundiu dois capitéis para pô-los no alto das colunas; ambos tinham cinco côvados de altura,

17 e eram ornados de redes de malhas e grinaldas em forma de cadeias; havia sete grinaldas para cada capitel.

18 Dispôs em círculo ao redor de cada uma das malhas duas fileiras de romãs, para ornar cada um dos capitéis que cobriam as colunas.

19 Os capitéis sobre as colunas no pórtico tinham a forma de lírios, com quatro côvados de altura.

20 Os capitéis colocados sobre as duas colunas elevavam-se acima da parte mais grossa da coluna, além da rede; em volta dos dois capitéis, havia duzentas romãs dispostas em círculo.

21 Hirão levantou as colunas no pórtico do templo; a coluna direita, que chamou Jaquin, e a esquerda, que chamou Boaz.

22 Por cima das colunas pôs um trabalho em forma de lírio. E assim foi acabada a obra das colunas.)”

 

Juízes 12
“…Depois os homens de Gileade tomaram de Efraim as passagens do Jordão, de maneira que, quando um fugitivo de Efraim solicitava: “Deixa-me passar!” Os gileaditas perguntavam-lhe: “És eframita?” Se declarava: “Não”,  ordenavam-lhe: “Então diz: Shibolet”. Se a pessoa dissesse “Sibolet”, sem conseguir pronunciar corretamente a palavra, prendiam essa pessoa e matavam-na no lugar de passagem do Jordão. Quarenta e dois mil efraimitas foram mortos naquela época. Jefté comandou o povo de Israel durante seis anos. Então Jefté, o gileadita, morreu e foi sepultado na sua cidade natal, nas terras de Gileade. »

 

Na Eucaristia;

 

 

Lucas 22
:19-20

Tomando o pão e tendo dado graças, partiu-o e deu aos discípulos, dizendo: Este é o meu corpo que é dado por vós; fazei isto em memória de mim.

Depois da ceia tomou do mesmo modo o cálice, dizendo: Este cálice é a nova aliança em meu sangue, que é derramado por vós.

  

 

INÉDITOS. 62

14-06-2016 12:15

 

Agostinho da Silva

 

Agostinho da Silva, na sua sistemática campanha contra a filosofia portuguesa e contra Leonardo Coimbra, desempenha o papel do décimo terceiro discípulo, para quem o mestre não pode ser um homem divino, mas o Espírito Santo de acção e guerra que vem trazer “a Paz a todo o mundo”.

Como Judas representava, na primeira e arquetipal comunidade esotérica cristã, pelo nome, pela definição e pela ideia, o povo judaico, este “trabalhador da terra” – Georges de baptismo –, significa dentro da filosofia portuguesa o atávico anti-filosofismo lusitano, mas nos termos de quem recebeu o ensino superior do Mestre, embaindo subtilmente na luz prodigiosa do espírito os invejosos, os soberbos e os caluniadores que, sem a sua ajuda, em vão forcejariam por levantar e arremessar contra nós o peso da sua mediocridade.

Nenhum dos discípulos herdou tanto de Leonardo Coimbra: o poder de comunicar de viva voz o verbo do espírito, o fascínio pela matemática e pela física nas suas mais altas expressões modernas, o franciscanismo, a conversão ao catolicismo, o sentido da fraternidade de todos os seres, o misticismo e o universalismo.

Escreve-me um dos nossos amigos dizendo «o seu desgosto de verificar que o Agostinho da Silva está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás isso não tem importância, porque o que importa é a sabedoria e essa o povo português tem-na nos seus mitos e crenças, e a matemática e a pragmática. Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a força do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc.. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do mundo, com o socialismo, com o terceiro-mundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc.. É muito esquisito…»

Talvez não seja tão esquisito quanto [parece]. Se o Agostinho diz que o que importa é a sabedoria e que nós não temos filósofos, das duas uma: ou finge não saber o que é a sabedoria ou sabe, e ignora o que seja filosofia; alternativa tanto mais de admitir quanto, nestas coisas, o erro de estatística (Quantos filósofos temos? Só o Spinoza.) aparece como um pecado contra o espírito.

Se o Espírito Santo não sopra no sentido que ergueu A Alegria, a Dor e a Graça, A Razão Animada, a Teoria do Ser e da Verdade, As Aproximações, etc., também não há rosto para senti-lo soprando do lado do povo, nos seus mitos e crenças. Na verdade, o décimo terceiro discípulo diz o mesmo que, por exemplo, disse o terceiro: a filosofia portuguesa é a conversão activa e consciente do que o povo português sabe e crê em pensamento individual. Era, porém, preciso levedar a “esquerda”, uma vez que o ensino de Leonardo Coimbra foi falsamente interpretado sobretudo pelos discípulos dos discípulos como de direita.  E que melhor modo de o fazer do que voltar-se contra o Mestre para poder tornar aceitável o que o Mestre disse? É possível duvidar que isso leve a alguma coisa. O Espírito Santo não sopra por toda a parte, mas onde quer. O plástico, por exemplo, é uma matéria sem Espírito Santo e, por isso, constitui o supremo problema para os ecologistas.

Só há um processo para Agostinho da Silva de não pertencer à filosofia portuguesa: é deixar de pensar, o que equivaleria a repudiar o Espírito no próprio ser encomendado à acção.  

Quanto ao Spinoza, se fosse vivo entre nós e seu nome se escrevesse com E inicial, a perseguição que sofreu na Holanda da comunidade judaica tomaria aqui a forma que todos sabemos pelos exemplos de Camões, Francisco Manuel de Melo, Gomes Leal e de tantos outros da família cabalista de Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro. O seu prestígio de filósofo entre nós vem-lhe de duas coisas: de ser meio estrangeiro e no estrangeiro considerado e de revestir sua loucura da forma dedutiva da geometria euclidiana.

O pobre Sampaio Bruno, n’A Ideia de Deus, raciocina, raciocina, mas mistura a pura abstracção ideante com as expressões rudes dos cafés do Porto. Pode lá ser filósofo um homem que escreveu: “Filho da puta dum dominicano quem não te fez jesuíta!?” Mas a solene, lúcida, inspirada sobriedade de Álvaro Ribeiro não teve melhor sorte. Pobre país o nosso!

Este Agostinho da Silva é o caso mais extraordinário de poder mental (pensa não por querer pensar mas porque vive). E sobretudo faz pensar os que não vivem porque não pensam. Ao negar o carácter de filosofia aos livros de Bruno, Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra fá-lo porque acha que, neles, o pensamento não foi suficientemente matemático e também físico para ser filosófico. É bem mais amigo da sofia que todos nós. A sua exigência de lucidez nos livros de filosofia resulta da sua própria maneira de vencer a densa obscuridade que detesta, sergianamente, nas classes cultas do nosso país. Mas tem sobre Sérgio o sonho e a imaginação que o faz amar nos poetas e no povo o que não ama nos filósofos. É tudo uma questão de classificação, de pôr as coisas nos seus lugares. Quais são, porém, os lugares para os lugares? Este problema, que atormentava Platão, foi resolvido pelos modernos com a noção de infinito. E assim a matemática acaba em mística.

Vamos formando ideias, sistemas solares com os seus elementos bem coordenados entre si no microcosmos e no macrocosmos. O pensamento é um barco astronáutico, uma centelha minimal visitando a harmonia dos neutrões e dos protões, os elementos primitivos activos e os que não são isto nem aquilo, como as mulheres-giocondas cuja natureza se nos furta. Tocamos o mistério lúcido dos abismos com o telescópio e o microscópio. Espinoza não seria o que foi se não fabricasse lentes.      

O ideal metafísico de um filósofo fabricador de lentes é o de elevar a sua arte a um tal grau de perfeição que possa ver o ponto, sem dimensão ou vulto, o que, por ser impossível (e dada a inegável realidade do ponto) faz que se misture geometria com teologia. Mais coerentes eram os geómetras materialistas que punham o sólido no “princípio”, como Parménides e Aristóteles. O sólido (de solus) é o Só, mas não o de António Nobre que é um só lírico e oposto ao mundo e aquele é o próprio mundo e o Perfeito (ver o Tratado do Céu de Aristóteles) em si sustido, como dizia o Luís, que combinava o Mestre com o Discípulo, fora da Universidade onde não conseguiu ser Camões.

Dizia o médico Maimónides que quando hé excesso de um humor num corpo doente se lhe desse o remédio que excite o humor contrário. Por isso, quem é, de sua estrutura íntima, racionalista deve adoptar o irracionalismo e vice-versa. De seguro, resta a acção impelida pelo vento fácil do Espírito, que não se sabe de onde sopra. A demonologia não está tão certa, quando se trata de política e de propaganda literária na televisão, da natureza do espírito que sopra. Tudo porém é para compreender e é da nossa atitude íntima de disponibilidade que tudo também depende para bem ou para mal.

Agostinho da Silva é, entre nós, o que certos sufis foram em relação aos “falasîfa” no mundo mahomédico, como por exemplo Al Gazel. Exemplo disso, é o seu modo paradoxal de pensar. A um amigo que lhe dizia que certos dias não tinha dinheiro para comprar comida respondeu:

– A mim acontece-me não o ter para a véspera.

O paradoxo dissolve certas cristalizações de sentimentos e de noções que emperram o movimento da humanidade.

Bem-haja Agostinho da Silva!

 

António Telmo 

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