DOS LIVROS. 68

28-06-2020 18:32

Diálogo sobre a Pátria[1]

 

I – Uma Carta de António Telmo

 

NO DIÁLOGO SOBRE A PÁTRIA que ESCOLA FORMAL publicou nos anteriores números[2], participaram quase todos os seus colaboradores. A redacção do que nesse diálogo se disse foi feita de lembrança[3] e aconteceu que alguns dos dialogantes não chegaram a ler, antes da publicação, o escrito das suas palavras. E embora todos reconhecessem a fidelidade e o rigor do escrito, António Telmo observou, no que lhe diz respeito, que ou faltou escrever o mais significativo das suas afirmações ou ele o não terá chegado a dizer durante o diálogo. Por isso nos enviou a seguinte carta:

 

Ao Director da Escola Formal

 

Como acontece quase sempre numa «conversa», a exigência de tudo converter ao mesmo não deixa os intervenientes exprimirem pelas palavras mais transparentes o pensamento que os inspira. Foi o que se deu, pelo menos no que me diz respeito, no diálogo sobre a Pátria relatado no último número da «Escola Formal». O que eu queria dizer e, parece, não chegou a ser dito é que a cifra Reino da Criança tem como valor oculto o Reino dos Iniciados. A determinação deste sentido pode ser figurada em várias direcções ou aspectos:

 

1. A criança aprende a falar e, falando, se torna o homem comum que, depois, se o acaso o quer, governa os outros homens. Os chefes políticos são como todos os outros homens crianças crescidas. Resultam do desenvolvimento, no plano da linguagem, do instinto de imitação dos adultos que, naturalmente, há em todas as crianças. A família, o ensino público ou privado, o convívio social aproveitam-se desse instinto de imitação, natural no ser que cresce, para o moldarem automaticamente, senão intencionalmente, ao estar no mundo próprio de adultos que nunca se interrogaram sobre o ser essencial.

Ser homem e não somente uma criança crescida implica o sentido da palavra profunda que não chegou a ser aprendida, consiste em «desaprender» o falar que se aprendeu, em se tornar Infante. O Reino da Criança será o daquele que, como D. Henrique, possui o «talent de bien faire». Ao mesmo se refere o povo sábio quando afirma que «quem sabe faz, quem não sabe, ensina». 

 

2. No adulto permanecem, mais ou menos soterrados, o medo aos outros homens, a insegurança interior e a consequente agressividade, a fome de carinho, o falso amor próprio, o exibicionismo, o não ser capaz de estar só que gera o instinto das massas. Estes resultados da condição infantil revestem-se e configuram-se numa personalidade ilusoriamente firme que esconde uma malévola, ameaçadora e perigosa debilidade congénita. Numa zona mais profunda do inconsciente, tão profunda que só raramente durante toda a vida se revela ao espírito e, quando se revela, logo é repelida, jazem o medo pânico que resulta do sentido do mistério do Universo, a sensação de que tudo está suspenso do Infinito, a fé e a verdadeira caridade, a suprema energia do pensamento, a capacidade de espanto sem a qual não há filosofia. Mas não nos iludamos. Se estas qualidades estão soterradas, caso ainda sejam, no adulto, são contudo apenas um germe na criança, uma infinitesimal potência e, por isso se enganam de todo em todo aqueles produtores de literatura infantil, já ridicularizados por Fernando Pessoa a propósito do Bartolomeu Marinheiro de Afonso Lopes Vieira, que as confundem com o tipo de sensibilidade rudimentar, informe e nevoenta, das crianças.

A criança não tem o sentido do mistério do Universo nem a «sensação de que somos um nada suspenso do infinito» porque já nasce identificada com o ser natural a partir do qual evolui para a mais degradada identificação com o ser social. De tal modo e tão intensamente esta identificação se realiza que só mediante uma revolução ou cataclismo da alma pode aparecer na criança crescida que é o adulto aquilo a que Leonardo Coimbra chamou a «visão inversa» própria da «iniciática cristã».

 

3. Por aqui se vê que, ao falar do Reino das Crianças, estava muito mais a pensar naquelas que nasceram ou nascerão pela segunda vez do que nesse erro moderno de que a verdade está nos jovens, na sua revolta contra o mundo dos adultos. Quando os jovens casam, logo se adaptam ao mundo dos adultos, à rotina do mundo quotidiano e feminil e tudo fica como d’antes. Em geral, ingressam num partido político, em qualquer forma patriótica ou anti-patriótica de internacionalismo, enganando os impulsos, porventura espontâneos, de liberdade e de direito, fingindo-lhes uma falsa sobrevivência em qualquer espécie institucionalizada de servidão.

«Nascer outra vez» não significará regressar aos anos de infância, ao domínio infantil da fantasia, àquela espécie rudimentar e primitiva de sensibilidade, informe e nevoenta, que é a da criança biológica. «Nascer outra vez» significará «nascer no espírito» porque até lá todos nós somos, se o somos, apenas «esboços de alma», como escreveu Leonardo Coimbra. Ora não é possível nascer no espírito sem receber a influência que desce por aquela linha medial da porta dos Jerónimos, com no alto o Anjo da Face, em baixo o Inferno e entre os dois a Santa Natureza Purificada. Não há purificação da natureza sem expurgação de toda a coorte virgiliana que povoa os infernos do ser.

Este mito de Portugal contém o apelo a uma ética que coincide com aquela que vem numa outra página da «Escola Formal». Mas esta ética é apenas a norma que nos conduzirá até ao portal sul dos Jerónimos. Ali onde começa a suprema vida nova que os nossos maiores souberam ligar ao segredo da vida da própria Pátria. Terão conseguido os nossos menores desligar o que aqueles ligaram?

Com os cumprimentos de…           

 

(…)

 

(Publicado em Capelas Imperfeitas - Dispersos e Inéditos, 2019)




[1] N. do O. – Publicado originalmente em Escola Formal, sexto número, Junho de 1978.  

[2] N. do O. – O primeiro diálogo sobre a Pátria, sob o título “Ainda temos Pátria?”, foi publicado no quarto número da revista, de Outubro/Novembro de 1977; o “Segundo diálogo sobre a Pátria” no quinto número, de Dezembro de 1977/Fevereiro de 1978.  

[3] N. do O. – Por Orlando Vitorino (1922-2003), com Afonso Botelho co-director da revista. O autor viria a incluir os dois diálogos na sexta parte, “Pátria e Constituição”, do seu Manual de Teoria Política Aplicada (pp. 221-254), livro postumamente publicado em 2010 pela Verbo/Babel.