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UNIVERSO TÉLMICO. 69

26-07-2020 14:47

O salto no abismo e o rosto do cão[1]

Risoleta C. Pinto Pedro

 

«este salto

mortal

saltado no vazio, ou cão

que sai do rio»

in: Cara de Cão, José Santiago Naud

 

«O verdadeiro escritor [...] está dependente do seu tempo [...]

 é o seu servo mais humilde.

Está amarrado a ele com uma corrente curta e irrompível [...].

Ele é o cão do seu tempo.

Corre pelas terras do seu tempo, fica parado aqui e ali,

aparentemente arbitrário, mas incansável,

receptivo aos assobios vindos de cima [...].

Esse mesmo cão que ao longo de toda a sua vida

anda atrás do seu focinho [...].

É uma exigência cruel, realmente,

e é uma exigência radical.»

in: A Consciência das Palavras, Elias Canetti

 

Talvez sugestionada pelo título de uma das partes deste livro (“Dos Nomes”) ou por alguma outra misteriosa razão daquelas que o coração compreende, mas a mente oculta, fui sendo conduzida, ao longo da leitura deste arrepiantemente belo mapa poético, para a decifração dos nomes.

«Contente como um cão» mesmo não o sendo, recolhi os nomes pela boca e não sei quem foi meu dono que me chamou:

«Porque, sim, talvez, quem sabe

o domínio que tens sobre o teu cão

venha do que nem sequer descobriste,

e trazes em ti como um sigilo, a luz

quando lhe dás um nome

que ele atende.

Soltos

no susto da selva ancestral,

desordenada

memória obscura do instinto,

estes sinais

que caem da tua boca

e ele recolhe no ar como um dono,

ordenam o invisível

que ele não apreende muito bem,

(quem sabe?)

mas obedece.»[2]

Obedeci. Como amável cão, ousei tentar acompanhar os múltiplos saltos sobre o abismo do cão de plumas que habita este livro. Com ventos de cortar a respiração, segui-o com o olhar da metáfora transfigurada pela poderosa pena (ou pluma) de Santiago Naud que quase esmaga, que a seguir ressuscita. 

Alguns passos por certos espaços da minha geografia pessoal convergiram, nos símbolos, com aqueles que aqui fui encontrando, pelo que o mistério da revelação foi o luminoso nevoeiro que me foi orientando na leitura como na vida, durante estes dias em que andei acompanhada pela linguagem desafiadora e sagrada de Santiago Naud (SN).

Este livro é uma viagem com mapa dentro. O mapa é cifrado, mas na liberdade da cifra, apesar de temperada pelo rigor das margens, a viagem torna-se infinita. E o cão não é um animal fixo, mas um ser de passagem, viagem ou transição entre raças, entre estados, entre mundos: «cão de jejum entre a raposa e o lobo», um cão em trânsito entre a terra e os céus («o cão/da via constelada»).

Livro dedicado à esposa, de nome Leda, e aos dois filhos, Marcos e Cristóvão, e em memória de um mestre de grego, o que por si só já diria muito sobre o autor, e foi, neste meu caminho arqueológico pelo coração dos nomes, um sinal. É em parte ao grego que precisamos de ir, no encalço dos inumeráveis sentidos (e não estou a criar uma hipérbole) deste poeta. Muito mais haveria a dizer, mas impossível se revelou, repito, ignorar a influência dos nomes.

Começamos por ficar em estado de alerta a partir dos símbolos pré-anunciados na capa pelo nome e apelido do autor, José Santiago, onde se unem judeu e cristão neste homem de sensibilidade ecuménica; e nos já referidos nomes da dedicatória: Leda, Marcos, Cistóvão. Marcos deriva de Mars, é Marte, portanto oriundo do céu, tal como a constelação com nome do animal que dá título ao livro. A figura evangélica de Marcos concentra unanimidade acerca da sua santidade pelas igrejas católica, ortodoxa e copta, sendo, por esta última, considerado o fundador da igreja de Alexandria, logo, o patriarca. Também à figura mítica Leda não é alheio o mundo celeste, pela atracção de Zeus. Leda tem uma dupla significação, se atendermos a uma origem grega (mulher, esposa), o que é uma feliz redundância no nome próprio da esposa do poeta, felicidade espelhada na outra possível etimologia latina (alegre, risonha); um nome espelho o dela, Leda. A Santiago, aquele cujo corpo deu à costa na Hispânia numa barca, e a Cristóvão, esse outro que, segundo a etimologia grega transportou, levou ou suportou Cristo, regressaremos.

O livro, glossário da vida material e transcendente, foca a atenção das suas palavras nos meses, nas estações do ano e nos nomes, essas entidades de criação.

Livro de uma profunda coragem ao nível do afecto, um nível superior onde estética, amor e coragem se fundem e se tornam na mesma coisa, Cara de cão é uma surpresa, como se fosse impossível concretizar o que realiza, e no entanto aqui está o impossível realizado.

Tentarei seguir o rasto do cão, «bicho/essencial/podendo ser tudo o que não é», fá-lo-ei «como um cão de rastro», prosseguirei junto ao chão, de onde melhor se vêem as constelações, e farejando, assim esperando olhar-lhe o rosto para me ver («o cão/reflete outro cão passando/um outro e outro»). Na fidelidade ao rasto espero encontrar o rosto da fidelidade («e o cão/fiel na cara do dono»). Pegadas e indícios não faltam, basta a atenção:

            «Tudo está

            pesado e medido, sob véus

            que encobrem a inicial

            cara explícita de cão.»

Apesar de «disfarçado/um cão, o astro te olha». A cara é explícita…  («a cara na cara/tu és teu cão, e teu cão/precário aos nós da energia/é o tu ressurgindo/puro de força e magia») para lá dos véus, que tentarei atravessar «como um olho de cão/que contempla». Ainda que tenha de passar pelas «entranhas de cão» e nelas ler como num livro de poemas «iluminado pelo fogo».

Não afirmo que não exista, mas não conheço outro texto que ilumine com a mesma profundidade a presença do cão no mundo, a sua relação com o humano («Usava um/cão, simplesmente/um cão sem corrente, ligado na luz/e no vazio,/atravessando a treva/com toda a humanidade») e com os deuses. Não conheço outro texto «seguido pelo cão» que tanto ilumine o ser humano através do símbolo obscuro e brilhante que é um cão:

            «a cintilação, a fuga, o irromper

            da visão, em que imprevisto o meu cão

            parece ser tudo.»

Esta paradoxal e ambígua relação do humano com o «animal e visionário[3]» está magistralmente aqui disposta. E nenhuma linguagem senão a poesia poderia fazê-lo com este rigor:

            «Estás cioso da tua realidade, mandas

            e não pedes, régio

            te assentas no poder,

            quase um imperador

            quando baixas a ordem no teu cão.

            Ah, que ironia

            podia cintilar o teu nobre animal,

            fiel como escudeiro

            e antigo como um deus,

            se deuses falassem

            ou ladrassem,

            ou pelo menos tu compreendesses as suas falas

            quando sacode o rabo

            e, entre a mão do afago e a cabeça bruta,

            qualquer coisa de certo

            incerta fulgura.»

 

O cão, o rosto e as máscaras é uma das leituras que o monumento poético de SN me suscitou. Num livro de tão generosa poesia, num livro estrela múltipla de inúmeras irradiantes pontas, apenas poderia percorrer uma das luzes. Este foi o caminho que logo de início me foi apontado em Tomar[4] para onde fui arrastada e posteriormente imobilizada junto a uma pintura mural representando S. Cristóvão com cabeça de canídeo. Teimosamente, muitos outros caminhos mentalmente iniciei, a eles recorrentemente regressei e os mesmos repetidamente tive de abandonar ou libertar no céu das ideias. O cão não me largou mais, abocanhou minha pena e foi ele que a conduziu. Com razão, pois não teria sido possível seguir tantos possíveis e paradoxalmente quase infinitos trilhos. E eu já me encontrava num trilho conducente ao infinito. Muitos outros entretanto me surgiram durante a leitura e tive de levar para o mesmo mundo daqueles que soltei. Porque tendiam a criar uma imensidão que o espaço físico que considero razoável para conter a minha expressão neste livro, ao contrário de Cristóvão levando (suportando) Jesus aos ombros, não suportaria. É que esta poesia é quase de se ficar sem respiração, torrente inimaginável de impossível, e no entanto, como se respira melhor quando se entra nela e por ela nos deixamos arrastar.

Começo pela capa, o cão de Goya, duplicado algures no poema:

«brincando o quadro em nós

como se nele

brotasse aquela árvore de inverno

com um cão debaixo.»

Para alguns, o cão de Goya é nada menos que um cão… a afundar-se. Todo o cão, para o seu dono ou amigo, está a afundar-se, porque cada minuto que passa é o drama de menos um minuto com ele, digo, com o Amor. Como quase a afundar-se se encontrou quem já adiante veremos, transportador de Cristo.

Nas narrativas sagradas cristãs, o cão é uma presença importante, desde o cão de Tobias ao de S. Roque, o peregrino. Que nesta enorme moldura também não deixa de estar presente com seu joelho em sangue:

            «Vívido rosto da morte,

            na total decomposição

            os recolho, esses rostos

            desfeitos,

            faço-lhes lamber meu cão,

            que pelo joelho em chaga

            vem fazer o pão do peregrino

            coma túnica erguida

            ao dedo afirmativo.»

Este livro coloca pelo menos (muitas outras contém, mas esta, por introdutória, é incontornável), uma pergunta essencial: de que modo alguém que nunca tenha vivido uma relação de amor com um cão ou com outro ser capaz de dar e receber o amor total  de que só os cães capazes, sente esteticamente este texto? Isto é, a emoção amplia a estética ou o sentimento da estética pode existir sem o conhecimento da emoção?

Será, por isso, necessário amar um cão para compreender o rigor deste retrato?

            «a hora do cão

            mordendo mais forte o punho do dono

            para que a mão se solte

            e deixe que ele salte,

            de repente

            lambendo a sua cara cheio de efusão.»

Nunca nada, que eu conheça, foi escrito sobre cães (e sobre cães e nós e tudo) com esta força demolidora e construtora, arrancadora de torrentes de lágrimas de desgosto e redenção:

            «os olhos

            do teu cão,

            transformado em ti

            lá atrás, quando te correspondeu

            no momento em que lhe disseste: “Vem”,

            e ele saltou no abismo.»

Este cão, ou a sua cara, neste caso não do dono, mas do cão, elevada (ou restituída) à dignidade e importância de um rosto de Janus, é um mapa de orientação no mito, no símbolo, na erudição e no coração, tarefa impossível, contudo aqui materializada. Janus ou «Anfisbena» ou «Exu», os de dupla face. No caso deste poeta, a erudição rebrilha e torna-se uma espécie de novo recurso estilístico, porque perfeitamente integrada no processo poético que, pelo muito talento a dispensaria, mas que com ela requinta a alquimia.

A tripla dedicatória, cujo terceiro nome é Cristóvão, leva-nos misteriosamente até uma pintura mural muito apagada, bastante imperceptível, da extraordinária Charola de Tomar, esse templo de Jerusalém construído pelos mestres templários no coração de Portugal. Aí se vislumbra, com grande esforço de discernimento visual, um São Cristóvão cinocéfalo, o que significa que se insere na tradição do bestiário, porque tem uma cabeça de cão.

São Cristóvão, o pagão que por transportar (ou suportar) sobre os seus ombros Cristo para a outra margem (por isso se sentindo a afundar, como o cão de Goya, o que, se mais razões não houvesse, justificaria totalmente a imagem da capa), margem também associada a outro plano, sagrado ou céu («cão sideral»[5]), é ligado à Ascensão. Não será por acaso que a Cristóvão, Santiago Naud agradece, na dedicatória, «por me suportar». E salvar? Salvar para ser salvo?

A data do fresco de Tomar é irrelevante, porque estamos perante o mistério. Século XIV ou século XII, isto é, muito provavelmente contemporâneo a Gualdim Pais, o Grão-Mestre Templário? As opiniões dividem-se.

Subtil e transcendente, a ligação desta pintura com as viagens de Gualdim Pais, que no médio oriente poderá ter tido contacto com as primeiras representações de S. Cristóvão com cabeça de cão, em Antioquia, onde o santo terá sido martirizado, e deste, a ligação a Goya, o que pinta o cão quase em afundamento, como o arquétipo do santo antes de o ser ou que por isso o foi. Ou de Goya a Santiago Naud. Um Anúbis, uma cara de cão trazida da Idade Média resistindo ao afogamento das águas, das emoções e do tempo, uma imagem, não de crucificação, apesar de conversão de S. Cristóvão à religião não da cruz, mas da ressurreição. Pelo amor. Na arte. É muito curioso que representando o deus egípcio Anúbis, o da cara de cão, a passagem entre duas dimensões ou estados de consciência, isto remeta insistentemente para o barzakh, segundo António Telmo:  

«a palavra pela qual Ibn Arabí e demais sufis do mundo muçulmano significam o entre dois, o mundo intermediário entre dois mundos que, sem ele a harmonizá-los, se excluem. Assim, a linha divisória que passa por Tomar, divide e une o Sul do país ao Norte do país. Todavia, o melhor exemplo é o que nos dá o próprio Ibn Arabí: o da linha que, ao mesmo tempo, separa e une a sombra de um corpo, da luz que a projecta. Não se pode dizer dela que é luz ou que é sombra. Como que existe por um prestígio da nossa imaginação, mas não é uma linha imaginária.»[6]

Linha que simboliza o entre dois «dourado o matreiro espaço/aberto entre cão e lobo./Anúbis/me conduza», como também «anjo/infinito, traçando a linha infinda/entre o humano e o bestial». Difícil não é imaginar o cão correndo sobre esta linha e assim salvando o mundo pelo sentido, da cisão do abismo (ou abysmo[7], como teria preferido Pascoaes): «Definitivo abismo, se/neste espaço cindido/não ponho a correr meu cão:/entre o que eu sou e penso,/ele prega o sentido».

E o sentido é o espaço entre dois, o claro e o sombrio, o ficar e o partir, que ele, o ser que se encontra entre as patas de trás e as patas da frente, conhece melhor do que ninguém:

«intimamente, ergue-se

nas patas de trás, com as duas da frente

ao modo de bruxo antigo

e avança, a cara de cão

nas artimanhas do uivo, se explicando:

Quem sou?

Eu sou aquele que veio

para ficar, porque sou aquele

que vem para partir, quem reúne

o claro e o sombrio»

Esta linha entre dois mundos simbolizada pelo rosto de canídeo, encontra-se, como já dito, na Charola de Tomar onde também eu fui conduzida ou levada, e neste livro de poesia ela está igualmente presente. O mito de Cristóvão é o daquele que atravessa o rio, por isso assim considerado um psicopompo, segundo a etimologia grega o que conduz as almas na viagem para a outra morada, um guia, que pode ser espiritual como Hermes, ou animal,  sendo no caso um misto de humano com animal. Este guia, presente num fresco talvez do século XII do templo de Jerusalém em Tomar, tem para guiar, aí, a viagem mística, viagem que é, neste livro, a via poética. E talvez as vias ou viagens se unam num caminho comum que é o do amor. Ou, melhor dizendo, o da arte ao serviço do amor.

Talvez não seja de menor importância que em termos celestes a constelação de Cão Maior se situe no extremo da estrada de… Santiago[8], nome de santo e de… poeta, que o mesmo é dizer-se, no final da Via Láctea[9]. E mais uma vez as duas vias se encontram, a do céu e a dos que, na terra, percorrem os caminhos sagrados (Santiago, ou como Santiago, peregrino do sagrado na palavra poética) guiados pelos cavaleiros do templo, protectores desses viajantes entre duas vi(d)as.

Independentemente desta minha especulação meta-poética, o poema, ele mesmo, não se escusa à referência, com frequência, às duas constelações do cão: «ou Sirius, imperador/ da própria constelação — incluindo/ Canícula, irmã menor, oculta/ na Virgem bem parida». Constelações ou estradas no céu, Via Láctea ou Campus Stellae que os templários foram seguindo enquanto iam construindo, ao longo do percurso terreno de Santiago[10], templos poligonais irregulares, estrelas densas, inspirados poemas em pedra, como tinham o hábito de semear nas estradas. E nada disto é estranho a Cara de Cão: «um cão e sua cara que atravessam/de leste a oeste e norte a sul/os fixos confins da Via Láctea».

Regressemos, por isso, ao início destes poemas por palavras, que começam iniciando um diálogo poético em diferentes línguas, epígrafes onde o autor cita outros poetas, alguns assim reconhecidos pelo cânone, outros poetas informais, mas reais, porque nas suas bocas houve poesia. Aqui os junta reabilitando Babel, pois estas línguas conversam e entendem-se como que banhadas pelo fogo do Espírito Santo semeando logo aqui, e continuando livro adentro, na sua própria poesia, passagens em espanhol pelo meio do português («donde hay niños, por certo/ como dizia o Lorca, para quem Dios/ es el punto. Disse.»). Quanto aos poemas/epígrafe iniciais, são poemas brevíssimos que têm a força atómica de um haiku, se nos voltarmos para o oriente, ou de um paradoxo, se quisermos honrar a terra do ocidente onde aprendemos a música dos sons, porque nem sempre, nem para tudo necessitamos de cruzar o planeta. Às vezes, no permanecer é que reside a compreensão. Nestas epígrafes poéticas pré-introdutórias onde texto alheio convive com citações de si mesmo, epígrafes preciosas, pois são chaves que nos oferece para penetrar em tão notável castelo de símbolos, mitos[11]e metáforas, o português alterna com o espanhol  com um único poema em inglês, de Oscar Wilde, após o qual, como numa moderna instalação, dispõe um poema em português que partilha com os outros o ser pérola e tem, além disso, a responsabilidade sua de ser chave:

«Além de todo o negror, nada/ pode matar o homem. Sobram sempre/ a cara de cão e um castelo.»[12]

Mais do que uma chave, considerou o poeta, com razão, que necessitaríamos de um chaveiro, e tinha razão. Não é despreparadamente que se entra neste templo. Assim, vários são os autores que acorrem de variados tempos, obras e lugares até nós, leitores, como o magnífico  poema  que se segue, de um camponês cuja intenção não parece ter sido, a avaliar pela informação em nota de rodapé, fazer poesia. E no entanto, foi o que fez:

«Yo sin mis bichos no soy el mismo,/porque mi perro es como mi hijo/y más que mi hijo,/pues mi hijo es él pero mi/perro es yo, y yo y mi perro/somos igualitos.»[13]

 

A generosidade dá, pois, o tom, no início deste livro que busca e acolhe a poesia onde, inesperadamente, ela se mostra, e depois, no borbulhar que se segue, em que os seus próprios poemas jorram como de fonte sagrada, em liberdade que nos parece tão inspirada quanto pensada,[14] num equilíbrio perfeito.

A liberdade («este esforço de ser independente/que o cão sabe, e sobe»), ainda que dentro de um castelo, ou domínio, é um tema que percorre o livro («solto meu cão/no passeio que faço»), a liberdade mental que a fantasia serve e o amor dignifica, por causa da «tendência de reduzi-lo à trela»:

« O meu cão se escapa da trela

e correndo vai por-se nas lindes do bosque»

 

Ainda sobre o nome do cão, importa ter presente que nestes poemas as coisas e as pessoas com seus nomes não se representam a si mesmas, mas inscrevem-se em círculos infinitos, por causa dos símbolos que as acolhem:

« logrou situar

ou definir, nome

entre os nomes — cão,

esta cara, esta sombra,

esta cara, esta luz»

Em termos lexicais, «face» e «cabeça» lideram o vocabulário, neste livro que também acolhe prosa poética, ainda que disposta na página em modo de verso, sendo aqui «cabeça» não apenas a parte superior do corpo, mas a parte superior do ser: «Que espiritual a cabeça!». Imprescindível numa poesia onde sentimos que algo nos «espreita, como um cão». Talvez nós mesmos: « cão/para o homem desde há muito é reflexo,/cara no espelho/sem ilusão da ruga».

Quanto à forma, estes poemas apresentam uma característica muito curiosa que é o facto de, apesar de se tratar de poesia, a maior parte das vezes em verso, revelar algumas características da prosa poética, o que não impede que as sonoridades aí se encontrem em sérios jogos expressivo-musicais, como aliterações e rima interna, criadores de ainda maior profundidade nos sentidos, assim se recolhendo esta prosa à poesia, como um desenho de Escher, ao jeito de uma coluna infinita.

Vejo a coluna deste livro tendo o cão como eixo. Mesmo quando não é mencionado, é uma presença, espécie de grande princípio, quase deus, quase criador:

 «E o cão/ alarga a cara; são duas, Jano/ retorna, e os homens/ enchem o mundo».

Um «Anúbis/ surgido das sombras», o cão torna-se o centro do Universo e uma lente com que o poeta olha o mundo e reflecte sobre o profundo. Embora, por vezes, com alguma nostalgia do olhar baço de Alberto Caeiro: «para que um cão seja cão/ ou, o gato, gato/ e rato, rato — sem/ outra significação que eles mesmos».

Em termos da linguagem poética, é quase em permanente apoteose o constante domínio das formas e dos sentidos e do alquimizar deste casamento, assim criando um superior altar poético perante o qual é impossível não ajoelhar. Num templo cujo traçado, não deixando de ser sagrado, é arrojado. Não deixando de reconhecer e ilustrar as regras canónicas da construção, apresenta uma arquitectura pouco canónica:

   «Também

   assim, macho e fêmea, reúne

                                                 a i-[15]

 nocência da estrela Também

 donde hay niños, por certo

 como dizia o Lorca, para quem Dios

             es el punto. Disse.»

 

É difícil, nesta poesia, quando é mencionada a «estrela», não se pensar em cão. Aqui caracterizado como inocente, o que é reforçado pela chamada de atenção da nota de rodapé.

O mistério («segredo do teu cão») que atravessa os tempos ou os anula, que atravessa os espaços ou os funde, revela, eleva ou desfaz o poder do destino transportando-nos da terra ao cosmos pela prancha de saltar que é um tabuleiro de xadrez, o raio de uma estrela ou o fio de uma aranha. Interrogação perplexa sobre a vida, recuando até à desobediência de Eva, cuja inocência, pela dúvida de interpretação humana acerca do sentido das palavras do Livro, resgata, e assim a todos nós passados, presentes e futuros, salva. Com, como vimos, o cão. A ambiguidade do paradoxo ao nível do sentido é acompanhada, reforçada e apoiada pela ambiguidade da sintaxe, assim criando um tom profético, ao mesmo tempo que nos despe com verdades cruéis que levámos demasiado tempo a esconder.

Assistimos nesta poesia, ao triunfo do entrelaçamento do sagrado com o profano, da infância com o fim, da ficção com a vida, do literal com o transfigurado, do sentido com a forma («e a mão/ não pesa mais o pensar»), da citação com a criação. E a arte de dizer sem afirmar, de evocar sem nomear: «o chapéu-de-cobra/da tua infância, que sabe das coisas fundante/com singeleza e sem filologias», saltando da árvore de Jessé para O Principezinho e daí para o fim do mundo. Ou princípio… visto que é de cobras que se fala («A cobra/circunda o mundo/e guarda o universo»).

Neste universo de Naud os mundos não são estanques, tocam-se, causam-se, recriam-se:

«Ao peso da cabeça

cansativamente posta, a mão

repousa céus mais altos, claridade

irrompendo as trevas de saber.»

Porque: «tudo o que antes era/mente ou indicação/se unifica» enquanto o Poeta questiona a palavra para se aprofundar nela («Criar/ ou crear?/Coisas distintas»), despertando em nós a saudade de outro professor da Universidade de Brasília, António Telmo[16], pela lembranca que estes versos evocam, da sua Gramática Secreta da Língua Portuguesa.[17]

É esta obra de SN um livro poético de tese, uma Arte Poética entre a ciência, a psicologia e a teologia, denunciando «Os exegetas do sagrado/e os cientistas e seus sistemas,/válidos enquanto vale a hipótese», porque «dizem e querem convencer/que esta é a única linha/ e aquele é o caminho reto», quando, afinal, são «seus muitos caminhos, infindáveis». E é importante que isto seja dito assim cantado, porque «há algum tempo me despachavam na fogueira,/Se eu dissesse». Não é uma poesia alheia aos grandes movimentos da história nem desatenta dos perigos. E neste mundo onde as fogueiras ainda estão quentes, impossível não falar de Deus por cujo mando se incendiaram. Mas como salvar Deus das fogueiras que acendem em seu nome? Se já tudo foi tentado, resta ao poeta inventá-lo e, com humor, salvar o Amor, um dos possíveis nomes do inominável:

«Se eu creio em Deus?/Não posso te dizer que ele seja meu chapa/e venha a conversar na hora do crepúsculo/quando uma suave brisa sopra no jardim,/tomando o chá das cinco e jogando bridge/com fleugma de inglês/sob o leque de palmeiras hindus,/ sem pressa americana. […] Mas nos teus gomos, amor,/ enquanto a hora não chega/não me impeças que eu mexa. Vai!/Deixa-me pois brincando.»

Um hino ao amor e à imperfeição com que a divindade desenhou o mundo, às «brechas/que ele deixou no mundo» onde o deus e os deuses e o diabo criadores e criados representam seus clássicos, repetidos e mais do que conhecidos, estafados papéis, de tão decorados dispensando o papel do ponto.

Ao mesmo tempo, canto de profundo amor deste Deus pelo herói humano, a ponto de com a humanidade partilhar os segredos guardados pelo mítico guarda («um cão ladrava à/multidão/também falando com ela,/muito individualmente:/dois mais dois são cinco»), humanidade jogando com a divindade um jogo desleal por desigual, por isso tanto necessitando do cão[18]: «Deus se debruça ao tabuleiro/a ver movermos as figuras,/como se quiséssemos/ou pudéssemos, e toca de leve/uma que outra, a rir-se/vendo-as cair». Afinal, «a risada de Deus, para o caso que exista/e jogue a realidade/dolorosamente, com o próprio Deus/imaculado em ti». A serpente que volta a enrolar-se. Mas sempre tudo ao nível das hipóteses, porque é o não saber que confere heroísmo ao herói aqui cantado. Que, como todos os heróis, tem de aprender a palmilhar o caminho do meio, aquele que é percorrido depois de conhecer o sim e o não, e as manhas dos poderes num permanente carnaval de disfarce para agradar consoante o esperado: «a arena relativa das tuas ideologias,/antes embandeiradas com a seda dos ricos/e agora embrulhadas no macacão dos pobres,/conforme te convenham as aspas do poder».

Se nem Deus se esconde nestes versos, nem os seus intermediários, nem a ciência, também não o esperaríamos dos ideólogos do tesouro e dos outros poderes, como o do sexo. A força das imagens onde a força das ideias ainda assim permite a música interna nos versos, o lirismo a coexistir com a dor e a denúncia do cinismo do causa…dor: «torrar o saco/nos forros de vinil fingindo natureza/e postos ao passo eunuco/pelo esforço viril de submeter o feminino/com fera delicadeza».

Na sua assumida liberdade de poeta contemporâneo, SN mantém-se contudo ligado ao sentimento lírico por vários poderosos fios: pela rima, como no exemplo anterior, e por todas as formas de expressão musical, como a rima interna: «nas têmporas do tempo,/ puro sangue» e ainda juntando rima externa, interna e repetições sonoras por vezes funcionando simultaneamente como rimas: «o imenso/no incenso».

Vai mais longe, em processos quase fisicamente arriscados, como fazendo inclinar repetidamente, a ameaçar queda, um «que» como tijolo saído da construção, ou gárgula a escorrer, no final dos versos:

« firme em suas quatro patas. Que,

cordeiro ou pomba,

murmuravam no ouvido

as palavras satânicas? Que,

outra antiga ação,

lhe arrancava dos olhos

o para além do teto? Que,

mais que o que do que,

ocultava a imagem? Certo!»

Arriscando ainda mais, usa os versos como metalinguagem onde pensa a língua:

«Ask a question? É isso aí!

Na minha língua, não podes

perguntar perguntas. Fazes

perguntas, ou perguntas

simplesmente»

O Poeta olha através da transparência das coisas com o olhar transfigurador do mágico («outro azul cintila»; «este olho enxerga outro nauta,/ lá»), numa poética para além dos limites da lucidez («pretensamente lúcido»), servida por uma sintaxe onde a aparente incoerência penetra sentidos expandidos («ponho-me a rezar/ao deus que me criei») interpenetrando mundos («faço-me aranha») numa espécie de interseccionismo reinventado para aquilo  que poderíamos designar como uma tentativa de explicação de Deus: «bastaria leve ruptura/de ponto ou linha,/para que o mundo/que é seu/negasse o próprio nome/ou, sem nós,/falecesse de perfeição». Deus, esse ser frágil e dependente da humanidade. Num leito poético muito humano, sensorial («o grito do louco/riscando de vermelho o céu azul»), ainda Deus, o grande dramaturgo («o grito do louco/riscando de vermelho o céu azul») e o cão («cão celeste») é anjo («o cão é a companhia/que volta os nossos olhos para a luz/ou nos compassa o passo»). Este cão acompanha o ser humano («esperando o Menino,/e acompanhado do meu cão») tal como este é acompanhado pelas estações e assim ambos percorrem o tempo a ele se moldando: «o cão/enreda a primavera/com todos os seus excessos». Mas também é companhia de deuses: «o deus retorna/com seu cão».

Há nestes poemas uma espécie de inocentização do mal a que só um cão poderia proceder («na depravação absoluta/um dedo de inocência/tocando o mundo,/a cara de cão, a cara/de homem, a cara/de nada/e a cara do deus/esquecendo o nome na inclusão de tudo»), conferindo a esse mesmo mal um estatuto de naturalidade («às palmas infantis,/a alegria do cão ou do neto/em torno de ti faz-se incontrolável »), sendo isto possível pela presença do cão «no coração», uma outra forma de ganhar coragem para «atravessar neste mundo/como quem viaja em seu quarto».

O cão é, assim, a figura de convite que me conduz na leitura do infinito que é este livro e sem a qual me perderia. Nesta poesia erudita, semeada de citações, alusões a uma imensa herança religiosa, histórica,  cultural, artística, literária, poesia erudita, mas não menos sábia, sigo o trilho do cão, a constelação pela qual me oriento nesta longa via láctea («um cão atravessando os fios da Via Láctea») concorrida em cruzamentos e múltiplas vias: «a remissão inicia/quando começa a compreensão/do cão, da loba, o companheiro/da concha e do bordão/no caminho da estrela».

Cão de guarda e seu aparente estereótipo («um pastor e seu cão»), cão de saber («e isto soube sempre o teu cão») e cão de poder: «Este é o poema/que meu dia ilumina/e meu cão transfigura», o que, perante mim, mais do que justifica a escolha deste caminho:

O cão «sábio» («o meu cão é sábio e diz/o que não diz») e livre («solto da trela»), aquele que «sacode a coleira» é múltiplo e complexo: «bicho/e figura/ou constelação»; cão elemento, cão vento: «cão enrola, na rua/os ventos do seu redemoinho»; cão quase Deus: («até o infinito»; «o grão imemorial, como um cão»). Com sua cauda de poder, participa dos milagres do mundo («o cão transitará o seu caminho/libertando o réptil»); cão transcendente,  ao qual ninguém ou nada apaga o riso, porque pode uivar e ainda que seja «o seu uivo longo e sozinho», não é um monólogo: «outros cães respondem». Este cão que são muitos cães («mil cabeças/na clareza cósmica») e é só um, é acima de tudo o cimo de si, a sua cabeça, aquela que sustenta a cara, que não perde a face. Cara de cão, para além de dupla constelação, como dupla face, é máscara («a cara de cão esculpida»), enigmática («muito minha /mas não compreendes»),  precisamente como a máscara deve ser, por isso sagrada. Então, ainda que a derrota pareça avassaladora e «morto de fome o teu cão», ainda assim:

                           «podes recomeçar

            no campo devastado

a lenta e longa marcha das efemérides

e dos eventos, como um sol

nimbado de lua,

até a reposição das coisas no seu lugar

                     axis mundi

com fatal recuperação da tua dignidade».

Com o eixo do mundo, mais uma vez, agora no seu duplo “i” no centro do poema, como a poesia visual que a esta estética não é alheia tão bem sabe, dispondo o poema como uma obra plástica.

Não é caso único, outros é possível encontrar no desenho do livro, o cão druida e alquimista dispõe geometricamente as palavras sobre a página como o ilustrador sobre a história, como o mago sobre a bancada:

«Enrolado de espiral, aberta na palavra

que ocioso arrancas

do sangue, e armas em cruz

ao ranço fatal da Máquina do Mundo:

Sator arepo              opera rotas

                    TeNet

Rotas opera              arepo sator

                         e

                   viceversa

*

 

Tudo o mais sabiam os druidas

suspendendo antas ou plantando

                   menHirs»

Estando o “i” ou o “e” que se lê “i”, mais uma vez no lugar central, ou da luz.

Tal como outras vezes é o próprio corpo do cão, a bancada do alquimista ou do mago, e o seu lombo o lugar de onde surgem estrelas:

«as cores se apagassem

e, jubilosamente, cintilassem

no lombo escuro

de um cão.»

 

Afinal, pelo meio de todo o mal, fracção e perversão, esta poesia crê e cria a redenção:

« O rei está dentro de ti,

não é exterior

e nunca aos teus pés virá depor

os tesouros terrestres.

Porque os bens tu levas dentro,

estão votados à morte

e na tua semente já mora

            a destruição.»

É o cão, que entre as ruínas de Pompeia e a cruz, eleva madeira e pedras e completa os desenhos apenas esboçados pelos ângulos da cruz, assim criando espirais com que se eleva sobre os autos-de-fé. O cão multiplica as máscaras para se proteger, para poder Ser e salvar a face:

«a cara desse cão, devoluto

nos bosques, antigo

a ladrar para o corvo

e a buscar o castelo,

na voz da mãe dizendo

que a razão de estado

é razão

           de loucura».

É o «Regenerador e seu cão, em campo talado/de novo plantando a vida, superada a morte», pois por baixo dos escombros existe um «menino» que:

«buscava a merenda

na hora do recreio,

da maletinha marrom

saltava a banana de ouro

tresandando o papelão grosso,

onde o fecho fazia trec,

e à imagem do augusto

mordia os sabores do inferno

— metade cheiro de fruta

a iludir o fastio, e na outra metade

a podridão, hora

de voltar aos deveres, vendo Israfel

oculto no ar da aula,

que continuava a soprar.»

Menino que não desiste da Terra Prometida, mas sem «salvadores do mundo»: «Livre-nos, Deus!»

E a cara de cão é, como em S. Cristóvão,  «olho de homem»:

«Como se me fez esta cara de cão? Pois,/como se te fez esse olho de homem». Não há dúvida, são «os olhos/do teu cão,/transformado em ti».

Cão lírico e surpreendente de tão angélico, de tão humano:

«que brota em cima do arco-íris

seguro pelo olho deste cão

no meio do pelo, fixo

em âmbar, fogo, ouro, e posto

a rir»

Por isso continua o Poeta atento ao cão que «Longe,/uivava». O mesmo que, na escola, pelo meio da voz do mestre cada vez mais distante, com a geometria sagrada salva a geometria ensinada e as formas já são presépio e dos arquétipos da antiga gruta salva-se «o touro longínquo,/tangido pelo cão». É que este cão, não deixando de ser animal e como já vimos, humano e anjo, é ao mesmo tempo redundantemente, guardião sagrado do sagrado:

            «como um cão,

            guarde o corpo do santo, ou seja ali

            de Sagres o guardião».

O trilho do cão é o aquático caminho do Santo, o único que é seguro seguir, atravessando rios:

«Soltar, ou alçar, e

por íntima saudade,

que faz estar aqui

o que esteve lá atrás

molhado de futuro,

sacudir a morrinha

como um cão faz com a água

quando sai meio de viés do rio»

Do conhecimento do mito ao reconhecimento aos que, como Yung, designado «o chaveiro do tempo intemporal», possibilitaram que:

«vamos buscar juntos

mais no fundo,

enquanto um cão de plumas

uiva, cintilante e sereno, os compassos

da flauta, mágica

no lado escuro da lua.»

Esta poesia, sendo busca, lanterna no escuro, interrogação, não é a da procura fácil, muito menos linear:

«e, na luz, o cão

devorando a Lua,

ou tu, arvorando o Sol,

o mundo todo se ordene, tim-tim,

            na copa de Baco»

Porque este cão é um prestidigitador cósmico:

 « Em torno, o cão

brincava de arco-íris,

Melquisedec numa ponta

e Tobias, do peixe, na outra.»

Ele tem os segredos celestes:[19]

«uiva o teu cão

arcaico, e sua goela

regulada minuciosamente

ao mecanismo da lua»

Não esquecendo, contudo, as coisas da terra, como o amor entre um homem e uma mulher:

«É claro, se a tomas

como um cão de mostra, e deixas

que ela te tome como um cão de rastro,

na manga ou no mato

não resta escapatória.

Dia mais, dia menos,

estareis como um cão e gato:

em vez do oaristo,

aristos.»

Muito interessante, absolutamente surpreendente e feliz este jogo poético entre «oaristo» e «aristos»,  em que o grego «aristos» num contexto linguístico português pode ser interpretado, na liberdade do poeta, como um plural, contendo por isso em si em forma repetida o melhor, logo uma oposição ou impossibilidade, uma espécie de luta entre dois que pretendem Ser contra o outro. Mostrando como às vezes o amor, ou o «aristos», ao contrário do «oaristo», se apresenta como luta e prisão e mais uma vez é o cão a medida do cárcere, como já o foi da liberdade. Da nossa e da sua. É uma escolha e, ao mesmo tempo, uma impossibilidade:

            «Eu posso atar o pescoço do cão,

            posso aprisioná-lo

            na sua fome ou na minha palavra

            e meu afeto, posso mantê-lo

            junto de mim até a morte,

            posso retê-lo até,

            seu atavismo entretanto

eu não amarro.»

Talvez por isso, aguardando o veredicto dos deuses em concílio, «o cão ladrava/num canto da esquina,/segurando-se ao uivo».

E nem sempre a sua face é bela: «essa dupla face/de cara monstruosa». Porque «o rio/de leite» tem seu leito «sobre o rio Letes», fatal condição, numa existência onde até o amor é assassino.

É traduzindo talentosamente para a sua linguagem poética Oscar Wild[20] e integrando-o no meio do seu poema que expressa esta tremenda verdade:

«Pois! Todos nós matamos

o que mais amamos.»

 

Destrói as máscaras, como outras vezes retira a própria máscara de mago ou poeta e coloca a máscara de cão: «põe-se a ladrar»; «não pergunta/e, rubro,/limita-se a ofegar em ti/total, com a beleza inteira».

Tempo de ser apenas cão, quando «acompanha» com «seu focinho de bicho» e «segue teu passo». Ou «subitamente para». É o cão na caça, quando «é difícil dizer/quem fareja,/(que é bicho? que é homem?)/unido em tal forma está/quanto vive e morre». Por isso «O cão/nem uiva nem ladra, arfa/à lua em crescente» ou apenas «intempestivo/o cão salta, contente» e «te acompanha».

Este é o cão usando como máscara o seu próprio rosto:

«Pachorrentamente, o cão atravessa o lajedo xadrez

e vem estirar-se ao borralho, onde a cinza cai acesa

nas brasas do velho tronco de carvalho.

E fica assim, o focinho entre as patas

igual a todos os cães».

Aquele cujo sono «demora a morte e o inverno». Embora não haja máscara que os salve do destino comum, homem e cão: «é a paisagem/em que jazes com teu cão/sob este rosto arcaico».

Está o Universo certo desde que não o tome a «ilusão/de tomar um cão por gato/ou caçar com gato em vez de cão».

Aqui está um importante princípio desta arte profética que é o de saber dar os nomes às coisas por conhecer «a indistinção do cão […]/ à suave magia do poente»,  um cão que, com toda a naturalidade, apenas aspirará (ou nem isso…) à poética de um Caeiro, «cão sem análise», como quem

           «assim inteiro,

            do todo me inteirasse,

            inserindo-me em tudo

            quando não mais quisesse reter esse real

            que designo, vão desígnio

            de querer dizer

            o que não se alcança dizer

            e, sem dizê-lo, dobrar as riscas do vário

            no único que nos converge.»

Aspiração de poeta a este olhar translúcido de Caeiro ou cão, cujo mundo seria assim, e Caeiro não o teria descrito melhor:

            «tudo

            somaria a paisagem, íntegra

            que passa, sim, nos olhos de quem passa

            mas continua lá, e fica

            além de mim,

            pois sou eu só

            que vou passando.»

Acontece, porém, que este é o cão dos mitos, um cão «prodígio», o que «olha, com olharsimbolo/reflexo», aquele que é «senhor de dois mundos», «metido entre lobo/e cão,/bem e mal» e «ao lado do diabo», atravessa «as cascas da emoção» e domina os elementos: «troca os elementos/em sua circulação». O cão guerreiro «armado/de escudo e lança». Um cão de olhar profundo, pois não foi ele o que quase conheceu o afundamento sob o peso de um Deus?

Recordemos o ponto de onde partimos, que este «prodigioso» cão é aquele que «alcança as margens, espanejando água», um cão que «nada nas dimensões da peça,/voga seguro/e é, nesta água azul que a tarde derrama,/um campeão vigoroso».

Ele é o símbolo da salvação, o que suportou sobre seus ombros e por isso o salvou, o Salvador. O cão que dá coragem, que no «limite insuportável/de toda a minha capacidade de suportar/o cão gargalha, vindo enredar-se aos meus pés/em silêncio grave» e me permite a segurança ou voltar «para meu repouso» enquanto «um cão ressona». E mesmo quando ali fora «um cão faminto fuça os detritos», «meu cão dormindo recomeça a voar». Ressonando, voa e salva.

Este cão bússula («Meu cão é que me diz,/e uiva dourado: este/Este, a oeste/do Oeste, posto a este/do Este preso a Oeste,/é toda a origem»[21]), não é apenas o ponteiro que reorientando ocidenta o horizonte, é a própria explicação do Começo.

O cão que «se atravessa no caminho» é Hermes, que transporta o Poeta para o «velho café, onde o estudante/comia», numa «tardia peregrinação,/do que és agora, e eras antes», «só porque um cão atravessou teu caminho/enquanto atravessavas a rua/que não era dele,/e se pôs por ali a buscar o rabo/com ganas de morder, num movimento de roda/não sendo nada disso.» E é o «não sendo nada disso» que nos alerta para quão longe estamos já de um olhar opaco à Caeiro. Esse não teria, ao contrário deste, a saudade da liberdade:

«o que há

nos olhos de um cão

que contempla, além de si e do tempo,

é a floresta densa

e o instinto, saudade

de quanto o deixavam livre

as prisões da fome»

Ou de como uma prisão tem sempre uma porta dentro que liberta.

Este livro é um texto impensável, inesperado. O poema rodeia o cão e observa-o por todos os prismas como nenhum cientista conseguiria fazer, mas apenas um grande poeta ou um apaixonado saberia: interroga-o («Que leva a sonhar um cão/olhando, em torno?)»; mede-o («Entre homem e cão, a distância é a mesma/que entre cão e lobo»); empodera-o («Dorme o cão,/e a tua rede embala/o que existe»); usa-o («contemplas teu cão a correr/o espaço, que moves/sempre que o senhor da forja/sofre de ingratidão»); cronometra-o («Esta velocidade de cão/correndo da macega ao bosque,/não há como contar/em medidor mecânico»); olha-o profundamente («e vai/e vem, metade lobo/metade cão, impudico e contente»); ouve-o («Ganha sua voz o meu cão»); atravessa-o, trespassa-o com a visão («a verdade de um cão/há de ser essa cabeça pendida/e essa língua de fora, em marcha/por todas as derrotas»); humaniza-o («o cão, obediente, ao mesmo tempo/distante, humilde e orgulhoso/no seu porte de cão/ajuda a indefinir este crepúsculo/que me envolve»; «Ao sabor da invenção,/construída a ossatura do cão,/de repente é a razão/que ilumina toda de instinto a tua consciência»); reflecte-o (de mim recebe/essa cara dócil»); brinca com ele («Jogo de esconde-esconde/entre mim e o meu cão); entrega-se («Brinco com meu cão!/Ao cair do sol, cansado/volto para casa cheio de brincadeira,/feliz por saber que fiz o meu cão feliz»); perde as ilusões («e vejo, sem ilusão,/que foi meu cão quem brincou comigo»): compreende-o («Entre a obediência de cão/e sua argúcia»); vê-se nele («e um cão, rendido ao confortável,/baixa a cabeça e obedece»); acrescenta-o («Meu cão começa num ponto/encerrado em si, e progride/à medida que o ponto avança/sobre si, a cadência das patas/em curva cada vez mais regular e maior./1, 2, 3, 4 são as patas,/5 é o ponto de reunião,/6, 7, a progressão/e a reflexão não pára»); com ele se pacifica («Chega o cão, serenado»; «com muita tranquilidade e com seu cão»); infinitiza-o («No friso figura o cão,/que reenceta/infinito os círculo»); paradoxiza-se com ele («Eu e o meu cão, próximos/e distantes, somos indefinidos/no limite em que estamos»); une-se a ele na interrogação epistemológica e ontológica («Quanta coisa me separa,/na árvore, do meu eu e do cão!»); relativiza-o («Que sabe um cão,/nas suas sabedorias,/de toda essa tralha abstrata?»); anula-se com ele («não haver mais, nem cão nem homem»); justifica-se ou explica-se com o cão («se eu não estivesse aqui/imperativo, ridículo/como um rei sem trono,/não obstante dando ordens,/tentando compreender/o que me ultrapassa, a tocar/no fugidio,/que esperança haveria para o cão?»); associa-o ao princíoio da incerteza («não se alcança, esse ponto/finito a que chego, e parte sempre/noutra direção, como a corrida/do meu cão»); admira-o («Só meu cão lambe tal perplexidade»); amplia-o («baixas a mão nos lombos do cão,/sobes-lhe a carícia/macia/é a lomba, a loba, a pomba/com dois olhos de cobra trocando de fulgor/nos teus»); absolve-o-o («o cão, todo inocência»)[22]; ama-o («olhos que se cruzam/e compreendem, inteligentes de ternura»); coroa-o («cão/atravessando imperial os arcos do teu paço»); espiritualiza-o («Quem, à fulguração do ouro/ou tons de âmbar fugidio, podia adivinhar/a metafísica que ensina a matéria/e o corpo deste cão?»); eterniza-o («volta sempre esse cão/guardado na memória»); sagra-o («em porte inteiriço/que o torna/porta de templo, antro/de gruta, pedra/e cão/erguido, portentoso/triângulo»; «sagrado como cão»; «Atiro os dados/depondo a coroa na sua cabeça/e, coroado, de cara suja/meu cão vai dormir»); e com ele explica o mundo («e mundo/e homem/não são mais que o novelo redondo,/ou cão/em si enrodilhado, cão também/sem seu nome»).

Esta Poesia é um salto no abismo e o salto no abismo é a libertação da grande grelha ou grade da humanidade, a acusação e a culpa, de que apenas o cão e seu amor animal, total, poderá salvá-la:

«aqui está o teu cão, que

equidistante da macieira

ou tuas teorias

é como um horto de paz

no teu ressentimento.»

 

Nas prateleiras das livrarias imagino este livro numa nova secção para ele inventada, uma disciplina para a aprendizagem da ciência através do amor e da metáfora a que ainda não sei como chamar, mas pela qual fiquei a saber da existência de «fios do coração» e de anjos infinitos e outras maravilhas coexistentes com os demónios deste mundo aflito onde nos movemos e os poetas também.

 

 É difícil a quem se proponha escrever sobre esta poesia, não ceder à tentação de transcrever longas passagens. Porque as ideias se entrelaçam nos versos e a beleza é transversal do primeiro ao último. Cortar o que vem antes ou depois de uma passagem selecionada para ilustrar uma ideia é renunciar à perfeição da beleza. E no entanto assim tem de ser, ou arriscar-nos-íamos ao perigo anteriormente aludido: a que este texto excedesse em páginas o seu próprio objecto de admiração.

 

Santiago Naud é um Poeta (injustamente, para ele, mas sobretudo para nós) ainda não suficientemente conhecido em Portugal. Faço votos para que este livro possa ser distribuído no mercado livreiro português, que aqui seja lido, falado, transmitido. Para nosso bem. Porque não ganhamos um, mas três poetas: um poeta brasileiro reconhecido pelos seus pares, um poeta a escrever em português páginas douradas que desconhecíamos, e um poeta universal que não poderíamos, por mais tempo, ignorar.

 

27 de Setembro de 2017

 



[1] As palavras «abismo», «face», rosto», «cão» são algumas das mais presentes neste livro: «A face para os abismos»; «ele mesmo um abismo»; «Nós somos: o cão, o pastor, o menino,/às margens do rio das águas profundas/ante o espelho liso de líquida negrura...»; etc, etc, etc.

[2] José Santiago NAUD, Cara de Cão. Excepto quando devidamente identificadas, são deste livro, e portanto deste autor, todas as citações no texto.

[3] «eu presto ouvido

à voz cheia do cão, que me fala

de bruxos e navegantes.»

[4] E minhas faço as palavras do poeta:

« Para aqui me trouxeram,

pois mesmo vindo por conta própria

é sempre alguém que nos traz»

[5] Sem deixar de ter corpo, sem deixar de ser matéria:

« o que sabe incidir um cão

quando morde e baba, em nossa mão

quanto sua boca toca e a ultrapassa.»

[6] António TELMO, “Viagem a Granada”, in: Volume VI das Obras Completas: Viagem a Granada seguida de Poesia, Ed. Zéfiro, Sintra, 2016.

[7] Aquando da Reforma Ortográfica de 1911, insurgiu-se Teixeira de Pascoaes: «Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mistério… Escrevê-la com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformá-lo numa superfície banal». Santiago Naud põe o cão a correr no lugar do y a escorrer.

[8] «figura de cão, atento à chaga aberta

do dono, mostrando o joelho

e o bordão na mão

ao fim da Via.

Sant’Iago!»

[9] « Este cão

maior, pontuando o fim da via

do leite, é transição

entre cão e lobo»

[10] «desunindo as pontas do Caminho de Santiago,

como aquela loba em seu palácio».

[11] «Tobias foi,/tão longe, que hoje/quase me esqueço do meu cão.»

NAUD, Santiago. Ofício Humano. Rio de Janeiro: Livros de Portugal, 1966.

[12] NAUD, Santiago. Conhecimento a Oeste, Lisboa: Moraes Editores, p. 28, 1974)

[13] Nas palavras de S. Naud: «Explicação de Juan Capittin, camponês argentino da província de Buenos Aires, em conversa com o psicólogo Basílio Benítez, autor do livro Rabia, Indignación, Tristeza – em jaque-mate (1974), que tive o privilégio de ler ainda inédito em 1977».

[14] Numa atitude estético-filosófica a que António Telmo não hesitaria em designar como razão poética.

[15] Estando aqui o “i” colocado quase rigorosamente no lugar que, na árvore da Kabbalah, é atribuído ao “yod”. A propósito deste assunto, refere Pedro Martins: «Na Gramática Secreta da Língua Portuguesa, António Telmo é expresso em referir-se ao i, enquanto yod, posto no lugar de Tipheret, “como um Sol irradiante”, como “a luz ou o seu princípio”. Neste momento, uma correspondência solar é algo que não nos deve já surpreender». Pedro MARTINS, “António Telmo e Teixeira de Pascoaes: Sete Notas e uma Oitava acima, para uma Kabbalah pós- atlâmtica”, in: revista A Ideia, 2015.

[16] «É evidente que existem vários modos de articular os vinte e dois elementos, pelo que é possível multiplicar o número de fonemas da língua portuguesa. Todavia, só aqueles funcionam como traços distintivos. Eles bastam-nos para distinguir umas palavras das outras quanto ao seu significado. Não precisamos de mais nenhum para ser uma língua perfeita e totalmente significativa. Se deixamos de utilizar um deles, toda a fala se corrompe.»

[17] António TELMO, Volume II das Obras CompletasGramática Secreta da Língua Portuguesa precedida de Arte Poética, Ed. Zéfiro, Sintra, 2014.

[18] «cão das plumas», presença recorrente nestes poemas. As plumas são mais do que adormo, são um dos símbolos do poder e transcendência do representante, na terra, do ser divino nos céus:

«Mas teu cão, o negro,

luzidio e distinto

continua nos céus, nobre e incólume,

os gestos como quem nada

e manda,

dono dos ventos ou do aberto,

alto, muito alto,

ao alcance dos olhos

que a tua mão, sem tocá-lo,

toca

além do destino.».

[19] «conhecimento do meu cão

solto com as sabedorias da lua»

[20] No início do livro, como epígrafe:

«yet we all kill the thing we love

by all let this be heard

some do it with a bitter look

some with a flattering word.»

[21] «Há quem habite a origem

como este cão».

[22] «O cão levanta o seu olhar

inocente, inunda-me

de luz»

 

CORRESPONDÊNCIA. 48

26-07-2020 13:44

Carta de Dalila Pereira da Costa para António Telmo, de 12 de Junho de 1977

 

Porto, 12-VI-1977

 

Ex.º Senhor António Telmo

 

                        Com muito gosto de [sic] incumbo hoje da missão que me pediu nosso Amigo, José Santiago Naud: fazer chegar a suas mãos, este poema. Nosso Amigo, quando me escreveu da Argentina, estava já de partida para outro Centro e não mais tinha consigo os endereços dos Amigos: me pediu, assim, para me encarregar aqui de alguns envios. Sua própria morada, António Telmo, me era desconhecida: escrevi a António Quadros, pedindo-a: entretanto, ela me chegou esta semana, mas por outras mãos, (e por outro motivo): pelas de Agostinho da Silva: como vê, a rede está bem tecida: desde o alto. E aqui, na força da fraternidade.

Goze toda a beleza e fidelidade a uma Pátria e a um seu eleito (a quem é dedicado o poema) desta obra que hoje receberá, juntamente com esta minha carta.

E peço, queira aceitar, pela sua própria obra e dedicação a esta Pátria, toda a minha admiração e gratidão: seu servidor bom.

Com os cumprimentos e consideração,

 

[assinatura manuscrita]

Dalila Pereira da Costa

 

[Carta dactilografada, à excepção do local, data e destinatário.]

 

VOZ PASSIVA. 92

26-07-2020 13:00

Damos hoje a conhecer aos leitores uma recensão de Filosofia e Kabbalah até agora omissa na bibliografia passiva de António Telmo. Trata-se de um escrito não assinado, originalmente publicado em A Capital, de 1 de Abril de 1990.  

 

 

Fontes Judaicas - Redescobrir a «Kabbala» pela mão de António Telmo[1]

 

Investigador livre da «kabbalah», assim ortografada por vontade do autor, o escritor e filósofo António Telmo pertence à escola da filosofia portuguesa que se diz, na história das ortodoxias ocidentais, portadora de uma heterodoxia natural. Quer dizer: seria assim como uma coisa de nascença, que ou se tem ou se não tem. E nós, portugueses, temos.

O pensamento de António Telmo não é, portanto, à partida e à letra, acessível ao leigo, suficientemente contaminado pelas ideologias europeias que nos têm invadido através dos séculos dos séculos, ámen. O livre filosofar de António Telmo pressupõe não só uma nomenclatura especial, não encontrável no «marketing» das ideologias que se vendem e fazem vender, mas também um terreno cultural diverso das ideologias dominantes.

Telmo, o filósofo, parece encontrar essa nomenclatura, esse discurso, esse ponto de referência e essa heterodoxia nas fontes judaicas do nosso portuguesismo. No sefardismo «kabbalístico», como dizem as fichas enciclopédicas. E é nesse caudaloso rio do judaísmo ibérico, com sua vertente esotérica sempre latente, que o autor da «Gramática Secreta da Língua Portuguesa» se apoia para a tarefa tremenda e ciclópica que é pensar livremente em Portugal, País de todas as servidões e polícias mentais. Filósofo, para o escritor, é assim apenas o que filosofa, lapalissada que talvez o não seja tanto como parece. É que sendo filósofo «apenas» o que filosofa, isso pressupõe que ele não propõe nem impõe um sistema já arquitectado, o que na prática corresponde à derrocada de todas as escolas, academias, universidades e outros antros do negócio.

 

Nexo estruturante      

Com o livro «Filosofia e Kabbalah» (*), feito de apontamentos aparentemente desconexos, é a linha de liberdade e coerência interior que dá à filosofia de Telmo o seu único nexo estruturante. Não há sistema, há um rio heraclitiano que corre. Em obras anteriores como a «História Secreta de Portugal» e a já citada «Gramática Secreta da Língua Portuguesa», é ainda a vida das palavras e as raízes da língua portuguesa que movem o investigador. Daqui à «Kabbalah» vai um voo de águia.

Assumindo explicitamente a herança do filósofo Álvaro Ribeiro, que considera seu mestre, António Telmo parece adoptar a máxima de José Marinho que orienta hoje outras personalidades da filosofia portuguesa, tanto como o criacionismo de Leonardo Coimbra ou o saudosismo de Pascoaes. «Tudo já foi pensado, agora só precisamos de hermeneutas» teria dito José Marinho. «Mas – replica António Telmo – a hermenêutica é a mediação do visível para o invisível ou, como gostava de exprimir-se o mesmo filósofo, do patente para o oculto.» Daí o seu mergulho nos labirintos cabalísticos, exercício físico que torna esta obra não só salutar e higiénica mas terapêutica no melhor sentido. Só um senão: se o cristianismo era uma doença histórica, a verdade é que o judaísmo, mesmo sefardismo, não ajuda muito à cura. Até pode ser que agrave, como se deve ajuizar pelo capítulo que Telmo dedica, na esteira de Álvaro Ribeiro, à «valorização do sacramento do Matrimónio sobre o sacramento da Ordenação». Livra! Antes o cristianismo devidamente desinfectado, então!

 

Públicas vantagens das secretas cabalas

Publicamente, este pensamento pró-cabalístico tem vantagens higiénicas pelas críticas que faz às teias de aranha das nossas instituições. Ao estudar as «tradições heterodoxas da filosofia portuguesa», por exemplo, o autor da «Filosofia e Kabbalah» tem necessariamente de criticar o «ensino público» e isso faz sempre bem à saúde pública, especialmente mental. «No ensino público onde se dão – segundo o autor – os filósofos atrás uns dos outros, em dois, três meses, esquecendo a profunda, constante, demorada, no entanto instantânea, vivência de toda a vida a pensar, criar e compreender o próprio pensamento. Quem ensina Hegel e o discute, não pode evidentemente confessar aos alunos que o não compreende.» Pois é, António Telmo: há mais quem se queixe do mesmo.

Utópica em vários sentidos, a «démarche» dos filósofos portugueses, entre os quais António Telmo é já figura relevante, defronta-se com uma dificuldade de fundo, entre outras: as influências que nos rodeiam como povo, até ao subconsciente colectivo, não são, infelizmente, Leonardo Coimbra, José Marinho, Bruno, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Pascoaes, Agostinho da Silva, Teixeira Rego e muito menos o «Zohar», o livro do esplendor ou a «Poética» de Aristóteles. Somos hoje uns desnacionalizados filhos (às vezes da mãe) de Descartes, Kant, Hegel, Marx, Comte, Freud, Darwin, Pasteur, Pavlov e outras tão grandes aberrações como estas. Afirmar uma «heterodoxia» portuguesa no meio do mercado onde se vendem só estas ideologias, estes ismos, estas ortodoxias que se internacionalizaram, parece tarefa para muitas gerações. Defrontar as «internacionais do Terror» só com o saudosismo de Pascoaes, o criacionismo de Leonardo, o neocabalismo de Telmo, ou até mesmo o neo-hegelianismo de Orlando Vitorino, não será culturalmente suicida?

Os homens da filosofia portuguesa, muito prestáveis no seu conjunto e se lidos com os óculos da complacência, terão no entanto que aguentar, ainda durante muito tempo, a incompreensão e o sorriso irónico da arrogância positivista, vírus muito mais persistente e inoculado na nossa vida mental do que a SIDA.

De anatemizar o positivismo não se esquece António Telmo, ao afirmar: «É uma triste situação a nossa esta de portugueses, de nos vermos obrigados a relegar para a poesia o estudo de tão altos problemas. Ali tudo é admitido, até porque se não toma a sério. Por influência dos positivistas, dando a este termo a máxima extensão, o homem português procede como um ser duplo, cindido entre a “razão” e a “imaginação” e terá de ir buscar à autoridade de uma disciplina estrangeira a convicção de que lhe é permitido meditar em prosa quando verdadeiramente lhe importa. Assim, neste passo, é a Freud que recorremos.» Também aqui, António Telmo, há mais quem se queixe do mesmo.

Digno do melhor pensamento radical-ecologista é o capítulo «Como a perversão na linguagem leva à demência na sociedade», texto extremamente perspicaz deste escritor que, ao publicar «Filosofia e Kabbalah», nos deixa um dos livros mais desafiantes do ensaísmo português nos últimos tempos.

 

____________

(*) «Filosofia e Kabbalah», de António Telmo, Guimarães Editores, Lisboa, 1989.     

    



[1] Nota do editor – Publicado, não assinado, originalmente em A Capital, de 1 de Abril de 1990.


 

INÉDITOS. 95

12-07-2020 10:23

Conhecimento e pensamento[1]

 

O medo que certos espíritos, deste ou daquele modo interessados em sair, têm da gnose poderá também levá-los a reflectir que não é possível atingir uma relação real com a verdade, tocar, só que seja, o limiar do conhecimento, sem que o medo esteja lá como um apelo à audácia, não sofismada, da alma. A distinção entre conhecimento e pensamento ilude o problema. Eu posso pensar ao lado do tumulto da alma, dos seus desejos, dos seus pavores, proceder como se entre ela e o espírito a actual relação fosse acidental e, em consequência, separar o pensamento para nele me instalar e ver. Convirá então dizer que a filosofia é uma actividade do pensamento; o que nunca será possível afirmar é que essa actividade do pensamento conhece. Sabe só de si e somente enquanto cindido do mistério da vida visível e invisível. Aqui têm origem o idealismo alemão, tão habilmente, mas também inutilmente, refutado por Bergson.

Tudo indica que a valorização do pensamento, a entrega à actividade interior do pensar, é um refúgio para iludir o medo[.]

 

António Telmo



[1] Nota do editor – O título é da nossa responsabilidade.

 

VOZ PASSIVA. 91

04-07-2020 13:11

De uma carta de António Telmo sobre a Rainha Santa Isabel

Eduardo Aroso

Mestre desconhecido, Rainha Santa Isabel

Museu Nacional Machado de Castro, Coimbra

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Neste ano de dois mil e vinte, uma imprevista pandemia veio impedir a evocação da Rainha Santa que, no dia mais solene, congrega milhares de devotos ou simples admiradores da padroeira de Coimbra. Leva-me assim este hiato a reler uma vez mais a carta (*) que António Telmo me endereçou, pouco tempo depois de eu ter conhecido o filósofo em Alenquer. Nessa missiva tem lugar de destaque o tema do Espírito Santo e o de Isabel de Aragão. Como se pode imaginar e depreender do que António Telmo escreveu, a relação da Rainha Santa com o Espírito Santo (apesar do impulso que Isabel imprime e da oficialização do culto em Portugal) parece ser outra que não apenas a Terceira Pessoa da Santíssima Trindade, no sentido teológico clássico. Mas também não parece ser apenas o culto dessa energia vital e animista, difundido em todo o país, que já constituía prática, e que Moisés Espírito Santo menciona com pormenor na obra «Origens Orientais da Religião Popular Portuguesa (Assírio & Alvim, 1988).

 

Na tentativa de nos acercarmos melhor desse vulto singular que não se deixou conhecer completamente (a quem se tem chamado desde cátara, herética, cabalista, franciscana até à santa oficial do calendário romano), vamos pois considerar situações distintas que podem andar sob o mesmo nome de Espírito Santo, todavia vivências em contextos diferentes, ainda que as Três Pessoas, em última instância, só possam ser Manifestações do Único. Serve assim este intróito para quiçá melhor se entender o que Telmo diz na sua carta, a este propósito.

Pelo facto do culto do Divino andar associado desde tempos antigos, na sua expressão popular de Folia, à festa judaica do Pentecostes e ao marranismo, o sociólogo do sagrado, Moisés Espírito Santo, diz que esta festa do Divino nas suas manifestações de Folia e Bodo nada tem que ver com a Terceira Pessoa da Trindade, ao jeito trinitário e teológico católico. Esse conceito antigo de folia «coincide com a mais antiga tradição semita. As significações das múltiplas referências que faz o Antigo Testamento ao Espírito Santo coincidem todas com o conceito popular português e com as razões do seu culto nas Beiras».

Na Trindade, a questão do feminino sempre levantou dúvidas, pois tanto o Pai como o Filho estão associados à ideia do princípio masculino, pelo que o aspecto feminino forçosamente teria que caber no Espírito Santo. E assim se compreende que Shekinah, a Presença sobre a Arca da Aliança, tenha sido interpretada, desde tempos antigos, como emanação feminina da divindade. E por que não andrógina, já que a plenitude deste Sopro significa plenitude e redenção do Homem? M.E.S. insiste na transposição da figura bíblica de Ester para a Rainha Santa, dizendo que esta é «a nova Ester de Portugal». «É objecto do melhor sucedido, e mais arreigado, culto marrano ou cripto-judaico. Cultua-se exclusivamente  na igreja de Santa Clara em Coimbra». Prossegue, dizendo  que se dermos crédito aos cronistas da época não se compreenderia como tinha tempo para fundar tantas vilas, misericórdias, actos de assistência social e serviços devocionais. «De facto tudo quanto escreveram os cronistas sobre os méritos cristãos de Isabel de Aragão é um imbróglio mitológico tecido na Renascença, criado pelo núcleo dos Judeos-secretos de Coimbra com o fim de prestar culto à Santa Rainha Ester. Na época da sua canonização a Inquisição abateu sobre os cristãos-novos promotores do processo». Também já Sampaio Bruno dissera que os autos-de-fé não paravam, tendo acontecido um no próprio dia da notícia da canonização quando se queimaram freiras e outras pessoas. M.E.S. parece simplificar a figura da Rainha Santa, como veremos mais adiante.

Se, como disse Aristóteles, a poesia é superior à história, vê-se claramente que num poema hebraico do século XVI (extraído do Arquivo Coimbrão, em O Despertar, jornal de Coimbra, de 29/6/1990), na verdade, comparando as duas figuras femininas, em nada o autor minimiza a princesa de Aragão, mais tarde rainha, que entraria no nosso país pelas portas de Trancoso, terra do sapateiro Bandarra, que ali viria a nascer. Eis parte do poema. «És superior em glória às santas/(…) Grande a formosura de Ester, excelsa a elegância,/ Notável o ornamento  de Ester, tanto que, de preferência a todas/ As mulheres formosas, de preferência  a todas as donzelas,/ Recebeu-a como esposa o poderoso Rei da Síria./ E tu, Rainha, como a luz do Meio-Dia,/ Como as estrelas refulgentes no céu,/ Como o sol durante o dia e como a luz durante a noite,/ E como o lírio no jardim,/ És incomparavelmente formosa entre as Rainhas».

 

Nem estritamente do lado católico romano parece estar a posição de alguém que nascera na corte de Aragão (diz Sampaio Bruno que Pedro II rei de Aragão, denominado O Grande, foi o primeiro rei de Espanha «que ousou lutar com o papado»), próxima também de Raimundo Lulo e de Arnaldo de Villanova, nem do lado do cripto-judaísmo, fosse em Coimbra ou no interior das Beiras. Assim, não é difícil ver que o impulso dado por Isabel ao culto (uma espécie de oficialização), possa significar também o reconhecimento do reino ao que já estaria arreigado no povo, quiçá chegado que era o momento para uma ampla consciência nacional neste assunto. Preparava-se, com D. Dinis, mais ou menos  subterraneamente, a gesta marítima.

Natália Correia (Conferência de Santa Isabel, em «A Influência de Joaquim de Flora em Portugal e na Europa» Roma Editora, 2005) levanta uma questão deveras interessante: «Uma significação mais profunda e de cariz místico-pentecostal se insere no ritual fundado pela rainha D. Isabel em Portugal. E é a esta luz que nos surge a figura mítica do Preste João que, descontadas todas as interpretações místicas que o envolvem em maravilhas, ora na Ásia Central, ora na Mongólia, ora na Índia, ora na Etiópia, é essencialmente um título que designa não um indivíduo, mas uma autoridade espiritual ligada ao poder real, simbolicamente senhor de um reino que representa o centro supremo. O Preste João é, por conseguinte, o senhor universal que na Terceira Idade da doutrina joaquimita consubstancia a fraternidade planetária exposta no Evangelho Eterno anunciado por S. João no Apocalipse». Assim, na «autoridade espiritual ligada ao poder real», não é difícil perceber que tocamos no mistério de Melquisedec onde se realizará a utopia do poder espiritual-temporal. E não cabe aqui também a libertária afirmação de Pessoa «o nosso destino é sermos tudo»?

M.E.S., focando outro aspecto, diz: «Isabel de Aragão encontra-se confundida, antes de mais, com a sua tia, Santa Isabel da Hungria» pelo que os cronistas mais não fizeram do que diz a Lenda Dourada sobre a rainha húngara», acrescentando M.E.S. que «o milagre das rosas é de origem húngara». Continua com uma procissão de semelhanças e confusões, dizendo que Isabel «se confunde com a mãe de São João Baptista e esposa do sumo sacerdote Zacarias. Hoje apenas nos apercebemos, num ou outro ponto, que o culto coimbrão de santa Isabel é pouco “católico”».

 

Na verdade, na actualidade, e desde há muito, o culto tornou-se bastante católico, o que se vê pela enorme procissão de milhares de pessoas, muito embora possam existir, menos visíveis, outras formas de devoção mais heterodoxas. A Igreja romana não tinha, com toda a vantagem, outro modo de agir, senão chamar a si essa devoção isabelina, como noutras circunstâncias históricas. Tal é o caso de Lourdes ou Fátima (cujas manifestações, neste caso, são anteriores  ao início do séc. XX), assunto que foge ao escopo  do presente texto. Perante tanta transposição, M.E.S. parece esvaziar a múltipla e complexa personalidade da Rainha Santa, pouco falando e nada enfatizando, por exemplo, a sua causa franciscana (mal vista pelo papado), esse braço da Igreja de Cristo tão próximo do povo e que havia de seguir nas naus, como bem no-lo disse Jaime Cortesão. Se atendermos ao seu berço e à sua educação (à parte a sua posterior condição régia) dizermos que Isabel é uma santa popular, podemos estar a dizer santa popularucha. Ou seria também diminuí-la vermos apenas a esposa real e medieval que, sem margem de iniciativa, apenas acompanha o rei quando necessário. Diz-nos Sampaio Bruno que «Desde os tempos em que «a casa de Aragão, para Roma, achava-se, justificadamente, mui longe de estar em cheiro de santidade. Bastaria considerar o Pedro, anterior no nome, ao pai da Rainha Santa, esse Pedro II que, contra a cruzada católica pelejou ao lado dos heréticos albigenses e sucumbiu no lance de deixar o sítio de Muret».

Voltemos a M.E.S. «No judaísmo popular também há uma questão de segredos. (…) A certo momento das cerimónias um responsável ordenava: “vamos à tradição meus senhores!”(…) 0 segredo é de cariz iniciático. Era nesse dia que os Essénios admitiam os novos membros para serem iniciados». Se a ideia de uma certa iniciação fica clara na Festa mais antiga do Divino, por que não admiti-la no milagre das Rosas em Coimbra, descartado por muitos estudiosos que insistem na rainha húngara como a vera personagem desse e de outros milagres?

António de Vasconcelos (1860-1941) um incansável investigador de arquivos antigos, na sua insígne obra «Rainha Santa Isabel», não obstante descrever as obras e actos caridosos da rainha, não diz uma única palavra sobre o «milagre das rosas», nem Sebastião Antunes Rodrigues em «História Popular da Rainha Santa Isabel». Reinhold Schneider (Baden-Baden, 1903 – Freiburg, 1958), que conheceu Portugal, tendo escrito sobre Camões e Nuno Álvares Pereira, na sua obra «Santa Isabel da Hungria (Santa Isabel da Turíngia)», ed. evoramons, 2005, apenas na pág. 23 escreve, entre descrição fora do assunto de taumaturgia: «a narração do milagre das rosas, que inicialmente dizia respeito à infância de Santa Isabel, transpôs a miséria e misericórdia originárias desta missão para o casamento». Uma abordagem assim, sem mais nada, parece sumida ao pé das Rosas de Isabel, rainha de Portugal. Muito embora existam crónicas do milagre moedas em rosas (Coimbra) e rosas em moedas (Alenquer), estando este último bem patente num baixo-relevo logo defronte da entrada principal da Igreja de Santa Clara-a-Nova, não se vislumbra contudo em registos antigos a cena do pão para os pobres, escondido no avental, transformando-se depois em rosas. O que leva a pensar que a tradição popular colocou pão no lugar de moedas, talvez porque pão – ao invés de moedas, que nos lembra tesouraria – tem um sentido maternal de quem alimenta a pobreza. Todavia, não altera o que se segue sobre o sentido profundo dos dois milagres complementares citados.

 

 

Chegámos ao ponto essencial para melhor entender a carta de António Telmo. Se a tradição e o segredo se coloca – segundo M.E.S. e outros – no judaísmo popular, porque não considerá-lo também em gnoses como a Alquimia ou outra escola esotérica que venha desde os tempos egípcios e gregos? Desde a primeira educação na corte de Aragão, à absorção de uma cultura que ia da Botânica à Música e à Medicina, as personagens notáveis que conheceu, aos desígnios de ser esposa de D. Dinis, a chamada «operação inversa» (conhecida dos verdadeiros esoteristas), está bem patente nas citadas cenas de transformação (transmutação) das moedas em rosas (Coimbra) e das rosas em moedas (Alenquer). Quando não se entende isto, fica incompleto o conhecimento daquela “anónima” que tendo pronto o hospital-hospício pouco tempo antes de falecer, pediu que a sua inauguração fosse apenas logo depois da sua passagem ao outro mundo. Insistimos na «operação inversa». Assim, António Telmo, sibilinamente, chama ao assunto a leitura de «O Burro de Oiro» de Apuleio. Na verdade, tudo indica que «comer rosas» esteja no mesmo meandro de transformar pão em rosas, ou rosas em moedas. Telmo vai mais longe: «A relação da Rainha é com obreiros e não com pobrezinhos, com seis membros da Maçonaria operativa. Ela, tal como Santa Maria, só pode significar, pelo milagre, a mediação de Shekina ou do Espírito Santo, esplendorosamente expressa no símbolo da rosa pelo qual Lúcio regressou ao estado original».

 

Max Heindel em «Os Mistérios das Grandes Óperas» (edições Alfaómega, Lisboa 1979), sobre o mito de Fausto, de Goethe, chama a atenção para a mesma questão: «Quando da primeira aparição de Mefistófeles, no Fausto, Goethe ensina-nos a verdade esotérica que consiste em saber que um Espírito, quando entra por uma porta terá de tomar o mesmo caminho de regresso. Fausto não trilha o caminho regular da iniciação, não obteve nem a admissão nem a ajuda dos Irmãos mais Velhos; a sua impaciência faz com que escolha a porta errada». Fausto desespera e não fosse o cântico celestial de domingo de Páscoa, teria tomado a ampola de veneno. «Está condenado ao desapontamento por contar, essencialmente, com os outros». Mas Fausto não desiste e pede a Lúcifer que o ajude. «Este não teve dificuldade em penetrar no escritório de Fausto; porém, quando intenta voltar a sair, verifica que uma das pontas [do pentagrama] lhe barra a passagem. Pede, então, a Fausto para deslocar o signo, ao que este responde: - o pentagrama causa-te problemas? Hi! Diz-me lá, filho do Inferno, se o signo te esconjura, como é que conseguiste entrar aqui? Como é que um espírito como o teu cai em semelhantes armadilhas? Por que não sais tu pela janela?» É claro que esta cena mostra também a diferença das duas magias que o ser humano pode praticar, mas o que importa realçar é que só um profundo conhecimento (que pode ser iniciação) confere o sentido inteiro da polaridade e da ordem. Depreende-se que um dos milagres da Rainha Santa não poderia existir sem o outro. Neste caso, a porta é a mesma, ou seja, a porta representa um verdadeiro saber específico (iniciação) que é a senha, e que, hoje, no mundo temporal, mas nos antípodas do espiritual, se conhece pela prosaica expressão “pass-word” na mais corriqueira tarefa.  

 

 O que a Rainha Santa operou em toda a sua vida não foi uma vivência palaciana, ao jeito de tantas outras que a história regista, e muito menos um saber de enciclopédia. O povo diz que «El-rei D. Dinis fez tudo quanto quis», mas não menos verdade foi que Isabel, vistas bem as coisas, para além das naturais limitações físicas, terá feito tudo quanto quis!

 

(*) Publicada em A AVENTURA MAÇÓNICA – Viagens à Volta de um Tapete (2011, Zéfiro)

 

Coimbra, Solstício de Junho, 2020   

DOS LIVROS. 68

28-06-2020 18:32

Diálogo sobre a Pátria[1]

 

I – Uma Carta de António Telmo

 

NO DIÁLOGO SOBRE A PÁTRIA que ESCOLA FORMAL publicou nos anteriores números[2], participaram quase todos os seus colaboradores. A redacção do que nesse diálogo se disse foi feita de lembrança[3] e aconteceu que alguns dos dialogantes não chegaram a ler, antes da publicação, o escrito das suas palavras. E embora todos reconhecessem a fidelidade e o rigor do escrito, António Telmo observou, no que lhe diz respeito, que ou faltou escrever o mais significativo das suas afirmações ou ele o não terá chegado a dizer durante o diálogo. Por isso nos enviou a seguinte carta:

 

Ao Director da Escola Formal

 

Como acontece quase sempre numa «conversa», a exigência de tudo converter ao mesmo não deixa os intervenientes exprimirem pelas palavras mais transparentes o pensamento que os inspira. Foi o que se deu, pelo menos no que me diz respeito, no diálogo sobre a Pátria relatado no último número da «Escola Formal». O que eu queria dizer e, parece, não chegou a ser dito é que a cifra Reino da Criança tem como valor oculto o Reino dos Iniciados. A determinação deste sentido pode ser figurada em várias direcções ou aspectos:

 

1. A criança aprende a falar e, falando, se torna o homem comum que, depois, se o acaso o quer, governa os outros homens. Os chefes políticos são como todos os outros homens crianças crescidas. Resultam do desenvolvimento, no plano da linguagem, do instinto de imitação dos adultos que, naturalmente, há em todas as crianças. A família, o ensino público ou privado, o convívio social aproveitam-se desse instinto de imitação, natural no ser que cresce, para o moldarem automaticamente, senão intencionalmente, ao estar no mundo próprio de adultos que nunca se interrogaram sobre o ser essencial.

Ser homem e não somente uma criança crescida implica o sentido da palavra profunda que não chegou a ser aprendida, consiste em «desaprender» o falar que se aprendeu, em se tornar Infante. O Reino da Criança será o daquele que, como D. Henrique, possui o «talent de bien faire». Ao mesmo se refere o povo sábio quando afirma que «quem sabe faz, quem não sabe, ensina». 

 

2. No adulto permanecem, mais ou menos soterrados, o medo aos outros homens, a insegurança interior e a consequente agressividade, a fome de carinho, o falso amor próprio, o exibicionismo, o não ser capaz de estar só que gera o instinto das massas. Estes resultados da condição infantil revestem-se e configuram-se numa personalidade ilusoriamente firme que esconde uma malévola, ameaçadora e perigosa debilidade congénita. Numa zona mais profunda do inconsciente, tão profunda que só raramente durante toda a vida se revela ao espírito e, quando se revela, logo é repelida, jazem o medo pânico que resulta do sentido do mistério do Universo, a sensação de que tudo está suspenso do Infinito, a fé e a verdadeira caridade, a suprema energia do pensamento, a capacidade de espanto sem a qual não há filosofia. Mas não nos iludamos. Se estas qualidades estão soterradas, caso ainda sejam, no adulto, são contudo apenas um germe na criança, uma infinitesimal potência e, por isso se enganam de todo em todo aqueles produtores de literatura infantil, já ridicularizados por Fernando Pessoa a propósito do Bartolomeu Marinheiro de Afonso Lopes Vieira, que as confundem com o tipo de sensibilidade rudimentar, informe e nevoenta, das crianças.

A criança não tem o sentido do mistério do Universo nem a «sensação de que somos um nada suspenso do infinito» porque já nasce identificada com o ser natural a partir do qual evolui para a mais degradada identificação com o ser social. De tal modo e tão intensamente esta identificação se realiza que só mediante uma revolução ou cataclismo da alma pode aparecer na criança crescida que é o adulto aquilo a que Leonardo Coimbra chamou a «visão inversa» própria da «iniciática cristã».

 

3. Por aqui se vê que, ao falar do Reino das Crianças, estava muito mais a pensar naquelas que nasceram ou nascerão pela segunda vez do que nesse erro moderno de que a verdade está nos jovens, na sua revolta contra o mundo dos adultos. Quando os jovens casam, logo se adaptam ao mundo dos adultos, à rotina do mundo quotidiano e feminil e tudo fica como d’antes. Em geral, ingressam num partido político, em qualquer forma patriótica ou anti-patriótica de internacionalismo, enganando os impulsos, porventura espontâneos, de liberdade e de direito, fingindo-lhes uma falsa sobrevivência em qualquer espécie institucionalizada de servidão.

«Nascer outra vez» não significará regressar aos anos de infância, ao domínio infantil da fantasia, àquela espécie rudimentar e primitiva de sensibilidade, informe e nevoenta, que é a da criança biológica. «Nascer outra vez» significará «nascer no espírito» porque até lá todos nós somos, se o somos, apenas «esboços de alma», como escreveu Leonardo Coimbra. Ora não é possível nascer no espírito sem receber a influência que desce por aquela linha medial da porta dos Jerónimos, com no alto o Anjo da Face, em baixo o Inferno e entre os dois a Santa Natureza Purificada. Não há purificação da natureza sem expurgação de toda a coorte virgiliana que povoa os infernos do ser.

Este mito de Portugal contém o apelo a uma ética que coincide com aquela que vem numa outra página da «Escola Formal». Mas esta ética é apenas a norma que nos conduzirá até ao portal sul dos Jerónimos. Ali onde começa a suprema vida nova que os nossos maiores souberam ligar ao segredo da vida da própria Pátria. Terão conseguido os nossos menores desligar o que aqueles ligaram?

Com os cumprimentos de…           

 

(…)

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)




[1] N. do O. – Publicado originalmente em Escola Formal, sexto número, Junho de 1978.  

[2] N. do O. – O primeiro diálogo sobre a Pátria, sob o título “Ainda temos Pátria?”, foi publicado no quarto número da revista, de Outubro/Novembro de 1977; o “Segundo diálogo sobre a Pátria” no quinto número, de Dezembro de 1977/Fevereiro de 1978.  

[3] N. do O. – Por Orlando Vitorino (1922-2003), com Afonso Botelho co-director da revista. O autor viria a incluir os dois diálogos na sexta parte, “Pátria e Constituição”, do seu Manual de Teoria Política Aplicada (pp. 221-254), livro postumamente publicado em 2010 pela Verbo/Babel. 

 

INÉDITOS. 94

21-06-2020 13:21

A linguística de Joseph de Maistre[1] ou de como foi andando para trás que se adiantou em linguística

 

 

Uma constante na interpretação moderna dos fenómenos mítico-religiosos, que tem a sua expressão suprema na filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer, é o dá-las como ilusões do espírito. É certo que o idealismo alemão os concebe como formas reais da vida do espírito, como um momento necessário da sua fenomenologia, reais mas para serem transcendidas, integradas ou anuladas na forma pura dos conceitos. Não me parece que o espírito tivesse tido a paciência de esperar durante milénios pelas línguas indo-germânicas para encontrar finalmente através delas a possibilidade de se pensar a si próprio.

Característica da filosofia francesa de Joseph de Maistre no campo da reflexão sobre o mistério dos mitos e das línguas é que não se constrói sobre o orgulho luciferino. O demónio de Joseph de Maistre é um demónio restituído ao temor de Deus e ao deslumbramento perante a Criação, embora sem ter perdido a lucidez e a valentia do anjo rebelde. Sempre o que ficou para trás se configura na filosofia alemã, quer se trate do espiritualismo de Hegel ou do materialismo de Marx, como um momento menor da sabedoria desenvolvendo-se no tempo da história. O Espírito ou a Matéria, com as maiúsculas próprias da língua, evoluem por fases sucessivas de afirmação e negação até que o ciclo se feche na quietude omnisciente e omnipotente do Estado. Num e noutro caso o homem é o Adão Kadmon ou Ishwâra, realizado do todo para o uno ou do uno para o todo. Não há mais nada fora dele e tudo quanto há nós o conhecemos. A filosofia é a ciência absoluta.

Para Joseph de Maistre a história é formada por quedas sucessivas. «Estamos cegos, escreve ele, sobre a natureza da ciência, cegos por um sofisma grosseiro que fascinou toda a gente e que é o de julgar o tempo em que os homens viam os efeitos nas suas causas pelo tempo em que se elevam trabalhosamente dos efeitos às causas, em que não se ocupam  senão dos efeitos, em que dizem ser inútil ocupar-se das causas, em que ninguém sabe sequer o que é uma causa». E noutro ponto: «Não só começaram os homens pela ciência, mas por uma ciência diferente da nossa e superior à nossa, porque começava mais alto, o que a tornava muito perigosa». Assim, para o Irmão Kadosh Joseph de Maistre aquilo que o homem sempre pensou é muito sério, de uma seriedade terrível e sagrada e santa que não pode iludir-se pelo artifício mental de qualquer filosofia. Descartes é o filósofo que «nunca teve dúvidas sobre nada».

Se, neste artigo, é a filosofia alemã e não a francesa ou a inglesa que é posta em contraste com o pensamento de Joseph de Maistre, não deve esquecer-se que dela se originou o grande movimento linguístico que hoje domina a humanidade culta. Herder e Humboldt, durante o último século apontados como românticos pela orientação positivista dos comparativistas alemães e franceses, foram completamente reabilitados pelo estruturalismo americano de Sapir, Whorf e Chomsky. Joseph de Maistre nunca aparece referido nos livros dos linguistas do nosso tempo e, no entanto, o segundo serão de S. Petersburgo figura entre o que de mais sério e descobridor se escreveu até hoje sobre a natureza, o significado e a origem das línguas.

A ideia mestra[2] de um «princípio oculto que forma as línguas» é paralela da ideia humboldtiana de «forma linguística interior» que os modernos linguistas fazem corresponder a estrutura. A palavra forma é equívoca. O seu sentido oscila entre o substantivo e o verbo. O próprio Aristóteles empregou forma ([…][3]), umas vezes em sentido substantivo, outras em sentido verbal. No primeiro destes sentidos equivale a figura; no segundo a princípio formativo, gerador da figura própria do ser. É o segundo que equivale à ideia mestra de um princípio oculto que forma as línguas.

O estruturalismo degrada-se na medida em que substantiva o conceito de forma. Se a expressão de Humboldt pode ser interpretada ou como «figura interior de uma língua» ou como «princípio que forma uma língua do interior», ao caracterizar-se o pensamento de um linguista devemos sempre determinar em que sentido ele se desenvolve. Todavia, a adopção da palavra estrutura pela palavra forma é já um indício de que o verbo se subsumiu no substantivo. O étimo de estrutura é o mesmo de construção. Do conceito de língua como organismo para o seu conceito de língua como mecanismo, a linguística percorre o caminho que, de Humboldt através de Descartes leva até Saussure e Noam Chomsky.

Assim a linguística oscila como um pêndulo entre uma imagem fornecida pela biologia e uma imagem fornecida pela matemática. Não excluindo nenhuma delas, a filosofia de Joseph de Maistre subordina-as a um princípio superior.

É significativo que o autor dos Serões de São Petersburgo tenha sublinhado com assentimento estas palavras do anatomista Hunter: «Ligamos a ideia de vida à ideia de organização; de maneira que temos dificuldade em imaginar ou conceber um fluido vivente; todavia, a organização nada tem de comum com a vida. Ela é apenas um instrumento, uma máquina que não produz nada. Até mesmo em mecânica precisa de qualquer coisa que corresponda a um princípio vital, isto é, de uma força. Se reflectimos atentamente sobre a natureza do sangue, temos de admitir a hipótese que o considera vivente…»

Esta dissociação da organização e da vida, impensável na biologia alemã de um Goethe, por exemplo, transportada para o domínio da linguagem do homem, produz o seguinte silogismo: se a língua é organização não reside nesta o seu verdadeiro princípio, mas há que procurá-lo em algo equivalente, no plano do espírito, ao fluido vivente que anima os organismos. Esse equivalente é o pensamento ou a palavra. Joseph de Maistre distingue entre língua e palavra: «As línguas principiaram, porém a palavra nunca e muito menos com o homem. Esta está necessariamente antes daquelas, porque não são possíveis as palavras senão pelo verbo. Todas as línguas particulares nascem, como o animal, por meio de explosão e desenvolvimento, sem que o homem tenha alguma vez passado do estado de aphasia ao uso da palavra. Sempre falou e por isso com muita razão os hebreus lhe chamam alma falante. Quando se forma uma língua nova, nasce no meio de uma sociedade que está na plena posse de um idioma; e a acção ou princípio que preside a esta formação não pode inventar arbitrariamente nenhuma palavra: vale-se das que encontra perto de si ou das que procura mais longe; alimenta-se delas, dissolve-as, digere-as; nunca as adopta sem modificá-las mais ou menos». E noutro ponto, definindo mais precisamente o princípio oculto que forma as línguas, escreve: «Nenhuma língua pôde ser inventada nem por um homem, que não teria podido fazer-se obedecer, nem por muitos, que não teriam conseguido estender-se entre si. O melhor que pode dizer-se da palavra é o que disse daquele que se chama palavra: “Lançou-se antes de todos os tempos do seio do seu princípio; era tão antigo como a eternidade… Quem poderá contar a sua origem?”»

Os estruturalistas que procuram determinar as leis secretas da organização fonética de uma língua, ou da sua organização morfológica e sintática, vão evidentemente muito mais longe do que se esperava de uma linguística durante muito tempo dominada pelo positivismo e pelo evolucionismo. Todavia, à luz da filosofia mestra, atingem apenas, no melhor dos casos, aquilo a que poderíamos chamar o “corpo subtil” da língua. As estruturas profundas de tipo lógico-matemático são ainda um “pensado”, não são o pensamento, não são aquela actividade do espírito que pensa e que vem “έξοθεν”[4] e que por isso merece o nome que lhe dá de Maistre – anjo.

Não é uma estrutura ou um sistema de oposições e associações de conceitos o princípio último das línguas, mas um ser. A ciência, até quando admite esferas superiores de conhecimento, tende sempre a expulsar do círculo da sua reflexão a ideia de que existam seres intelectuais a nós mas, por isso mesmo, se esses seres existem, só atinge verdades incompletas. Tais seres não podem conceber-se como seres particulares, mas como seres universais, voltados para o uno e pelo uno movidos, o que não significa que não sejam diferentes. É isso que permite a Joseph de Maistre, embora admitindo a universalidade do pensamento ou da palavra, dizer que «cada língua tem o seu génio e esse génio é único».

Ao distinguir as línguas umas das outras, procura apreender os processos de formação das palavras no grego, no latim e no francês e os exemplos que dá nem sempre parecem correctos do ponto de vista da etimologia actual. Todavia, o princípio geral dominante nesses processos, na medida em que consistem em reduzir uma frase ou uma expressão a um só vocábulo, em aglutinar dois ou três vocábulos formando um só, em destruir ou dissolver,  devorar, digerir palavras, sílabas ou fonemas, começa a ser aceite por alguns linguistas modernos, como Emílio Benveniste que explica a formação de palavras compostas não pela reunião de duas ou três palavras mas pela síntese de uma frase verbal ou de uma relação predicativa. Benveniste considera tal processo o fenómeno mais singular de formação linguística. Ridicularizado pelos intérpretes do Crátilo que, ao mesmo tempo, repeliam a Notarikon da Kabbalah, talvez num futuro não muito distante venha a etimologia tradicional a ser aceite pela ciência linguística. O ponto de vista foneticista, que prevaleceu antes do estruturalismo, inventou as “leis do menor esforço” e da percepção imperfeita, ambas rebatidas por Sapir, para explicar a redução que se deu no plano fonético na passagem do latim para as línguas dele derivadas, particularmente no francês e no português. A influência da semântica, isto é, da deslocação de significados, como por exemplo de mágica para meiga, também admitida por Sapir é para Joseph de Maistre a principal causa da redução, que oculta num novo significado o significado anterior.

Esta redução não deve, pois, confundir-se com degenerescência, embora, na medida em que vai crescendo a grande árvore das línguas, os últimos ramos tenham já menos vigor que os primeiros. «O talento onomatopaico desaparece, indubitavelmente, à medida que se vai chegando às épocas de ciência e de civilização». Degenerescentes verdadeiramente são para Joseph de Maistre, que distingue ciência de filosofia e civilização de cultura, as línguas dos selvagens que são «ramos separados das árvores». Esta árvore é simultaneamente a árvore genealógica das línguas e a árvore sephirótica descrita e explicada no Sepher Yetsirah, a árvore das ideias inatas e das categorias de relação predicativa, num completo sistema de inferências.

Tão depreciativo juízo sobre as línguas dos selvagens parece contraditado pelos estudos de antropólogos como Franz Boas, Lévy-Strauss, Eduardo Sapir e sobretudo Lee Whorf. Sobretudo Lee Whorf porque a este se deve uma interpretação dessas línguas que as separa, enquanto estruturas mentais de compreensão do mundo, das línguas indo-europeias que interpreta como sistemas construídos à volta dos conceitos de espaço e tempo, das “formas a priori da sensibilidade”, tais como as definiu Kant. Tais línguas não têm os conceitos de espaço e de tempo, mas fornecem esquemas capazes de levar a uma compreensão superior da natureza, que vai até ao domínio dos nómenos considerado inacessível pela filosofia kantiana. Lee Whorf não diz que os povos ameríndios ou africanos têm essa compreensão, mas que dispõem de línguas capazes de serem aproveitadas para a ter.

Postas assim as coisas, a linguística moderna não se afasta do ensino de Joseph de Maistre. As línguas dos selvagens, escreve ele, «são fragmentos evidentes de línguas mais antigas destruídas ou esquecidas. Os gregos tinham conservado algumas tradições obscuras deste conceito; e quem sabe se Homero não testemunhava a mesma verdade, sem talvez o saber, quando nos fala de certas coisas “que os deuses nomeiam de uma maneira e os homens de outra”?» Lee Whorf estudou esses fragmentos.

Não interpreta Joseph de Maistre a degenerescência das línguas por uma lei mecânica, mas alude enigmaticamente a um crime do homem, tanto mais grave, tano mais pesado e terrível quanto maior e mais profundo é o conhecimento que o homem possui dos primeiros princípios. Felizmente, diz ele, não possuímos esse conhecimento. Tudo indica que, para o martinista Joseph de Maistre, companheiro de Saint-Martin e, como ele, seguidor do português Pascoal Martins, o pecado original significado no Génesis foi um acto de magia negra, decorrente do poder que Adão possuía sobre o fluido vivente ou princípio vital com que o sangue pode ser identificado. Mais do que nos Serões de São Petersburgo é na Teoria do Sacrifício que o mistério das origens é reflectido.

Esse crime representa-se desde as origens na história da humanidade e repete-se em formas, cada vez menos terríveis, porque o conhecimento foi diminuindo. As línguas europeias não são ramos separados da “árvore” mas degeneram e desagregam-se pouco a pouco. Ao mesmo tempo, porém, confundem-se e comunicam entre si. A confusão das línguas é o aspecto negativo deste momento babélico e decisivo da história que estamos vivendo; a comunicação das línguas é o seu aspecto positivo. Descemos ao fundo do abismo. “Tudo anuncia que caminhamos para uma grande unidade que devemos saudar de longe».

 

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Joseph de Maistre marca na filosofia francesa, quanto a nós portugueses, o seu momento mais alto. Teria sido possível mostrar como a filosofia portuguesa, que infelizmente ainda não entrou no movimento de comunicação das línguas, o que faltava para que a profecia acima se cumpra, é fiel à mesma verdade que inspirou o discípulo de Pascoal Martins. É o que se pode verificar lendo os livros de Sampaio Bruno, Teixeira Rego, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino ou José Marinho. 

 



NOTAS

[1] Nota do editor – António Telmo grafou sempre, neste escrito, “Maîstre” em vez de “Maistre”. Optámos por alterar sistematicamente o texto em conformidade com esta última fórmula, que é a correcta. Admitimos, todavia, que pudesse ter havido da parte do autor um propósito de significação etimológica na opção pela variante “Maîstre”, modo presumível de aludir, nomeadamente, ao conhecimento ou ao grau de mestre (maîtrise, em francês) de Joseph de Maistre. Cf., a este respeito, a nota seguinte, da autoria de António Telmo.  

[2] À falta de um adjectivo em português para Maistre, emprego a palavra mestra. O próprio Joseph de Maistre creio que não repudiaria uma ligação etimológica entre Maistre e maîtrise, até pela sua graduação em Irmão Kadosh na Maçonaria.

[3] Nota do editor – António Telmo não chegou a concretizar a palavra grega que pretendia grafar entre parêntesis. Tratando-se de traduzir o vocábulo português forma, duas hipóteses se colocam: a) μορφή, morphé, que remete para algo individualizado, quase sempre perceptível pelos sentidos, como a aparência, a figura; b) εἶδος, eidos, significando algo que confere à matéria uma essência, uma universalidade. Parece ser este εἶδος que falta, entre parêntesis, no texto de António Telmo. 

[4] Nota do editor – Trata-se do advérbio “éxoten”, vocábulo grego que em português significa “do exterior” ou “de fora”.

 

VOZ PASSIVA. 90

10-06-2020 09:43

A camonofilia de António Telmo[1]

António Cândido Franco

 

António Telmo (1927-2010) foi um fino e subtil ensaísta, na linha de Fernando Pessoa e Mário Saa, com uma vasta erudição linguística, do latim ao hebraico, e uma inteligência simbólica muito ágil nos saltos semânticos, virtudes raras em época marcada por estreiteza apertada da razão e que bastam para destacar os trabalhos que assinou, se não mesmo para fazer deles casos únicos no domínio do ensaio poético em Portugal.

Estreou-se com um livro de semblante pré-clássico, Arte Poética (1963), muito atento aos problemas da linguagem verbal e aos tópicos da poesia virgiliana, e fechou com um livro póstumo, A Aventura Maçónica–Viagens à Volta de um Tapete (2011), onde se deteve a desenvolver com sagacidade aspectos relativos à dimensão simbólica que sempre o preocupou.

Entre a curta dezena de livros que deu à estampa, os estudos dedicados a Camões constituem parcela expressiva, pela regularidade da publicação, pela atenção diversificada, pela singularidade das abordagens. No total deu à luz da publicidade, entre 1977 e 2011, ao longo de mais de três décadas, um conjunto de oito estudos de boa arquitectura, quatro deles desenvolvimentos sólidos uns dos outros, a que se somam oito textos de curto fôlego, por vezes simples apontamentos, mas nunca irrelevantes, em pouco mais dum parágrafo.

Consciente decerto da novidade das suas leituras camoninas, capazes de marcarem uma diferença entre a vasta silva dos estudos dedicados ao épico português no período que foi o seu, António Telmo, quando chegou a ocasião de iniciar a publicação das suas obras completas, decidiu construir com essas leituras o primeiro volume das referidas obras, atitude que mostra o carinho que nelas punha.

O livro, Luís de Camões (2010), surgido ainda em vida do autor, deixou apenas de fora dois estudos camoninos, um deles póstumo, “Autobiografia e Sobrenatural em Luís de Camões”, longo diálogo em torno de Camões, onde se revisitam em exercício sinóptico as questões camoninas que mais o interpelaram, apresentando-se tal estudo como uma súmula final, produto da derradeira estação da vida, que não substitui porém os trabalhos anteriores nem exaure a copiosa torrente da sua riqueza.

Sobre o conjunto destas leituras nos iremos deter nesta nota, de modo a destacar o esteio inovador que elas proporcionaram aos estudos camoninos do tempo em que surgiram.

 

1 Formas de Camonismo em Portugal

No momento em que António Telmo abriu o comentário da poesia de Camões distinguiam-se no estudo desta orientações variegadas, que, não mostrando novidade assinalável em relação ao passado recente, ampliavam e desenvolviam as linhas de envolvimento que vinham da primeira metade do século e até de trás.

Em primeiro lugar, um camonismo oficioso, que vivia paredes meias com a consagração oficial de Estado que o Poeta experimentava desde as comemorações do terceiro centenário da sua morte, em 1880, e que muito se desenvolvera depois de 1910, com especial reparo para a criação do Dia de Portugal em 1925, não mais revogada, na data que se aceitava e reconhecia ser a do falecimento do Poeta.

Este camonismo, empolgantemente eloquente mas hermeneuticamente estéril, encontra expressão em algumas declarações de Teófilo ou de Lopes Vieira, cujos textos dedicados ao Épico português foram recolhidos no livro póstumo Camões na Obra de Afonso Lopes Vieira (1974); basta atentar num deles, “Na Entrega de Os Lusíadas ao Presidente do Brasil”, para se sentir a natureza pomposa desta abordagem, mais insinuante do que se esperaria, contaminando outras linhas de ancoragem.

De seguida como linha marcante nas abordagens de Camões na época em que Telmo abriu os seus estudos, constituindo mesmo a orientação mais seguida e praticada, deparamos com aquilo que podemos designar por camonologia, significando esta uma ciência textual, uma textologia de largo aparato técnico, cuja ambição maior é contribuir de forma decisiva para a resolução das questões, e muitas na lírica eram, que o corpus de Camões apresentava.

O mais típico representante desta escola – cujo antecedente se encontra na preocupação filológica com que Carolina de Michaëlis abordou em 1922 e 1924 dois cancioneiros camonianos e se posicionou contra a proliferação de apócrifos, desautorizando assim edições recentes mas consagradas como a do Visconde de Juromenha (1860-9) – é Jorge de Sena, que propôs a revisitação fenomenológica dos textos de Camões, a partir dum conjunto de laboriosas operações numéricas e estatísticas sobre os textos, cuja finalidade era a construção do sentido da determinação tipológica, espécie de matriz fidedigna de todos os textos de Camões.

Exemplo modelar da aplicação do método encontra-se na leitura que Sena fez da canção VII de Camões, Manda-me Amor que cante o que a alma sente, com três versões diferentes, de que resultou um gigantesco estudo numérico, publicado em livro, Uma Canção de Camões (1966). Ao longo de seiscentas páginas Sena vai acumulando números, quadros, estatísticas, cálculos, numa profusão obsessiva de operações, que visam obter o inquérito estrutural ou fenomenológico, a partir do qual se poderá construir o sentido da determinação tipológica.

Já um camonologista insuspeito como Vítor Manuel de Aguiar e Silva apontou com severa catadura os limites dos processos usados por Sena. Diz: A metodologia e a instrumentação estatísticas manejadas por Sena, que permitem uma ostensiva proliferação de esquemas e quadros com números, percentagens, índices de variabilidade e invariabilidade, etc., só poderiam ter conduzido como conduziram, a três categorias de resultados: um simples e improdutivo acervo de constatações numericamente expressas; um reducionismo devastador dos chamados “modelos estruturais” (…); enfim uma manipulação ad libitum das próprias operações estatísticas, e não apenas das conclusões delas extraíveis (…). (“Jorge de Sena, Camonista”, in Colóquio-Letras, nº 67, 1982)

Seria porém injustiça – e não foi essa com certeza a intenção de Aguiar e Silva – remeter a camonologia de Jorge de Sena para a arrecadação das coisas infecundas. Os estudos de Jorge de Sena, pela imensa informação que carreiam em domínios tão variados como a genealogia ou a história do livro, pelo largo conhecimento dos problemas relativos aos textos, pela agilidade expressiva, pela fuga que fazem em momentos estratégicos ao seu próprio método estrutural, posicionando-se em áreas inesperadas e promissoras, são um contributo intorneável aos estudos camoninos.

Não se pode deixar de referir como paradigmático deste efeito o estudo que Jorge de Sena dedicou ao sentido das alusões ao povo judaico em Os Lusíadas, “Novas Observações acerca da sua Epopeia e Pensamento” (in Ocidente, 1972), que tão prometedor e fecundo se mostrou junto de jovens investigadores da época que com ele encetaram novos e denodados trilhos na abordagem de Camões.

Assinalem-se ainda no quarto centenário da edição de Os Lusíadas os prefácios de Sena à monumental reedição fac-similada das valiosas edições comentadas que Manuel de Faria e Sousa fez de Os Lusíadas (Madrid, 1639) e das Rimas Várias (1685-89), dois estudos de primeva importância, talvez os primeiros que modernamente justiça fizeram ao grande comentador do século XVII, que escolheu ser o difusor de Camões em língua espanhola e cujo papel na cultura desta, até na tentativa de substituir Gongora por Camões, projecto desmedido mas muito mais lúcido do que se possa de entrada pensar, sobretudo em termos da primeira metade do século XVII, ainda está na forma devida por apreciar.

A camonologia não viveu todavia apenas dos contributos desorbitados que Jorge de Sena lhe deu. Outros como António José Saraiva, Vítor Manuel de Aguiar Silva, Maria Vitalina Leal de Matos ou Vasco Graça Moura se posicionaram de modo idêntico, e nem sempre com o insucesso de Jorge de Sena, insucesso metodológico entenda-se, decerto porque apostaram menos na sistematização estrutural duma grelha definitiva, capaz de resolver de vez as graves questões do corpo textual camonino, do que na modesta regulação caso a caso de questões textuais singulares.

Trabalhos modelares neste âmbito, mostrando previdência crítica, labor minucioso, conhecimento prospectivo e persistência de avanço, são alguns daqueles que Aguiar e Silva foi dando de forma dispersa e regular à estampa ao longo das décadas de setenta e oitenta do passado século, antes de mais as notas, as avaliações, os materiais que junta relativos ao problema do cânone da lírica de Camões, área onde melhor se desenha e sente o contributo da sua investigação.

Os sucessos desta camonologia textológica, recolhida no livro Camões: Labirintos e Fascínios (1994), são porém muito limitados e apenas relativos a questões heurísticas e ecdóticas, e ainda assim, por via da quantidade e da complexidade dos problemas que se foram acumulando ao longo das várias edições da lírica, sem possibilidades de chegar a termo conclusivo, tudo se resumindo a curtos avanços, quantas vezes não mais do que detectar lapsos, até irrelevantes, dos predecessores.

A camonologia, que anotou ainda pela mão de António José Saraiva pertinentes tópicos de gramática, do léxico à sintaxe de Os Lusíadas, esbarra em questões hermenêuticas relativas ao sentido, frustrando qualquer avanço em termos de significação. Quanta decepção, quanto malogro mesmo, num texto de Aguiar e Silva, também recolhido no livro acima mencionado, “Função e Significado do Episódio da Ilha dos Amores na Estrutura de Os Lusíadas”, que estaria destinado no seio do seu trabalho a visar questões muito mais amplas e significativas do que a mera ecdótica, até porque toma como ponto de arranque um segmento camoniano sem qualquer novelo textológico, caso o autor não temesse entrar por outros trilhos que não o exaustivo estudo das fontes eruditas, mas exteriores, terreno seguro mas quase infecundo em tão denso e enigmático ponto.

Assim, tal como ficou, o erudito trabalho de Aguiar e Silva tudo o que alcança no domínio da simbolia é repetir um muito estafado lugar-comum do camonismo oficial, o ideal cruzadístico que animou e guiou, como autêntica superestrutura ideológica, o Estado e o escol intelectual da Nação (…) no século de Quinhentos (p. 142), associado no caso ao centro nevrálgico de Os Lusíadas, a Ilha de Vénus, reduto resistente do mais alto simbolismo do poema, o que torna o estudo infinitamente mais deceptivo.

Além das famílias aqui notadas, camonistas oficiosos e camonologistas, podemos ainda assinalar um terceiro ramo, interessado menos na obra do Poeta do que na biografia dele, que chamamos de camonografia e que teve no José Hermano Saraiva de Vida Ignorada de Camões (1978) o astro de brilho mais visível.

Este braço do camonismo, reprimido com dureza pela camonologia científica, a ponto dos estudos biográficos de Camões terem entrado em franca retracção desde Carolina Michaëlis, não obstante a rica estirpe de antecedentes, remontando aos primeiros estudiosos, Manoel Correia, Pedro Mariz e Severim de Faria, este braço, dizíamos, não deu qualquer contributo relevante ao conhecimento formal ou semântico dos textos, já que estes apenas lhe interessavam em função do seu propósito, a biografia do Poeta, restringindo-se o proveito que desse braço temos, não despiciendo todavia, às investigações genealógicas de arquivo, área em que colheu elementos avulsos de valor, que nenhum camonista pode hoje ignorar, dando um subsídio indispensável aos estudos gerais camonianos.

 

2 Sentido Interior do Texto

O quadro que aqui traçámos mostra o estado dos estudos camoninos no instante em que António Telmo deu a público o primeiro trabalho sobre Camões. Tal aconteceu no ano de 1977 com o longo escrito “O Esoterismo de Os Lusíadas”, publicado como capítulo autónomo dum dos seus livros mais conhecidos, História Secreta de Portugal.

Que nos propõe o autor neste trabalho sobre o poema, logo seguido por um outro, em 1980, da mesma natureza, “O Segredo de Os Lusíadas”? Falamos duma abordagem por dentro do texto, aduzindo sentidos para o poema não imediatamente perceptíveis à leitura desprevenida, sentidos esses que necessitam de pesquisa e apuramento, a partir da constatação da letra conter estratos de sentido, alguns imediatos, outros velados, soterrados por olvidos relativos ao contexto ou até em última visão por vontade expressa do autor, para isso recorrendo a cifras de disfarce.

Não se pense que esta adução inicial, a que o autor se manterá fiel ao longo de mais de três décadas de trabalho, pertence a António Telmo, até no que a Camões diz respeito. Sampaio Bruno, inspirando-se nos estudos sobre Dante de Eugénio Aroux e de Grabiele Rossetti, que viram intenções veladas em Dante, no caso anti-papais, de resto indiciadas pelo texto, O voi, ch’avete gli intelleti sani/ Mirate la dottrina che s’asconde / sotto il velame delli versi strani, escreveu no final da vida, entre 1914 e 1915, um conjunto de textos dedicados à poesia portuguesa dos séculos XVI e XVII, mais tarde reunidos no livro Os Cavaleiros do Amor ou a Religião da Razão (1960; 1996), cujo fio condutor é a indagação dum sentido interior para o texto, com elucidação de aspectos contextuais e de cifras textuais pouco atendidas, sendo Amor, extenso tópico do tempo e palíndromo de Roma, a mais expressiva.

No caso de Bruno, como nos de Aroux e de Rossetti, a dobra escondida do texto prendia-se antes de mais com a situação da época, quer na Itália de San Donino quer na Ibéria dos Usques, marcada em ambos os espaços pela feroz vigilância inquisitorial, o que condiciona o sentido interior do texto a uma orientação político-religiosa de resistência.

António Telmo, partindo destas inquirições de significado, não se ateve porém a elas. Se por um lado o seu trabalho, numa das suas esferas mais fecundas, dá a súmula “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009), recolhida depois no volume das obras, onde é patente o desenvolvimento da investigação de Bruno, por outro esse labor segue de perto uma escala de sentidos diversificados, posto que encadeados, que assinala uma novidade sobre Bruno, alargando aquilo que antes surgia apenas condicionado a um sentido político, mesmo tendo na base uma condição religiosa.

Esta novidade, manifestando-se por um entendimento em leque das significações da poesia de Camões, livrou a exegese de António Telmo dum dualismo redutor, sentido patente e sentido latente, e permitiu-lhe um vasto enriquecimento de ideias, que teve ponto cimeiro, a partir do qual frutificou em direcções várias, na publicação em 1982 dos dois estudos que constituem o livro Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, hoje reunidos no volume publicado em 2010, e que representam com os estudos anteriores um assinalável progresso da compreensão da épica de Camões.

Um camonismo como o de Telmo, elegendo como esfera de estudo a letra, mas não se contentando com a restituição ecdótica desta, antes indo no encalço duma escala de sentidos, não podia senão estar destinado a prestar um contributo ímpar numa zona essencial mas muito desprotegida do texto camonino, as significações, em que a retórica balofa do camonismo oficial, o literalismo paralisante da camonologia heurística, a obstinação irrelevante da camonografia biografista nada mais podiam oferecer, quando em tal domínio entravam, do que puídos chavões sem substância.

O comentário talmúdico – modelo da exegese do texto escrito no tempo de Camões, e dele se serviu um Manuel de Faria e Sousa no seu comento – supõe quatro níveis de sentido. As quatro direcções da poética podem ser associadas aos quatro sentidos da exegese tradicional, cujo interesse se mantém, como se pode ver em qualquer lição sobre o estudo da literatura: a restituição da letra (sentido literal), a procura duma figuração (sentido alegórico), a fixação dum quadro relacional com o contexto histórico (sentido moral) e por fim a percepção daquilo que podemos designar com propriedade o espírito da letra (sentido anagógico).

Em Telmo se alguma insuficiência há, é no domínio do primeiro nível que está, posto que a sua indagação fonética, muito atenta às trasladações do som, atenue o juízo. Todos os outros se entrançam na sua leitura de forma a desenhar o sentido final ascendente, anagógico, verdadeiro caroço das significações da poesia de Camões, que como grande arquitectura poética, em estreita relação com Virgílio e Dante, muito seria de admirar que dele estivesse ausente.

Assim a Ilha – que em Aguiar e Silva nunca chega a levantar voo do chão raso do literalismo – alcança em Telmo um estatuto novo, quando este a levanta, através da simbolia da esfera, ao estatuto de arquétipo do mundo. Tal transposição de sentido leva o intérprete a reformular toda a significação do poema camoniano, enriquecendo a sua compreensão pela translação da História ao Espírito, quer dizer, do sentido literal ou moral ao anagógico, ao encarar a viagem histórica no plano iniciático, cujo termo é a contemplação pelos nautas do modelo do mundo físico.

Isto que aqui surge de supetão, perdendo por isso boa parte da surpresa, é obtido em Telmo por um inteligente trabalho gradativo de aproximação, um esforço de tipo comparatista, em que se procura tirar o máximo proveito especulativo da comparação em jogo. No caso a escolha recai sobre uma iluminura persa do século XIV, pintada no quadro do Islão mas de influência zoroástrica, substrato cultural da Pérsia, que o Islão não apagou, e que mostra manifesta semelhança com a descrição da Ilha da épica camoniana.

A aproximação entre estas duas realidades, iluminura e escritura verbal, mostra-se feliz, enquadrando a Ilha num espaço de ideias marcado pelo neo-platonismo de sinal gnóstico, o que permite pela primeira vez entender a Ilha como mundo supra-sensível, ínsula divina lhe chama Camões (Canto IX, 21), e justificar sem estreiteza as estâncias dedicadas no episódio ao apóstolo Tomé, protagonista dum dos apócrifos mais ligados às interpretações gnósticas do cristianismo e o único que teve contacto directo, por predicação, e numa altura em que esta não era o monólogo que depois se fez, com as vastas regiões da Pérsia, então em pleno desenvolvimento da reforma zoroástrica. Ao evangelizador das áreas orientais se atribui em tradição milenar o baptismo dos Magos que vieram do Oriente a Belém e que nada mais eram do que sacerdotes avésticos de Zaratustra; o papel que estes têm no apócrifo de Tomé mostra bem o grau de sincretismo cultural que foi obtido pelo apóstolo entre as tradições orientais do dualismo e a nascente novidade do cristianismo.

O passo dedicado a Tomé, quando atenção houve à sua estranheza, foi lido apenas como tópico anti-jesuítico de Camões, que assim teria deixado de lado Francisco Xavier, o pregador ibérico da Índia e companheiro de Inácio de Loyola, como se o poeta estivesse apenas preso ao horizonte da antipatia pessoal, não avisando até para o perigo da matéria em causa (canto X, 120), e que é irrisório associar a qualquer questiúncula com a Companhia. Em aviso tão sério, em consigna tão sibilina e estratégica, outra e mais funda será a causa; para saber a que matéria alude o passo é preciso pelo menos encarar esta como implicante nas mais altas esferas do poema, o que não é nem pode ser o caso de qualquer irritação pessoal de Camões com os jesuítas.

A ideia duma afluência gnóstica na Ilha de Os Lusíadas – daí o letreiro do livro de 1982, porquanto os maniqueus são os neo-platónicos de fácies gnóstica – ajudou então a compreender o passo de Tomé e a visionar, o que não é despiciendo, a textura supra-sensível da Ilha com uma nitidez que até esse momento escapara, velada que sempre andara por observações menores e distractivas, quando não nulas. Demais, a percepção da importância no poema da corrente dualista, tal como ela se manifestou em círculos cristãos do primeiro século, permitiu alargar a intertextualidade cultural do poema, apontando a uma percepção real das ideias religiosas do poema e do poeta.

Dois estudos seguintes de Telmo sobre Camões – “O Messianismo de Camões” (2004) e “A Identidade Religiosa de Luís de Camões” (2009) – exploram este aspecto aberto pela aproximação da Ilha camoniana ao mundo da luz do dualismo persa, quer através do cripto-judaísmo de feição neo-platónica, como é o caso do cabalismo que derivou da escola de Gerona do século XIII, e que Camões como homem culto com certeza conheceu e meditou, quer através do cristianismo de feitio gnosticizante, indiciado nas estâncias sobre Tomé e cujas raízes eram fundas e antigas no noroeste da Península com a heresia priscilianista, e resistentes, com a sobrevivência desses brotos em manifestações posteriores, de Isabel de Aragão aos templários e seus sucessores.

Sobre a elucidação da natureza heterodoxa do cristianismo em Camões é notável, posto que introdutório, o texto da mesma época, “O Simbolismo das Cores Templárias na Poesia de Camões e na Festa dos Tabuleiros em Tomar” (2008), hoje no volume camonino das obras completas, em que se decifra o passo da cilada de Baco em Mombaça e se explora a lírica a partir das cores que estão presentes num dos raros casos em cujo seio sobreviveu a acossada inspiração templária.

 

3 Da Camonologia à Camonofilia

Não se julgue, com aquela freima destruidora de quem nem se dispõe a ouvir, que estamos diante de qualquer delírio risível. Basta atentar nos dois épicos atrás citados, Virgílio e Dante, e no forte parentesco de ambos com o poeta português, para se perceber como um plano anagógico de significação fará sempre ao poema português uma falta decisiva, ou não soubéssemos o que sabemos sobre a catábase da épica virigiliana e do poema dantesco. Sem tal plano, o poema de Camões não passa de letra morta, como se vê nas leituras tristes e cinzentas que durante anos sobre ele arrastámos, com as tão penosas repetições do poeta da Raça, do Império, da Cruzada ou da História.

Depois dos estudos de António Telmo a poesia de Camões surge-nos como uma síntese da herança do Portugal do século XV, aquele que aceitou a convergência sinergética das três religiões do Livro, aquele que iniciou e desenvolveu a exploração do Atlântico, aquele que no seio dessa expansão deu o messianismo de Fernão Lopes e o paracletismo de Nuno Gonçalves, tudo expressões heterodoxas duma cultura atlântica, excêntrica por isso, e muito surpreenderia se assim não fosse, tratando-se como se trata da obra poética capital relativa aos Descobrimentos.

A obra de Camões teve o desmedido mérito – e sem ele muito do seu viço murcharia – de superar um contexto de feroz perseguição religiosa, integrando de forma velada, e outra não seria possível por bisonha que fosse a censura dominicana, as linhas que no passado recente haviam feito a riqueza da Península, mostrando-se assim muito consciente da herança que nela havia e se perdia e intentando com ela, agora por meio do Oriente, uma nova síntese, através da reunião de forças desencontradas mas reconhecíveis, o cabalismo criptojudaico, o cristianismo iniciático e o sufismo islâmico, através do qual se perpetuou, pelo menos no que não coube ao nestorianismo cristão, o dualismo zoroástrico.

Tudo isto, que aos pobres camonologistas contemporâneos faz abrir a boca de incredulidade, foi porém conhecidíssimo dum comentador tão ilustre como Manuel de Faria e Sousa, patriarca da camonologia o titulou Sena e assim o recebe e evolve Telmo, que no tempo em que escreveu não pensou senão em colocar o poema no plano do sagrado – e o mesmo havia feito o primeiro comentador dele, Manoel Correia, que ainda teve diálogo cara a cara com o Poeta, na edição de 1613, dando o poema ao divino e equiparando a sua feitura aos textos arrebatados dos antigos Profetas. Se as leituras camonianas de Telmo outros méritos não tivessem, este de recolocar o poema no plano da leitura anagógica, juntando-lhe ideias, alargando-lhe as fronteiras, diversificando-lhe as fontes e as referências bibliográficas, nenhum lho tirava.

Sem o interesse de António Telmo por Camões, sem a sua camonofilia, a que é justo juntar a de Fiama (1938-2007), autora de O Labirinto Camoniano e Outros Labirintos (1985), podíamos dizer que nada sabíamos d’ Os Lusíadas a não ser o nome dos comentadores e dos editores, o ano e o lugar das edições, as diferenças entre elas, com curiosidade especial para a dos “Piscos”, truncada esta, além de questões triviais de léxico, de sintaxe e de mitologia. Se assim fosse, convenhamos que, tratando-se dum poema de envergadura universal, publicado há mais de 440 anos, escandaloso seria.

Sem o Camões de António Telmo, síntese de tradições, lugar de convergências de culturas religiosas distintas, onde a cultura romana, ou mesmo europeia e cristã, é só parcela, e não a maior, não terá a Ibéria Camões para dar ao mundo, sobretudo ao mundo que dela deriva, pois o Camões expressão do Portugal, da Ibéria e da Europa habsburguinos, nada pode interessar povos que a cultura inquisitorial da Contra-Reforma tão abusivamente tripudiou.

 

 

[texto escrito em Junho de 2011

e revisto em Fevereiro de 2015]

 

 



[1] Nota do editor - O presente ensaio é uma versão revista do artigo “O camonismo de António Telmo”, publicado originalmente em Suroeste, revista de literaturas ibéricas, n.º 2, pp. 129-137, 2012. Integra a marginália do Volume III das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões e o Segredo d'Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, Zéfiro, 2015. 

 

DOS LIVROS. 67

10-06-2020 09:32

Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões

 

Empregámos a palavra maniqueísmo como um sinal da gnose camoneana, não no sentido da corrente espiritual fundada pelo persa Mani. Poderíamos ter escrito «cátaros» ou «priscilianistas», em vez de «maniqueus». Este último termo é mais popular e é, sobretudo, à volta dele que se cristalizam as opiniões.

Desculpe-se o título do livro com a sua sugestão de uma aventura de piratas, mas se soubermos transpor aquilo que é imediatamente nele dado para o plano das significações, – o plano onde as imagens são para além de si –, a sugestão infantil tornar-se-á acutilante, logo capaz de se cruzar dolorosamente com os problemas dos homens.

Não foi nosso intuito expor uma filosofia maniqueia porventura existente em Luís de Camões. Seria fácil desenhar um diagrama gnóstico com a ideia de Deus abscôndito (Canto X, 80), a emanação de uma primeira Inteligência Arquetipal (Canto X, 79) – «pensamento casto e puro, criador de todas as cousas», a esfera das potências celestes (Canto X, de 81 a 89), a esfera do mundo intermediário imaginal (Ilha do Amor), plano do mundo elementar, esse «caos confuso» onde o mal existe realmente. A finalidade dominante foi mostrar o facto irrecusável do paralelismo entre a imaginação de Camões e a de Zoroastro, na ideia de repelir o preconceito corrente da irrealidade do mundo subtil, que em nossa ignorância confundimos com o mundo evasivo da fantasia.

O desembarque dos maniqueus na Ilha de Camões significa também isto. Somente desembarcando na Ilha somos forçados a reconhecê-la como uma realidade. Para tanto, teremos de assumir a qualidade de «maniqueus», porque o sobrenatural, isto é, a face superna da natureza, só está ao alcance de quem assume essa qualidade.

Somente depois se torna possível cumprir o que vem significado nestes versos:

 

«Podeis vos embarcar, que tendes vento

E mar tranquilo, para a Pátria amada».

Assim lhe disse; e logo movimento

Fazem da Ilha alegre e namorada».

 

Versos equívocos, pois tanto podem querer dizer, numa ou noutra de duas possíveis interpretações sintácticas, («da Ilha» é complemento determinativo ou complemento circunstancial de lugar?), que partiram da ilha de regresso a casa ou que a trouxeram consigo. A análise sintáctica d’Os Lusíadas nem sempre é um exercício inútil e torturante.

O último sentido é, na harmonia da nossa interpretação, altamente provável.

Que significa fazer movimento da Ilha?

A tentação é pensar que o poeta sugere pela expressão que a potência divina da imaginação se transforme num movimento de transfiguração da Pátria. Só que Portugal, no tempo de Camões, vinha de iniciar um longo ciclo de quatrocentos anos, de quarenta decénios ou de quatro séculos. Dir-se-á, dentro da imagética própria deste estudo, que as legiões de Ahriman passaram a reger definitivamente os nossos destinos. «Uma austera, apagada e vil tristeza» enublou a alegria auroral da Ilha e quando, passados esses quatrocentos anos de deserto da alma, se começou de novo a ouvir a «angélica soada» dos poetas ou o severo dizer dos filósofos, quando vários movimentos espirituais de inequívoco sinal disseram ter chegado a hora da transfiguração logo movimentos contrários se formaram, aos quais uma longa, astuciosa e ardilosa campanha tinha dado todos os recursos e todas as armas para se imporem na opinião pública e deixarem na sombra a misteriosa jasminácea do pensamento português.

Duas figuras dominaram, durante meio século, o círculo das acções e reacções mentais dos portugueses: António Salazar e António Sérgio. Ambos têm de comum um critério cheio de severidade para com todas as formas de imaginação que se apresentam, nos poetas e nos prosadores, com a finalidade secreta ou patente de dizerem o mistério. A imaginação é, no pensamento de um e de outro, uma diversão da mente humana, que deve ser contida nos seus limites, onde deverá manter-se sem qualquer pretensão gnósica. É à própria imaginação, dada como a forma do irracional, que é atribuída, num a desordem política, no outro a desordem mental que caracterizam a vida portuguesa. Ordem e progresso ou ordem e clareza eis o ideal proposto por estes dois mestres das gerações actuais. António Salazar, numa entrevista, mandou Leonardo Coimbra deixar-se de filosofias e dedicar-se a escrever versos; António Sérgio disse a Teixeira de Pascoaes que continuasse a escrever versos, mas não se metesse com a filosofia. Para que ficasse tudo na mesma, foi sob a égide de António Sérgio que se fez a revolução contra Salazar.

A proposta de claridade ou de clareza, de ordem ou de coerência, no pensamento e nas suas expressões, procede como se a obscuridade e a desordem fossem próprias da imaginação, esquecendo-se quem propõe de que as «imagens» são dispositivos de captação da luz muito mais eficazes do que as «abstracções», afinal de contas imagens também, mas reduzidas a um mínimo de intensidade, meros sinais telegráficos do mundo sensível e das suas relações. Mais ou menos velada, a luz é a fonte originária da imaginação, a qual não se transcende reduzindo-se, mas passando a outro plano, – o da intelecção –, ali onde é em si a claríssima esfera de que nos fala Camões. Só que a visão do inteligível pressupõe que se tenha condensado em si suficiente energia luminosa pela contemplação e activação da imagem primeira entre todas, – aquela que cada um de nós pode formar de si na intimidade mais profunda do seu ser. O morse da abstracção traduz-se numa perda contínua de energia que corre, como um fogo-fátuo, sobre a superfície das coisas.

Nem sempre aqueles que se apresentam como defensores da clareza nas ideias, são como pretendem partidários da luz porque procedem ignorando a noite onde as estrelas brilham. São espíritos irrealistas que não têm em conta as múltiplas condições de produção da luz ou de qualquer outra energia afim. Falam dela como se a conhecessem antes da treva.      

Dissemos que as imagens são dispositivos de captação de energias subtis. Deixadas a si próprias e sem relação com a luz imperitura de onde provêm, isto é, sem relação com o uno em que todas são e que só a filosofia prevê e vislumbra, funcionam como baterias semi-descarregadas, são, na literatura, a poesia sem sentido do mais alto e do que mais importa. Desculpe-nos o leitor a linguagem mecânica, mas com os cartesianos convém ser cartesiano.

A esta separação ou cisão da poesia e da filosofia há que chamar aqui, para nos mantermos fiéis à imagética deste estudo, o fender-se da ilha ou o quebrar da ponte Chinvat. Não significa isso que queiramos propor uma poesia filosófica, mas temos de dizer uma filosofia poética. Um dos poucos exemplos de poesia filosófica é a de Antero de Quental, aliás o poeta mais caro a António Sérgio. Em Antero de Quental, a imagem não é vivência ou símbolo, mas alegoria. O exemplo mais alto de filosofia poética é o de Leonardo Coimbra, aliás o pensador mais odiado por Sérgio e por Salazar. Nele, a ideia é a flor enorme que abre na floresta esplendorosa da imaginação; a ideia é vivência da qual nenhuma imagem pode ser a alegoria.  

A negação do mundo intermediário, da sua realidade, existência e objectividade, pela sua conexão com a fantasia, a mística, a intuição e o irracional, teria como consequência, a tornar-se completamente vitoriosa, a ruína da poesia e da filosofia e a suspensão do movimento essencial da alma que aspira à verdade. Esse mundo, porém, causa pavor e alguns se negam, por fé débil, a tomá-lo a sério.

Confundida a imaginação activa com a dispersiva fantasia, contra a poesia e a filosofia dos «imaginativos» levantam os adversários da gnose a exigência de um pensamento prático, «de pés fincados na terra». A teorização desta experiência atrai e solicita os estratos profundos deste povo da experiência, que atravessou os mares, edificou cidades e civilizações e «compassou» o universo. Há, porém, que não confundir a experiência, forma de conhecimento no perigo, com a preocupação de governar bem a casa, de fincar os pés na terra para nela ficar preso. A experiência do nómada do espírito não é a experiência do sedentário.

Aqui ocorre a relação, sugerida por Camões, do povo português com o tomismo de Tomé, inconfundível com o de Tomás (de Aquino), este importado ou invasor.

Sempre o nosso poeta sobrepõe o saber de experiência ao saber da razão. Tomé, ele no-lo lembra, «a Jesus Cristo teve a mão no lado». E, no Canto IX, escreve sobre o amor gnóstico:

 

«Mais vale experimentá-lo que julgá-lo,

Mas julgue quem não pode experimentá-lo.»

 

Saber válido é, sobretudo, «saber de experiência feito». Mais de uma vez, reaparece, como se sabe, a mesma ideia n’Os Lusíadas.

Aquilo a que devemos atender neste ponto é à dupla relação que se pode estabelecer com o mundo intermediário, indicada naqueles dois famosos versos: relação de conhecimento por contacto ou relação de conhecimento pela razão. No Canto X se diz de Deus abscôndito que é Saber alto, profundo e ilimitado e, algures numa ode, que quem criou todas as coisas foi «um pensamento casto e puro». É a esse Saber e a esse pensamento que está referido o conhecimento operativo. Camões não reduz à Terra e seus limites o campo da experiência. O seu sentido prático tem a loucura do invisível.

Aqui se detêm muitos que, dotados embora de espontâneo amor à verdade e de lúcida inteligência, temem descer à intimidade de si próprios, dos outros e do mundo, às suas infinitas extensões, onde se levanta a realidade da Imagem, cuja beleza poderosa e sacrossanta desperta nas almas desejo, espanto e medo. Preferem, então, descansar na ideia de que, no celeste, tudo está resolvido, restando ao homem ocupar-se do terrestre.

Assim, o desembarque dos maniqueus na Pátria do regresso e donde, talvez, nunca tenham chegado a sair, encontra o mesmo deserto que já era na hora da partida. Os últimos cem anos são disso o sinal inequívoco. Onde estão aqueles que poderiam ter seguido o ensino iniciático de Sampaio Bruno ou o magistério iluminado de Leonardo Coimbra? Quem pôs de lado, do outro lado da filosofia, os poetas que lhe são afins, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa? Porque não seguiram o fundo apelo do movimento de filosofia portuguesa de Álvaro Ribeiro e os avisos do grande pensador gnóstico José Marinho? Porque não ouvem a voz paraclética de Agostinho da Silva? Como deixam que outros tentem deter tão significativos «movimentos» da ilha, pelo ardil de «normalizar» o excepcional ou de «silenciar» a palavra demasiado evidente ou de «caluniar» quando uma coisa e outra já não são possíveis?

Queremos assim dizer que os maniqueus andam dispersos. Todavia, exatamente à volta de Luís de Camões começam a levantar-se vozes, aqui e ali, que lançam evidente perturbação no camonismo de Estado. A mais nítida é a da Fiama Hasse Pais Brandão. Todavia, outros como José Hermano Saraiva, Maria Antonieta Soares de Azevedo, António José Saraiva e António Carlos Carvalho têm contribuído decisivamente para mostrar a nova luz a figura interior e exterior do poeta. A hipótese de criptojudaísmo não é, claramente, a deste estudo. Preferimos determinar a orientação espiritual de Luís de Camões, segundo uma linha que tanto pode congraçá-lo com o cristianismo como com o islamismo ou o judaísmo. A impressão que resulta é a de que, para o autor de Os Lusíadas, as religiões de nada decidem, presas que estão ao plano denso em que actuam. Há uma gnose cristã, uma gnose judaica, uma gnose islâmica e, nas três religiões do livro, esse elemento comum sempre defrontou adversários ferozes; por isso mesmo, a gnose camoneana não pode definir-se por nenhuma delas. É na Pérsia que os estudiosos situam o centro de onde derivam, circulando pelo mundo, as várias correntes de sentido gnóstico, nessa Pérsia à qual sempre o poeta se refere com palavras de exaltação: «Olha da grande Pérsia o império nobre».

Não é o melhor modo de desfazer o conflito de opiniões religiosas já iniciado à volta d’Os Lusíadas vir agora propor uma doutrina comum a todos os portugueses, da qual o poeta excelso seja a expressão?

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)

UNIVERSO TÉLMICO. 68

10-06-2020 09:23

Deixem Luís de Camões em paz,

Ou amem-no de vez!

Eduardo Aroso

                                                        

   «Que eu bem sei que o canto

                                                        Há-de achar menos crédito que espanto»

                                                                       (Canção VII, Luis de Camões)         

 

O poeta que vive no coração de muitos portugueses – uns guardam-no em semiconsciência; menos são os que o escutam dentro de si - parece que foi convocado a regressar ao túmulo nos Jerónimos, para ter que ouvir o já velho camonismo de Estado. Essa obrigação da lembrança anual de quem no resto do ano deixa vaguear o idioma português num caos de ortografias, não sei se sentirá uma dor semelhante à do cidadão que tem que pagar cada vez mais impostos. Mas lá terá que ser, não há outro remédio. Neste 10 de Junho, espera-se que a cerimónia se salve pelo acto de um poeta evocar outro poeta e a certeza do autor de «Os Lusíadas» não se expor a selfies.

A imagem de Luis de Camões mudou (isto é, repartiu-se) de algum modo nestes últimos 40 anos. Houve quem felizmente se distanciasse dos que mantinham (mantêm?) a ideia de uma epopeia que afinal de contas não foi bem assim, havendo até quem tenha escrito que «Os Lusíadas» são uma anti-epopeia (título de um livro) de um antirrevolucionário! Todavia, muitos dos que se distanciaram dessa falange, não deixam de ver ainda na magna obra uns pecadilhos por ela imitar o estilo dos velhos clássicos, arremetidas essas como se fossem uma espécie de “reparo” ao poeta, por ele trazer à sua obra todos esses heróis gregos e outros temas da Antiguidade. Tal finca-pé parece não deixar ver o essencial: o zénite da epopeia atingido na Ilha dos Amores, onde se vislumbra, para quem possa ver (imaginar) o horizonte mais largo de Portugal e da humanidade.

 

Assim, ao contrário do que possa parecer, esta imagem do vate não é, qualitativamente, muito diferente daquela que nos apresentava a política cultural do Estado Novo (e ainda não extinta de vez), ou seja, o poeta servia às mil maravilhas para umas coisas, mas para outras nem pensar. O Canto IX, recheado de cenas dionisíacas de “erotismo e paganismo” era silenciado no meio académico, chegando mesmo a ser omitido nalgumas edições mais populares. Depois de 74, foi abolida a censura, mas o espírito de interpretação literal, escolástico, raramente tem dado lugar a uma hermenêutica simbólica e esotérica do poeta que escreveu: «Transforma-se o amador na coisa amada». Aqueles que, de algum modo, o têm feito, não conhecem os corredores académicos; se conhecem, não servem para citação nos actos solenes.

Fiquemos com o retrato de Camões que parece não ter mudado muito para os portugueses, e que podemos ler em «Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões» de António Telmo (1927-2010), uma hermenêutica de desocultação de «Os Lusíadas», publicada pela primeira vez em 1982.

«A imagem que, ao longo dos séculos, o camonismo de Estado formou e difundiu mostra o autor de «Os Lusíadas» como um plagiador de Petrarca na lírica, de Virgílio na épica, de Platão na filosofia; um homem de inegável talento, mas sem iniciativa criadora, servo em religião do catolicismo, mentiroso pelo uso da mitologia romana, pior cronista do que João de Barros; um sensual hesitante entre a atracção do sexo e a sua sublimação. Quatrocentos anos se aborreceram os portugueses com esta imagem à qual atribuíram um sentido não muito diferente do retrato do Presidente da República em exercício, obrigatoriamente pendurado nas repartições públicas. Por ironia ou sarcasmo pintaram o plagiador – homem de algum talento, servil e beato, mentiroso e sensual – com uma coroa de louros sobre a cabeça severa de guerreiro. Em cima escreveram: Luís de Camões, Príncipe dos Poetas; e puseram por baixo a palavra «Pátria».

 

Vésperas do 10 de Junho de 2020

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