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UNIVERSO TÉLMICO. 18

04-05-2015 21:53

Onde a terra se acaba. 02[1]

Agostinho da Silva

 

Depois de acentuar, o que talvez seja conveniente, que o título, tirado de meio verso de Luís de Camões, é o de todos os artigos que O Sesimbrense tiver a paciência de me publicar e não apenas o do primeiro que já saiu; que irá o leitor dando a cada um dos que ainda vierem a designação que melhor resuma para ele o essencial do que foi escrito, ou lhe não dará título algum, o que o autor preferiria, para que vá sendo a conversa cada vez mais livre; talvez não estivesse fora de propósito mais alguma palavra sobre um dos sentidos de se acabar a terra.

Talvez tenha sido o navegar a actividade humana que mais acentuou no homem o sentido de grupo, no qual se não apaga o valor de cada um dos componentes e em que o trabalho final resulta, em qualidade e quantidade, do cuidado e do esforço dos homens da companhia tomados um a um e levados ao melhor de si próprios pela confiança que nele depositou o grupo como um todo e, um a um, os indivíduos que o formavam. Barco rompe mar e do mar tira seu fruto porque cumpre cada qual seu limitado e indispensável dever, atento à tarefa que lhe deram e seguro de que estão os outros desempenhando também as suas, e bem despreocupado, por outra parte, de que lhe atribuem outro mérito senão o de colaborado, em seu próprio proveito e no dos outros, com o que sabia fazer e para fazer lhe deram.

E não foi certamente por acaso que tomaram para si igualmente a palavra nave, que se liga a navegar e a navio, as igrejas medievais, aquelas verdadeiras igrejas ou assembleias de povo crente, em que nenhum arquitecto procurava deixar sua obra assinada, em que toda a construção era anónima excepto para efeitos de salário, em que afinal toda a comunidade pusera seu empenho, pois que a toda a comunidade, pronta, serviria. O afã de marcar méritos pessoais só começou quando, a partir do Renascimento, a economia e tudo o resto com ela, inclusive a Igreja, que vemos agora, felizmente, livre da pecha, se lançou pelos caminhos anticristãos da concorrência individual e da luta sem quartel por mais lucros para mais capitais que mais lucros dessem.

Vejo que neste jornal se ficou triste por no artigo anterior ter escapado à tipografia imprimir o meu nome; suponho que, ao contrário, nos devia o facto ter alegrado a todos como sinal da tal campanha que quer ver acabar o mais depressa possível uma terra, ou um mundo, que tão cruel tem sido para tanta gente, e ver iniciado um mar de novos descobrimentos, onde o grupo importe, não cada um de nós; seria uma boa iniciativa essa, de nos deixar a todos anónimos, embora soubesse o capitão de bordo o nome de cada um, para lhe perguntar, se necessário, por vela mal caçada ou ruim aperto de válvula; das pequenas inovações se passa às grandes; e não se esqueça Sesimbra de que tem de ser inovadora, por sua face ao mar.  

 



[1] Publicado em O Sesimbrense de 18 de Julho de 1971.

 

 

INÉDITOS. 53

04-05-2015 21:21

Em Sete Cartas a um Jovem Filósofo, pela voz de José Kertchy Navarro, escreve Agostinho da Silva: «São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem.» E, em O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, que no próximo sábado será apresentado em Sesimbra, tratando da relação entre Agostinho e Mário Soares, seu explicando nos anos de Palhavã, considera António Cândido Franco, a propósito do futuro Presidente da República: «Um ponto porém lhe agradeceu o meu biografado: não ser um agostinhozinho, a papaguear de alto as lições do mestre.» É a esta luz, estamos em crer, que ganham em ser lidas as breves linhas inéditas que António Telmo, nos últimos anos de vida, dedicou a uma das quatro personalidades que toda a vida ouviu e que lhe deram o pão para a boca

Agostinho da Silva[1]

 

Agostinho da Silva não concorda, estou bem certo, com as extensas homenagens que lhe têm feito depois da sua morte. Não concordará também com a imagem que daí resulta. Gostará de ver quem se lhe oponha, sem insulto ou grosseria, mas por pensar diferente.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 53

03-05-2015 13:52

As Rosas

Teresa David

 

                                                 Ao Majestoso e Querido Mestre António Telmo!

 

As Rosas,

na sua

Polarização

de Divino,

Libertam-Nos

o Perfume

do Natural

do Inquestionável

do Paraíso!

 

Luz de Veludo,

Elas, de Celestial!

 

Escutemo-Las

e,

onde Já

Habita a Nova Aurora,

Acolhamos

O que Nos Une

no Dom

Infinito,

costurando

a Alegria

macia

na Inteireza

das Pétalas da Vida!

 

Ao Entregarmos

As Rosas

Do Amor

Ao Outro

Mediador

no Cortejo,

Clamor,

Repouso de Orvalho,

Ressuscitamos

com

A Frescura

do Sol!

 

E,

Nessa Ascese

de Maravilhamento,

Apaixonada

Dança de Rosas,

(Re)Encontram-se,

Tornam-se Irresistíveis

O Mundo e Deus!

VOZ PASSIVA. 52

03-05-2015 13:28

António Telmo

ou a reconstituição de uma melodia original

Eduardo Aroso

 

88 são as teclas de um piano de concerto!

Mas entre bemóis e sustenidos

Fica tudo o mais o que os dedos não tocam

O que se adivinha a seguir

E os tempos idos

Na inteira sensação

Que quem escuta de modo diverso sabe distinguir.

 

Um aroma move-se entre sons e silêncios.

E são essas impressões

Que não se apagam da memória

Quando se reconstitui o fio cantante

Da vida que ali ou mais além

Tem as suas modulações.

 

- Então volta toda a música como o nascer de sol

Um som que pede outro acima dele,

Um ritmo que se funde noutro mais complexo

Um pensamento que explode de luz íntima…

E tudo continua e se junta não tanto como no Bolero de Ravel,

Mas na praia atlântica onde a dança pertence às ninfas do sonho

E o som das ondas, uma a uma, reconstitui a cadência lusíada;

Uma flauta criou a escala necessária para dar todas as cores à sua melodia

Que se agarra comovida ao plâncton profundo da pátria.

 

15-04-2015

 

 

VOZ PASSIVA. 51

02-05-2015 16:52

António Telmo*

Romana Valente Pinho

[Romana Valente Pinho, primeira da esquerda na fila da frente, com António Telmo, em Alenquer, em 2001. Ao seu lado, Helena Briosa e Mota e Anahi Braia Vitorino]

 

O que mais me fascinava em António Telmo, antes de o conhecer, era o mistério que se evidenciava em todos os seus livros. Li e reli Filosofia e Kabbalah várias vezes movida por esse mistério... Quando o conheci pessoalmente, o mistério, em vez de diminuir, tornou-se ainda maior! Porém, passou a revelar-se mais leve, mais divertido, mais comungante.

Passados 20 anos da minha primeira leitura de Filosofia e Kabbalah e passados 15 do meu primeiro encontro com António Telmo, deparo-me agora com um pequeno trecho de uma entrevista sua que me confirma e relembra precisamente a importância desse mistério para a (des-)formação do nosso conhecimento:

“Pretendi dar pistas de aperfeiçoamento interior, mas, como disse de início, os meus livros sabem mais do que eu. Na verdade, eu não sei nada. Quem quiser saber alguma coisa terá que procurar Tomé Natanael. Tem que o procurar” (António Telmo, A Terra Prometida, 2014, p. 60).

 

____________

* Título da responsabilidade do editor.

INÉDITOS. 52

02-05-2015 11:04

88 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

Homens sem sono[1]

 

O problema que se põe é o de saber se, entre nós, há homens despertos activos, homens-galos, não no sentido puramente estético do termo, mas naquele que Boitaca associou aos descobridores do Caminho pelo galo que anuncia o nascer do sol no alto da coluna e que talvez explique a etimologia do nome de Portugal. O enigma ainda inexplicado do 25 de Abril, é o aparecimento em jornais, televisão e rádio de uma expressão referida aos que fizeram o 25 de Abril: a de “homens sem sono.” Quaisquer que tenham sido as consequências do 25 de Abril, penso que foi um facto positivo, não pelas razões que têm sido dadas, mas porque abanou um povo adormecido, o fez estremecer e se, no campo político e social, tudo está aparentemente na mesma, é possível que os “homens sem sono” se tenham servido de conhecidos autómatos para abrir a janela no quarto onde o país dormia. Continuo a pensar que qualquer coisa mudou na casa de Portugal, qualquer coisa que ignoram políticos, psicólogos, sociólogos, mas que germina – ainda obscura semente de luz – como um suave movimento que pode ser encontrado se estivermos subtilmente atentos.

O que germina é a Pátria, que se lançou no 25 de Abril, cansada de ser Bragança ou de ser Salazar, mas que não quer ser Soares, Cunhal ou Freitas do Amaral. Há ou não homens despertos que saibam que a trombeta sonora, composta de sete sons, do galo primigénio da raça soará na hora exacta da noite excessivamente densa? Por enquanto, se acena a ouvirmos, não queremos acreditar e negamos. Três vezes a negamos. Negámo-la em 1640, quando confundimos D. João IV com D. Sebastião, em 1820 com as ideias francesas, em 1928 com Salazar e em 1974 com Spínola. É preciso acertar com o sinal do Encoberto. Só que o Encoberto por definição não tem sinal.

Por quê o galo?

O galo, de que Portugal é o porto, tem as seguintes características que convém meditar profundamente:

1. Bela plumagem, cauda em espiral e crista vermelha.

2. É polígamo.

3. Ergue-se erecto e altivo sobre as patas.

4. Marca pelo canto os tempos essenciais do curso do sol.

5. O seu canto ascende numa tríplice cadência, despertando as potências adormecidas da alma. É a manifestação sonora de Kundalini.

Claro que os “cientistas” que estudam as sociedades se riem destas disquisições poéticas e irreais. É uma das regras da ocultação. Tudo se passa como se Portugal não tivesse nome. É “este país…”, talvez definitivamente morto com o “Pai Rosacruz” mostrado por Pessoa, aquele que “conhece e cala”. Ver o problema da existência ou morte da Pátria através das imagens de um galo, aproveitando uma vaga associação etimológica, um puro acaso de sons, se não é a ironia que, por contraste, lembra as galinhas que tomaram conta do terreiro, é, quando muito, coisa de literato simbolista. Outra regra, senão a mesma, da ocultação.   

Há, porém, coincidências espantosas para lá daquela já referida dos “homens sem sono”. Há, de novo, o encoberto de Massamá, desta vez de monóculo, que foi vencido e logo se ocultou para dar veracidade ao símbolo. Muita gente se contentaria com um símbolo (os monárquicos, por exemplo, desde que o símbolo os garantisse contra os que não são símbolos). Há os cravos, as chakras! Há a era do Aquário, na boca dos chacais e de Costa Gomes. Há, por cima disto tudo, o País de Gales, a Galiza, a Gália, uma grande comunidade antiga que aqui tinha seu Porto, seu Porto Culto, como dizia Bruno ou Oculto, porque lido em voz alta soa na mesma.

Tudo aparece, neste tempo que vivemos, como uma grande paródia simbólica da verdade da Pátria. Uma grande paródia simbólica onde, apesar de tudo, o mesmo está! Eis um sinal do fim da Pátria. Surge com as ideias que a formam na forma de uma grande curiosidade. Eis o sinal que não se vê.

 

António Telmo

 



[1] Título da responsabilidade do editor.

 

VOZ PASSIVA. 50

02-05-2015 10:51

António Telmo: da arte pela arte à arte ao serviço de uma causa, que caminho?

Risoleta C. Pinto Pedro

[António Telmo na Universidade de Brasília, em 2 de Maio de 1966]

 

António Telmo tem o talento de se inspirar na biografia transfigurando-a pela alquimia do símbolo e aprofundando-a esteticamente pela metáfora.

É curiosíssimo encontrar pelo meio da sua escrita pinceladas de biografia nas cores básicas ou em tons pastel. O efeito acaba por ser o mesmo. Quer uns quer outros sofrem um fenómeno perante os nossos olhos nunca habituados: a transfiguração, a alquimia. O processo simbólico de Telmo dilui-se na ficção, a ficção tem a originalidade do símbolo, ambas se transformam pela metáfora.

Já me aconteceu ler ficção de autores que apreciei na escrita divulgativa, levemente ensaística ou mesmo de autoajuda, ter apreciado estas, e não gostar das tentativas ficcionais. Posso ter apreciado essa outra inicial vertente e quando se metem à ficção senti-la como um desapontamento. O que é normal, a escrita de divulgação, de formação, de reflexão tem características próprias e a ficção literária, dentro dos infinitos estilos compostos por cada um, também. Um autor de ficção pode pretender escrever um texto normal, comum, pragmático e informativo, e tropeçar na metáfora, enrolar-se na musicalidade, afogar-se no fluxo do literário. Também é normal. Com isto, não quero dizer que não possa acontecer a caneta com dupla vocação. Ou oficina. Pode até acontecer, no exercício da modernidade, ambas se confundirem. Acontece, mas nem sempre. Por isso me encanta a escrita de António Telmo, que consegue manter o seu estilo, presente no texto reflexivo ou de reflexão, e na ficção. Que se interpenetram, sem se confundirem. As doses são rigorosamente medidas (no athanor do seu inconsciente?) para criar ora uma coisa ora outra, produzindo resultados diferentes com os mesmos ingredientes. Chama-se a isto autenticidade. Não precisa de se afastar do seu estar,  pensar ou sentir para criar isto ou aquilo. Penetra e fecunda o texto com a sua essência e Deus faz o resto. Porque sente que aquele seu menino está com ele na arte e no serviço. E é esta a minha “tese” (com aspas, porque a expressão é forte, reconheço, e a minha proposta é humilde) que está indelevelmente fixada nas páginas escritas por António Telmo: nem arte pela arte, nem arte ao serviço, mas arte com e como serviço. Arte realmente…. real.

Abril e Maio de 2015

VOZ PASSIVA. 49

01-05-2015 19:43

Protréptico Télmico

Pedro Vistas

 

Dentre os vultosos nomes da luminar escola portuense, António Telmo terá sido quem melhor tipificou a feição renascentista que, duma ou doutra sorte, estes eméritos lusos foram espargindo. A dita escola e, sobretudo, o Grupo da Filosofia Portuguesa (ao qual pretendem pertencer alguns que lá não têm morada real, e pertencerão outros por indesmentível condição, mesmo que sem título de propriedade), foram a maturação e a cons-ciência reflexa do movimento da Renascença Portuguesa. O seu magistério consistiu, pois, em fazer renascer, reviver, ressuscitar, o que foi dado como morto, foi tão vital quanto isto o desígnio deste escol, e, por ser isto o que está em causa, assim se compreendem as letais forças de resistência que, quais prisioneiros, reagem contra a metánoia visada. Custa sair do leito de morte a enfrentar o dia novo e vivo com o qual se há-de coincidir até sê-lo. Como em todos os Renascimentos, este nosso, essencial, fez-se de uma multidisciplinaridade que pretendia concorrer para um ápice transdisciplinar, sintético e certeiro, que rasgasse os Véus de Ísis até uma visada objectiva e real, além de todas as perspectivas. Telmo foi quem mais se destacou nesta pluralidade uni-versal, ressubstantivando a filosofia com a inamissível dimensão teológica, sem esquecer a identidade ontológica dessa ontopoiética, aproveitando as artes para uma pedagogia que superasse o materialismo, o positivismo, o sociologismo, o historicismo, e o didacticismo, e reaproveitando os instrumentos gnosiológicos que estas parasitagens métricas haviam escusado para repor a criatividade (na linha do criacionismo), a realização espiritual, e o compromisso de cumprimento da Verdade vivida, para isso resgatando a astrologia, a numerologia, a kabbalah, ou uma filosofia da história universal e escatológica que entendesse a História como a ciência do porvir. A completude renascentista é de tal ordem que Telmo não afasta sequer aquele que é o mais desatendido e inexperimentado ensinamento da Paideía lusíada, a via heteronímica de Pessoa como método de condução personalística ao fulcro essencial, como no-lo mostra Tomé Natanael. Mas, mais do que polímato, Telmo assim atalhou caminho para o dito ápice transdisciplinar, pois o seu esfíngico rosto, face terceira de Janus, depunha o olhar no deslumbramento do Mistério vivo e impensável, na ratio essendi da vida. Nada mais inútil para a nossa civilização de século XXI, constituída por critérios de avaliação, parametrizações conformes, índices de produtos, e o mais, que melhor se diria “e o menos, se tal for, ainda, possível”. De que serve uma sabedoria encarnada, que demande transformação interior para ser lida, que devolva ao exercício filosófico valências tão esdrúxulas quanto a intermediação entre o Uno e o múltiplo, para que presta um autor que implica, mais do que explica, e que afaste por tolos, com gnosticismos indesvendáveis, os que nos recintos previstos são tidos como eruditos-de-aplauso, evidenciando-os como, afinal, iliteratos?

Telmo não serve a esta civilização. Serve a outra, à futura essencial de Sempre, a sua obra não é proveitosa para os estrangeirados que vivem em Portugal porque foi sobretudo erguida como luzeiro para os lusos entretanto apagados, indiferenciados, extintos na globalização do Vazio funcional. A Renascença é hoje mais do que nunca pertinente porque hoje, mais do que nunca, é inútil. Portugal é uma necrópole imensa a precisar de renascimento se quiser ainda vir a Ser.

Por exemplo da suma inutilidade da obra télmica, veja-se a reflexão da língua como instrumento ontopoiético, neste momento de imbecilidade (dizemo-lo pela etimologia) de tropeço. O filósofo ensaia a correspondência da língua com a kabbalah, identificando o que considera ser a estrutura sagrada do português, isto num momento a-histórico em que se delapida a língua por critérios desbussolados e utilitaristas, e para o qual a palavra sagrado só cabe em estudos de ciências religiosas, e desculpada entre aspas. Já para Telmo, inútil, pouco moderno, a língua encerra não apenas valências ontológicas mas também espirituais, e a sua constituição, que diferencia as línguas (inutilidade que contraria a tenção de uniformização presente que indiferencia pela anulação de identidade), é pars divinae mentis, não acidental. Se a palavra sagrado, faz sorrir de condescendência, noções desta ordem enfurecem o laicismo que é hoje o totémico facho liderante das consciências, o seu incontestável bezerro doirado. Destruindo o senso-comum que se vende como iluminação mental, Telmo avisa que a ortografia é indissociável da valência gnosiológica da língua, o que, a não ser uma cabal inutilidade mentirosa, nos poria hoje, ante a presente normalização, na mais néscia amputação de possibilidades, cerceados por uma norma estupidificante e afilosófica. Mas Telmo sabia que a perversão da língua não é, também ela, acidental. Há dinâmicas perversoras, dissolutivas, que fazem parte da organicidade da vida e que se servem dos decisores tanto quanto mais automáticos estes sejam. Justamente por isto é que o cumprimento vocacional pode salvar o mundo, repondo a naturalidade, a concordância com a Natura.

Telmo é, felizmente, inútil. Tanto quanto a própria filosofia de que foi fiel seguidor, digno representante, mestre comprovado entre pares. Convocam-se, pois, todos os inúteis a entrarem nesse círculo sagrado onde a utilidade não tem lugar por ser completamente preenchido pela Verdade. 

UNIVERSO TÉLMICO. 17

29-04-2015 20:41

CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 02

2

[carimbo do correio – Lisboa, 24.5.1993; ficha bibliográfica]

 

            22.5.93

 

            Caro Amigo

            O que escrevo é de todos – e esteja por e para tal inteiramente à vontade (4). Seu texto perfeito, e muito grato pela transcrição (5). A comunidade certa para Portugal tem agora início da parte do Brasil, que aqui delegou no Embaixador José Aparecido de Oliveira, e que é ainda imaginação dos do culto [do] Espírito [Santo] que passaram às Américas no [século] XVI. Comunidade dos Povos da Língua Portuguesa. Um dia iremos mais em frente e seremos uma Comunidade Mundial dos Povos de Línguas Ibéricas. Pense só na extensão disto. Veja só quanto mundo. Das Baleares a Timor, apesar de qualquer sentença contra Xanana (6). Capital? Cada um a tenha dentro de si – e, no mapa, a adore como lhe for próprio, em todos os aspectos do concreto e do transcendente.

            Afectuosamente do A.

 

____________

Notas de Ruy Ventura:

 

(4) Esta primeira frase diz respeito ao pedido de autorização que lhe dirigira para reproduzir um texto seu numa revista cultural (ou “fanzine”) que estava concebendo, com António de Oliveira Cavaco (hoje professor em Castelo Branco), na Escola Superior de Educação de Portalegre, onde éramos ambos alunos. Chamar-se-ia A Mosca. Motivos que não vêm agora ao caso impediram no entanto a sua saída.

(5) Agostinho da Silva agradece aqui um texto de opinião que publiquei no jornal Correio Beirão, de Moimenta da Beira, por essa data, no qual transcrevia excertos de um ensaio seu (se a memória não me atraiçoa). Fui levado a colaborar nesse periódico beirão pelo poeta Orlando Neves, que então também dirigia a revista cultural Sol XXI, onde editei alguns dos meus primeiros poemas.

(6) Xanana Gusmão estava, na altura, preso numa cadeia indonésia como prisioneiro político. Depois da independência de Timor-Leste foi presidente da república e primeiro-ministro deste jovem país. 

UNIVERSO TÉLMICO. 16

28-04-2015 21:14

Em contagem decrescente para o início das TARDES TÉLMICAS 2015 e para a apresentação em Sesimbra de O Estranhíssimo Colosso - Uma Biografia de Agostinho da Silva, de António Cândido Franco, iniciamos hoje a publicação da série de quatro artigos, sob a rubrica "Onde a terra se acaba", que o autor de A Vida de Lamennais escreveu, no ano de 1971, para O Sesimbrense. Estão reunidos em Textos e Ensaios Filosóficos II, volume editado pela Âncora em 1999. 

Onde a terra se acaba. 01[1]

Agostinho da Silva

 

Tem-se dito, e ninguém ainda o apregoou melhor que Ramalho Ortigão, que é a Holanda o resultado de uma luta contínua entre o mar e a terra, com a saída final de que a terra vencerá o mar e poderão um dia as mais sólidas e fecundas vacas do mundo substituir a até lembrança das velas que outrora correram cantos de império e tanto contribuíram, para além de todas as violências e erros, para que paire na atmosfera uma nostalgia de trópico e seja hoje a Holanda o único país europeu, isto é, de além-Pirenéus, em que o homem de cor não sente nenhuma espécie de distinção racial.

Pois o mesmo, de luta entre mar e terra, se poderia dizer de Portugal, aqui, porém, com o mar sempre vencendo, desde Fuas Roupinho e a plantação de Leiria até uma emigração que só não continua transatlântica porque o Brasil é longe e seu dinheiro incerto, pois que parece mais prezar esse país, «o que ninguém segura», as aventuras de investimentos arriscados do que as certezas orçamentais dos saldos positivos.

Sempre vencendo o mar, e contra ele protestando o Velho do Restelo e as mulheres de luto, a ciência de um Alberto Sampaio e a inteligência límpida de um Sérgio.

Parece, no entanto, que estamos atingindo o tempo de terminar a polémica. Ajudada, como é costume na História, tanto pelo que parece favorável como pelo que de momento se poderia lamentar, a industrialização da agricultura se impõe ao mundo, simultaneamente penetrando nas quase sempre duras cabeças dos políticas a ideia de que seria útil especializar-se cada país na produção mais própria de suas condições naturais. Tudo terá como resultado que cada vez menos gente terá que se ocupar dos campos e que até os hoje 6 por cento da população agrícola nos Estados Unidos nos parecerão de futuro exorbitância inútil.

Portugal se cobrirá de floresta, de pomares e canteiros, jardim à beira-mar plantado como dizia o poeta, mas sem os pobres, pelos quais não deu, pois era ministro e académico, pobres que não escaparam à sensibilidade de um António Nobre, que lhes viu nas chagas as mais vivas flores de seu país quase perdido. A sua força, porém, estará sempre no mar e no anseio de distância e no quem está longe; o horizonte de nossos rumos é o da linha sempre indistinta de céu e águas, não o de picos de montanha ou de monótonos plainos; e mora nosso rei mítico na ilha que nunca se descobre ou que se descoberta logo desapareceria para além de todos os quadros de espaço e tempo em que decorre nossa vida comum.

Navegar, porém, não postula miséria; servir o mundo não deve significar sempre abandonar-se a si próprio; unir os povos, tal é a nossa missão, não implica separar-nos do nosso próprio povo. Ninguém mais deverá embarcar porque é pobre; ninguém mais deverá, porque é ignorante em Portugal, ir ser escravo na França; que nunca ninguém mais se meta à estrada por só na estrada, e longe, ser livre, e ele. É a nossa fórmula de abastança, para lá de capitalismo e de socialismo, que temos de levar aos outros; é a nossa invenção educadora, a de deixar que gente cresça no saber, que nos será carga de novas naus; é a nossa crença no poder e na liberdade do espírito, sopro de Deus, que nos será agora um impulso de vento. Que Sesimbra o medite, pois que, por ela, ao mar se desce e ao mar se abraça.



[1] Publicado em O Sesimbrense de 20 de Junho de 1971.

 

 

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