INÉDITOS. 62

14-06-2016 12:15

 

Agostinho da Silva

 

Agostinho da Silva, na sua sistemática campanha contra a filosofia portuguesa e contra Leonardo Coimbra, desempenha o papel do décimo terceiro discípulo, para quem o mestre não pode ser um homem divino, mas o Espírito Santo de acção e guerra que vem trazer “a Paz a todo o mundo”.

Como Judas representava, na primeira e arquetipal comunidade esotérica cristã, pelo nome, pela definição e pela ideia, o povo judaico, este “trabalhador da terra” – Georges de baptismo –, significa dentro da filosofia portuguesa o atávico anti-filosofismo lusitano, mas nos termos de quem recebeu o ensino superior do Mestre, embaindo subtilmente na luz prodigiosa do espírito os invejosos, os soberbos e os caluniadores que, sem a sua ajuda, em vão forcejariam por levantar e arremessar contra nós o peso da sua mediocridade.

Nenhum dos discípulos herdou tanto de Leonardo Coimbra: o poder de comunicar de viva voz o verbo do espírito, o fascínio pela matemática e pela física nas suas mais altas expressões modernas, o franciscanismo, a conversão ao catolicismo, o sentido da fraternidade de todos os seres, o misticismo e o universalismo.

Escreve-me um dos nossos amigos dizendo «o seu desgosto de verificar que o Agostinho da Silva está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás isso não tem importância, porque o que importa é a sabedoria e essa o povo português tem-na nos seus mitos e crenças, e a matemática e a pragmática. Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a força do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc.. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do mundo, com o socialismo, com o terceiro-mundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc.. É muito esquisito…»

Talvez não seja tão esquisito quanto [parece]. Se o Agostinho diz que o que importa é a sabedoria e que nós não temos filósofos, das duas uma: ou finge não saber o que é a sabedoria ou sabe, e ignora o que seja filosofia; alternativa tanto mais de admitir quanto, nestas coisas, o erro de estatística (Quantos filósofos temos? Só o Spinoza.) aparece como um pecado contra o espírito.

Se o Espírito Santo não sopra no sentido que ergueu A Alegria, a Dor e a Graça, A Razão Animada, a Teoria do Ser e da Verdade, As Aproximações, etc., também não há rosto para senti-lo soprando do lado do povo, nos seus mitos e crenças. Na verdade, o décimo terceiro discípulo diz o mesmo que, por exemplo, disse o terceiro: a filosofia portuguesa é a conversão activa e consciente do que o povo português sabe e crê em pensamento individual. Era, porém, preciso levedar a “esquerda”, uma vez que o ensino de Leonardo Coimbra foi falsamente interpretado sobretudo pelos discípulos dos discípulos como de direita.  E que melhor modo de o fazer do que voltar-se contra o Mestre para poder tornar aceitável o que o Mestre disse? É possível duvidar que isso leve a alguma coisa. O Espírito Santo não sopra por toda a parte, mas onde quer. O plástico, por exemplo, é uma matéria sem Espírito Santo e, por isso, constitui o supremo problema para os ecologistas.

Só há um processo para Agostinho da Silva de não pertencer à filosofia portuguesa: é deixar de pensar, o que equivaleria a repudiar o Espírito no próprio ser encomendado à acção.  

Quanto ao Spinoza, se fosse vivo entre nós e seu nome se escrevesse com E inicial, a perseguição que sofreu na Holanda da comunidade judaica tomaria aqui a forma que todos sabemos pelos exemplos de Camões, Francisco Manuel de Melo, Gomes Leal e de tantos outros da família cabalista de Sampaio Bruno e Álvaro Ribeiro. O seu prestígio de filósofo entre nós vem-lhe de duas coisas: de ser meio estrangeiro e no estrangeiro considerado e de revestir sua loucura da forma dedutiva da geometria euclidiana.

O pobre Sampaio Bruno, n’A Ideia de Deus, raciocina, raciocina, mas mistura a pura abstracção ideante com as expressões rudes dos cafés do Porto. Pode lá ser filósofo um homem que escreveu: “Filho da puta dum dominicano quem não te fez jesuíta!?” Mas a solene, lúcida, inspirada sobriedade de Álvaro Ribeiro não teve melhor sorte. Pobre país o nosso!

Este Agostinho da Silva é o caso mais extraordinário de poder mental (pensa não por querer pensar mas porque vive). E sobretudo faz pensar os que não vivem porque não pensam. Ao negar o carácter de filosofia aos livros de Bruno, Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra fá-lo porque acha que, neles, o pensamento não foi suficientemente matemático e também físico para ser filosófico. É bem mais amigo da sofia que todos nós. A sua exigência de lucidez nos livros de filosofia resulta da sua própria maneira de vencer a densa obscuridade que detesta, sergianamente, nas classes cultas do nosso país. Mas tem sobre Sérgio o sonho e a imaginação que o faz amar nos poetas e no povo o que não ama nos filósofos. É tudo uma questão de classificação, de pôr as coisas nos seus lugares. Quais são, porém, os lugares para os lugares? Este problema, que atormentava Platão, foi resolvido pelos modernos com a noção de infinito. E assim a matemática acaba em mística.

Vamos formando ideias, sistemas solares com os seus elementos bem coordenados entre si no microcosmos e no macrocosmos. O pensamento é um barco astronáutico, uma centelha minimal visitando a harmonia dos neutrões e dos protões, os elementos primitivos activos e os que não são isto nem aquilo, como as mulheres-giocondas cuja natureza se nos furta. Tocamos o mistério lúcido dos abismos com o telescópio e o microscópio. Espinoza não seria o que foi se não fabricasse lentes.      

O ideal metafísico de um filósofo fabricador de lentes é o de elevar a sua arte a um tal grau de perfeição que possa ver o ponto, sem dimensão ou vulto, o que, por ser impossível (e dada a inegável realidade do ponto) faz que se misture geometria com teologia. Mais coerentes eram os geómetras materialistas que punham o sólido no “princípio”, como Parménides e Aristóteles. O sólido (de solus) é o Só, mas não o de António Nobre que é um só lírico e oposto ao mundo e aquele é o próprio mundo e o Perfeito (ver o Tratado do Céu de Aristóteles) em si sustido, como dizia o Luís, que combinava o Mestre com o Discípulo, fora da Universidade onde não conseguiu ser Camões.

Dizia o médico Maimónides que quando hé excesso de um humor num corpo doente se lhe desse o remédio que excite o humor contrário. Por isso, quem é, de sua estrutura íntima, racionalista deve adoptar o irracionalismo e vice-versa. De seguro, resta a acção impelida pelo vento fácil do Espírito, que não se sabe de onde sopra. A demonologia não está tão certa, quando se trata de política e de propaganda literária na televisão, da natureza do espírito que sopra. Tudo porém é para compreender e é da nossa atitude íntima de disponibilidade que tudo também depende para bem ou para mal.

Agostinho da Silva é, entre nós, o que certos sufis foram em relação aos “falasîfa” no mundo mahomédico, como por exemplo Al Gazel. Exemplo disso, é o seu modo paradoxal de pensar. A um amigo que lhe dizia que certos dias não tinha dinheiro para comprar comida respondeu:

– A mim acontece-me não o ter para a véspera.

O paradoxo dissolve certas cristalizações de sentimentos e de noções que emperram o movimento da humanidade.

Bem-haja Agostinho da Silva!

 

António Telmo