INÉDITOS. 94

21-06-2020 13:21

A linguística de Joseph de Maistre[1] ou de como foi andando para trás que se adiantou em linguística

 

 

Uma constante na interpretação moderna dos fenómenos mítico-religiosos, que tem a sua expressão suprema na filosofia das formas simbólicas de Ernst Cassirer, é o dá-las como ilusões do espírito. É certo que o idealismo alemão os concebe como formas reais da vida do espírito, como um momento necessário da sua fenomenologia, reais mas para serem transcendidas, integradas ou anuladas na forma pura dos conceitos. Não me parece que o espírito tivesse tido a paciência de esperar durante milénios pelas línguas indo-germânicas para encontrar finalmente através delas a possibilidade de se pensar a si próprio.

Característica da filosofia francesa de Joseph de Maistre no campo da reflexão sobre o mistério dos mitos e das línguas é que não se constrói sobre o orgulho luciferino. O demónio de Joseph de Maistre é um demónio restituído ao temor de Deus e ao deslumbramento perante a Criação, embora sem ter perdido a lucidez e a valentia do anjo rebelde. Sempre o que ficou para trás se configura na filosofia alemã, quer se trate do espiritualismo de Hegel ou do materialismo de Marx, como um momento menor da sabedoria desenvolvendo-se no tempo da história. O Espírito ou a Matéria, com as maiúsculas próprias da língua, evoluem por fases sucessivas de afirmação e negação até que o ciclo se feche na quietude omnisciente e omnipotente do Estado. Num e noutro caso o homem é o Adão Kadmon ou Ishwâra, realizado do todo para o uno ou do uno para o todo. Não há mais nada fora dele e tudo quanto há nós o conhecemos. A filosofia é a ciência absoluta.

Para Joseph de Maistre a história é formada por quedas sucessivas. «Estamos cegos, escreve ele, sobre a natureza da ciência, cegos por um sofisma grosseiro que fascinou toda a gente e que é o de julgar o tempo em que os homens viam os efeitos nas suas causas pelo tempo em que se elevam trabalhosamente dos efeitos às causas, em que não se ocupam  senão dos efeitos, em que dizem ser inútil ocupar-se das causas, em que ninguém sabe sequer o que é uma causa». E noutro ponto: «Não só começaram os homens pela ciência, mas por uma ciência diferente da nossa e superior à nossa, porque começava mais alto, o que a tornava muito perigosa». Assim, para o Irmão Kadosh Joseph de Maistre aquilo que o homem sempre pensou é muito sério, de uma seriedade terrível e sagrada e santa que não pode iludir-se pelo artifício mental de qualquer filosofia. Descartes é o filósofo que «nunca teve dúvidas sobre nada».

Se, neste artigo, é a filosofia alemã e não a francesa ou a inglesa que é posta em contraste com o pensamento de Joseph de Maistre, não deve esquecer-se que dela se originou o grande movimento linguístico que hoje domina a humanidade culta. Herder e Humboldt, durante o último século apontados como românticos pela orientação positivista dos comparativistas alemães e franceses, foram completamente reabilitados pelo estruturalismo americano de Sapir, Whorf e Chomsky. Joseph de Maistre nunca aparece referido nos livros dos linguistas do nosso tempo e, no entanto, o segundo serão de S. Petersburgo figura entre o que de mais sério e descobridor se escreveu até hoje sobre a natureza, o significado e a origem das línguas.

A ideia mestra[2] de um «princípio oculto que forma as línguas» é paralela da ideia humboldtiana de «forma linguística interior» que os modernos linguistas fazem corresponder a estrutura. A palavra forma é equívoca. O seu sentido oscila entre o substantivo e o verbo. O próprio Aristóteles empregou forma ([…][3]), umas vezes em sentido substantivo, outras em sentido verbal. No primeiro destes sentidos equivale a figura; no segundo a princípio formativo, gerador da figura própria do ser. É o segundo que equivale à ideia mestra de um princípio oculto que forma as línguas.

O estruturalismo degrada-se na medida em que substantiva o conceito de forma. Se a expressão de Humboldt pode ser interpretada ou como «figura interior de uma língua» ou como «princípio que forma uma língua do interior», ao caracterizar-se o pensamento de um linguista devemos sempre determinar em que sentido ele se desenvolve. Todavia, a adopção da palavra estrutura pela palavra forma é já um indício de que o verbo se subsumiu no substantivo. O étimo de estrutura é o mesmo de construção. Do conceito de língua como organismo para o seu conceito de língua como mecanismo, a linguística percorre o caminho que, de Humboldt através de Descartes leva até Saussure e Noam Chomsky.

Assim a linguística oscila como um pêndulo entre uma imagem fornecida pela biologia e uma imagem fornecida pela matemática. Não excluindo nenhuma delas, a filosofia de Joseph de Maistre subordina-as a um princípio superior.

É significativo que o autor dos Serões de São Petersburgo tenha sublinhado com assentimento estas palavras do anatomista Hunter: «Ligamos a ideia de vida à ideia de organização; de maneira que temos dificuldade em imaginar ou conceber um fluido vivente; todavia, a organização nada tem de comum com a vida. Ela é apenas um instrumento, uma máquina que não produz nada. Até mesmo em mecânica precisa de qualquer coisa que corresponda a um princípio vital, isto é, de uma força. Se reflectimos atentamente sobre a natureza do sangue, temos de admitir a hipótese que o considera vivente…»

Esta dissociação da organização e da vida, impensável na biologia alemã de um Goethe, por exemplo, transportada para o domínio da linguagem do homem, produz o seguinte silogismo: se a língua é organização não reside nesta o seu verdadeiro princípio, mas há que procurá-lo em algo equivalente, no plano do espírito, ao fluido vivente que anima os organismos. Esse equivalente é o pensamento ou a palavra. Joseph de Maistre distingue entre língua e palavra: «As línguas principiaram, porém a palavra nunca e muito menos com o homem. Esta está necessariamente antes daquelas, porque não são possíveis as palavras senão pelo verbo. Todas as línguas particulares nascem, como o animal, por meio de explosão e desenvolvimento, sem que o homem tenha alguma vez passado do estado de aphasia ao uso da palavra. Sempre falou e por isso com muita razão os hebreus lhe chamam alma falante. Quando se forma uma língua nova, nasce no meio de uma sociedade que está na plena posse de um idioma; e a acção ou princípio que preside a esta formação não pode inventar arbitrariamente nenhuma palavra: vale-se das que encontra perto de si ou das que procura mais longe; alimenta-se delas, dissolve-as, digere-as; nunca as adopta sem modificá-las mais ou menos». E noutro ponto, definindo mais precisamente o princípio oculto que forma as línguas, escreve: «Nenhuma língua pôde ser inventada nem por um homem, que não teria podido fazer-se obedecer, nem por muitos, que não teriam conseguido estender-se entre si. O melhor que pode dizer-se da palavra é o que disse daquele que se chama palavra: “Lançou-se antes de todos os tempos do seio do seu princípio; era tão antigo como a eternidade… Quem poderá contar a sua origem?”»

Os estruturalistas que procuram determinar as leis secretas da organização fonética de uma língua, ou da sua organização morfológica e sintática, vão evidentemente muito mais longe do que se esperava de uma linguística durante muito tempo dominada pelo positivismo e pelo evolucionismo. Todavia, à luz da filosofia mestra, atingem apenas, no melhor dos casos, aquilo a que poderíamos chamar o “corpo subtil” da língua. As estruturas profundas de tipo lógico-matemático são ainda um “pensado”, não são o pensamento, não são aquela actividade do espírito que pensa e que vem “έξοθεν”[4] e que por isso merece o nome que lhe dá de Maistre – anjo.

Não é uma estrutura ou um sistema de oposições e associações de conceitos o princípio último das línguas, mas um ser. A ciência, até quando admite esferas superiores de conhecimento, tende sempre a expulsar do círculo da sua reflexão a ideia de que existam seres intelectuais a nós mas, por isso mesmo, se esses seres existem, só atinge verdades incompletas. Tais seres não podem conceber-se como seres particulares, mas como seres universais, voltados para o uno e pelo uno movidos, o que não significa que não sejam diferentes. É isso que permite a Joseph de Maistre, embora admitindo a universalidade do pensamento ou da palavra, dizer que «cada língua tem o seu génio e esse génio é único».

Ao distinguir as línguas umas das outras, procura apreender os processos de formação das palavras no grego, no latim e no francês e os exemplos que dá nem sempre parecem correctos do ponto de vista da etimologia actual. Todavia, o princípio geral dominante nesses processos, na medida em que consistem em reduzir uma frase ou uma expressão a um só vocábulo, em aglutinar dois ou três vocábulos formando um só, em destruir ou dissolver,  devorar, digerir palavras, sílabas ou fonemas, começa a ser aceite por alguns linguistas modernos, como Emílio Benveniste que explica a formação de palavras compostas não pela reunião de duas ou três palavras mas pela síntese de uma frase verbal ou de uma relação predicativa. Benveniste considera tal processo o fenómeno mais singular de formação linguística. Ridicularizado pelos intérpretes do Crátilo que, ao mesmo tempo, repeliam a Notarikon da Kabbalah, talvez num futuro não muito distante venha a etimologia tradicional a ser aceite pela ciência linguística. O ponto de vista foneticista, que prevaleceu antes do estruturalismo, inventou as “leis do menor esforço” e da percepção imperfeita, ambas rebatidas por Sapir, para explicar a redução que se deu no plano fonético na passagem do latim para as línguas dele derivadas, particularmente no francês e no português. A influência da semântica, isto é, da deslocação de significados, como por exemplo de mágica para meiga, também admitida por Sapir é para Joseph de Maistre a principal causa da redução, que oculta num novo significado o significado anterior.

Esta redução não deve, pois, confundir-se com degenerescência, embora, na medida em que vai crescendo a grande árvore das línguas, os últimos ramos tenham já menos vigor que os primeiros. «O talento onomatopaico desaparece, indubitavelmente, à medida que se vai chegando às épocas de ciência e de civilização». Degenerescentes verdadeiramente são para Joseph de Maistre, que distingue ciência de filosofia e civilização de cultura, as línguas dos selvagens que são «ramos separados das árvores». Esta árvore é simultaneamente a árvore genealógica das línguas e a árvore sephirótica descrita e explicada no Sepher Yetsirah, a árvore das ideias inatas e das categorias de relação predicativa, num completo sistema de inferências.

Tão depreciativo juízo sobre as línguas dos selvagens parece contraditado pelos estudos de antropólogos como Franz Boas, Lévy-Strauss, Eduardo Sapir e sobretudo Lee Whorf. Sobretudo Lee Whorf porque a este se deve uma interpretação dessas línguas que as separa, enquanto estruturas mentais de compreensão do mundo, das línguas indo-europeias que interpreta como sistemas construídos à volta dos conceitos de espaço e tempo, das “formas a priori da sensibilidade”, tais como as definiu Kant. Tais línguas não têm os conceitos de espaço e de tempo, mas fornecem esquemas capazes de levar a uma compreensão superior da natureza, que vai até ao domínio dos nómenos considerado inacessível pela filosofia kantiana. Lee Whorf não diz que os povos ameríndios ou africanos têm essa compreensão, mas que dispõem de línguas capazes de serem aproveitadas para a ter.

Postas assim as coisas, a linguística moderna não se afasta do ensino de Joseph de Maistre. As línguas dos selvagens, escreve ele, «são fragmentos evidentes de línguas mais antigas destruídas ou esquecidas. Os gregos tinham conservado algumas tradições obscuras deste conceito; e quem sabe se Homero não testemunhava a mesma verdade, sem talvez o saber, quando nos fala de certas coisas “que os deuses nomeiam de uma maneira e os homens de outra”?» Lee Whorf estudou esses fragmentos.

Não interpreta Joseph de Maistre a degenerescência das línguas por uma lei mecânica, mas alude enigmaticamente a um crime do homem, tanto mais grave, tano mais pesado e terrível quanto maior e mais profundo é o conhecimento que o homem possui dos primeiros princípios. Felizmente, diz ele, não possuímos esse conhecimento. Tudo indica que, para o martinista Joseph de Maistre, companheiro de Saint-Martin e, como ele, seguidor do português Pascoal Martins, o pecado original significado no Génesis foi um acto de magia negra, decorrente do poder que Adão possuía sobre o fluido vivente ou princípio vital com que o sangue pode ser identificado. Mais do que nos Serões de São Petersburgo é na Teoria do Sacrifício que o mistério das origens é reflectido.

Esse crime representa-se desde as origens na história da humanidade e repete-se em formas, cada vez menos terríveis, porque o conhecimento foi diminuindo. As línguas europeias não são ramos separados da “árvore” mas degeneram e desagregam-se pouco a pouco. Ao mesmo tempo, porém, confundem-se e comunicam entre si. A confusão das línguas é o aspecto negativo deste momento babélico e decisivo da história que estamos vivendo; a comunicação das línguas é o seu aspecto positivo. Descemos ao fundo do abismo. “Tudo anuncia que caminhamos para uma grande unidade que devemos saudar de longe».

 

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Joseph de Maistre marca na filosofia francesa, quanto a nós portugueses, o seu momento mais alto. Teria sido possível mostrar como a filosofia portuguesa, que infelizmente ainda não entrou no movimento de comunicação das línguas, o que faltava para que a profecia acima se cumpra, é fiel à mesma verdade que inspirou o discípulo de Pascoal Martins. É o que se pode verificar lendo os livros de Sampaio Bruno, Teixeira Rego, Leonardo Coimbra, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino ou José Marinho. 

 



NOTAS

[1] Nota do editor – António Telmo grafou sempre, neste escrito, “Maîstre” em vez de “Maistre”. Optámos por alterar sistematicamente o texto em conformidade com esta última fórmula, que é a correcta. Admitimos, todavia, que pudesse ter havido da parte do autor um propósito de significação etimológica na opção pela variante “Maîstre”, modo presumível de aludir, nomeadamente, ao conhecimento ou ao grau de mestre (maîtrise, em francês) de Joseph de Maistre. Cf., a este respeito, a nota seguinte, da autoria de António Telmo.  

[2] À falta de um adjectivo em português para Maistre, emprego a palavra mestra. O próprio Joseph de Maistre creio que não repudiaria uma ligação etimológica entre Maistre e maîtrise, até pela sua graduação em Irmão Kadosh na Maçonaria.

[3] Nota do editor – António Telmo não chegou a concretizar a palavra grega que pretendia grafar entre parêntesis. Tratando-se de traduzir o vocábulo português forma, duas hipóteses se colocam: a) μορφή, morphé, que remete para algo individualizado, quase sempre perceptível pelos sentidos, como a aparência, a figura; b) εἶδος, eidos, significando algo que confere à matéria uma essência, uma universalidade. Parece ser este εἶδος que falta, entre parêntesis, no texto de António Telmo. 

[4] Nota do editor – Trata-se do advérbio “éxoten”, vocábulo grego que em português significa “do exterior” ou “de fora”.