ONTEM, NA CAPITAL DA ARRÁBIDA: UMA IMENSA CELEBRAÇÃO SESIMBRENSE COM TELMO E AGOSTINHO

04-05-2014 23:09

Com a já hoje histórica Sala Polivalente da Biblioteca Municipal de Sesimbra praticamente lotada (meia centena de pessoas), na presença da família de António Telmo (vindas de Estremoz, Maria Antónia Vitorino e Anahi assistiram à sessão) e de representantes das juntas de freguesia de Santiago e da Quinta do Conde, e sob a égide de Augusto Pólvora, Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, a primeira das TARDES TÉLMICAS de 2014, que são uma parceria do projecto António Telmo. Vida e Obra e da edilidade sesimbrense, constituiu um assinalável êxito e ganhou foros de homenagem a António Reis Marques, que é hoje um símbolo vivo de Sesimbra.

A sessão começou com uma evocação de António Telmo por António Carlos Carvalho, em que o editor da História Secreta de Portugal, além de assinalar a passagem, na véspera, de mais um aniversário do filósofo, invocou, numa comparação bastante significativa, a figura modelar de Ernst Jünger, autor alemão que o nosso patrono tanto admirava, para melhor sugerir a envergadura de Telmo. Em seguida, António Carlos Carvalho deu a conhecer o projecto António Telmo. Vida e Obra e os seus membros, salientando as diversas coordenadas que norteiam a nossa acção, desde o trabalho de estudo e edição da obra e do espólio télmicos nesta página ao apoio científico prestado à publicação das Obras Completas do filósofo e às diversas parcerias de colaboração já estabelecidas com entidades como a edilidade sesimbrense, a revista A IDEIA, o Centro de Estudos Bocageanos ou a Fundação António Quadros.

Depois foi a vez de Miguel Real apresentar o livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, salientando, de uma forma tão surprendente quão original, o modo peculiar, quase romanesco, como o livro se estrutura quadrangularmente em torno dos afectos e da admiração que uniam Agostinho da Silva, António Telmo, Rafael Monteiro e António Reis Marques, as quatro grandes figuras de uma trama narrativa em que Sesimbra e Portugal circularmente se confrontam e identificam a ponto de se confundirem. Numa asserção em que aliás fez a ponte com o outro livro da tarde, o de Ruy Ventura, Miguel Real considerou Sesimbra um dos centros espirituais de Portugal.

Seguiu-se uma breve intervenção de Daniel Pires, presidente do Centro de Estudos Bocageanos, que se congratulou com a edição deste livro na Colecção Clássicos de Setúbal, promovida por esta associação, e prometeu voltar a Sesimbra no próximo dia 28 de Junho, para aqui apresentar a nova edição de A Serra da Arrábida na Poesia Portuguesa, durante a quarta das TARDES TÉLMICAS. 

Em jeito de testemunho, António Reis Marques proferiu uma breve mas tocante alocução em que Agostinho da Silva, saudoso amigo, foi obviamente o foco da sua atenção, e que aqui publicamos no final. Já Pedro Martins, além de salientar o apoio que a Câmara Municipal de Sesimbra tem vindo a prestar ao projecto António Telmo. Vida e Obra, lembrou com gratidão várias pessoas que o ajudaram a concretizar o projecto deste livro. E, surprendido com a penetrante apresentação de Miguel Real, recordou a célebre pergunta de Rafael para Caetano Veloso, em Agosto de 1969, na presença de Telmo, Gilberto Gil e Roberto Pinho: "Que sabem as mães sobre os seus filhos?"

Noutro dos grandes momentos da tarde, Moisés Espírito Santo expôs, com a autoridade que se lhe reconhece, as principais linhas de força de O Eixo e a Árvore: notas sobre a sacralização do território arrábido, de Ruy Ventura, mormente a demonstração da centralidade espiritual de Sesimbra na região, e exortou o seu autor a que prossiga e aprofunde o notável trabalho de investigação que vem realizando. Foi essa, de resto, a garantia dada por Ventura, que sublinhou o facto de o dia de ontem ser a data do aniversário de Frei Agostinho da Cruz, e também aquela em que se completaram 480 anos sobre o aparecimento lendário da imagem do Senhor Jesus das Chagas, e véspera da grandiosa procissão que em sua honra percorreu hoje as ruas de Sesimbra. A observação etnológica deste culto, de uma vitalidade impressionante, foi de resto determinante para a sustentação da tese da axialidade do vale de Sesimbra, sendo irrefutável a suserania centrípeta que as Chagas exercem sobre os demais círios e confrarias da região, da Senhora do Cabo, no Espichel, ao Senhor do Bonfim, de Setúbal. Ventura afirmou sentir-se sesimbrense, e grato para com Sesimbra, apesar de residir em Azeitão -- ou por isso mesmo, por considerar que Azeitão e Arrábida, à margem dos acidentes histórico-administrativos, são incindíveis de um teritório cujo cabeça, no plano espiritual, é a camonina Piscosa.

A sessão foi encerrada pelo Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, Augusto Pólvora, que se congratulou com o trabalho já desenvolvido com o nosso projecto, manifestando-se ainda orgulhoso com a pertença a Sesimbra de vultos como um António Telmo ou um Agostinho da Silva, e enaltecido com o ambiente de exaltação sesimbrense que os estudos de Martins, Reis Marques e Ventura têm vindo a propiciar. Salientando a grande afluência do público à sessão numa tarde de muito calor, Augusto Pólvora, visivelmente satisfeito, augurou ainda o sucesso das TARDES TÉLMICAS. Assim seja!

       

No restaurante O Golfinho, na Rua Direita, em Sesimbra, a meio caminho do café Central de Telmo, Rafael, Reis Marques, Orlando Vitorino e Álvaro Ribeiro, e do antigo café Mussolo, onde tantas vezes Reis Marques e Agostinho conviveram. Na proverbial mesa onde António Telmo se sentava, vêem-se nos primeiros planos Luís Tavares, Manuel Diogo, Daniel Pires, Miguel Real, Pedro Martins, António Carlos Carvalho e Maria Antónia Vitorino. Magnífico o convívio que antecedeu a primeira Tarde Télmica!

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INTERVENÇÃO DE ANTÓNIO REIS MARQUES

 

Foi aqui em Sesimbra que tive o gosto de ouvir Agostinho da Silva pela primeira vez, durante uma sessão cultural realizada na Sociedade Recreio Sesimbrense numa tarde de domingo do verão de 1943.

Esse acto resultava da missão que ele a si próprio se impusera, como membro influente da Seara Nova, de ser agente de divulgação cultural junto das populares colectividades de recreio que, ao tempo, e como ele próprio referia, eram os únicos lugares onde de certo modo se exerciam os então cerceados direitos de reunião e de expressão.

À distância de mais de setenta anos retenho uma imprecisa recordação do que lá foi dito, mas guardei sempre na memória, isso sim, a forte impressão que tocou a minha alma de adolescente, causada pelo verbo fascinante daquele homem extraordinário que, no ano seguinte, se exilaria no Brasil.

Por isso só teria oportunidade de o conhecer pessoalmente passados vinte e seis anos, ou seja pouco depois do seu regresso a Portugal e num encontro, também aqui em Sesimbra, com o nosso comum e ilustre amigo António Telmo, que com ele estivera como professor em terras de Vera Cruz.

Dessa venturosa circunstância resultaria uma estreita convivência de longos anos, em que tive o privilégio de merecer a sua amizade e o benefício do seu saber

Assim, viria a ter ocasião de lhe falar dessa vinda a Sesimbra, de que guardava ténue recordação, dado que fizera o mesmo em muitas outras terras do país. Mas valeu a pena lembrar-lhe o acontecimento, porquanto, depois de saber que conjuntamente com Rafael Monteiro tinha o propósito de elaborar um estudo sobre as agremiações recreativas locais, não só nos incentivou a essa tarefa mas, acima de tudo, nos entusiasmou ao falar-nos do ideário que levou à criação desses prestimosas associações.

O que então ouvimos viria a servir-nos de inspiração para a palestra que proferimos no acto comemorativo do centenário dessa Sociedade Recreio Sesimbrense, infelizmente desaparecida, e efectuada na mesma sala onde ele pela primeira vez falara aos sesimbrenses, o que me deu oportunidade para, em sua memória, recordar o essencial da sua asserção.

A palavra recreio, dizia ele, tem vindo a perder o seu real significado, ou seja a ideia ou conceito que encerra. Recreio tanto pode designar movimento como repouso, acção como inacção, pelo que as actividades lúdicas, os jogos, eram recreio, como recreio eram também a imobilidade da meditação e da contemplação.

Como acontecia nas escolas, recreio é um intervalo, uma paragem em que se interrompiam as aulas para descanso.

A esse repouso se chama recreio, que é a paragem, o intervalo em que se restauram as forças do corpo e da alma, que permitem ao homem criar, dar vida, continuar a vida como ser criador que é.

Por conseguinte, as colectividades de recreio teriam por principal missão proporcionar aos seus associados uma actividade recreativa conducente a despertar e a melhorar as potencialidades criadoras que estão na essência de todos os homens.

O livro Agostinho da Silva em Sesimbra, no qual tive o gosto de colaborar e se deve à iniciativa do meu preclaro amigo Pedro Martins, que o idealizou e concretizou com o mérito que todos lhe reconhecemos, reúne, para além de expressivas notas biográficas, muitos outros registos de memórias do ilustre escritor na sua relação com Sesimbra e com os sesimbrenses.

De todas, quero realçar aquela em que nos diz: “Os três pontos fundamentais de Sesimbra, excluindo o mar, que lhe é matriz, são o Santuário de Nossa Senhora do Cabo, que seria a sede ideal de uma Comunidade Ecuménica de Estudos Teológicos; o Castelo, com o recinto da antiga Vila, que deveria restaurar-se para moradia de trabalho de artistas e pensadores; e a Fortaleza de Santiago, para a qual se ambiciona um Museu do Mar.”

Quanto ao museu idealizara um projecto tão inovador quanto ambicioso, porque de âmbito internacional, ainda que não esquecesse as linhas mestras da história de Sesimbra nas suas principais vertentes da pesca, do comércio marítimo, da construção naval, das navegações, e da singular riqueza da sua fauna e flora marítimas. Estou certo de que, tal como para todos nós, seria para ele motivo de regozijo verificar a sua instalação, como quer que venha a ser concebido, do ambicionado Museu do Mar, cuja abertura se anuncia para breve.

A sugestão para haver no Castelo uma casa de trabalho para artistas e pensadores representava uma forma de continuidade para aquilo que ele bem conheceu na residência de Rafael Monteiro, onde estiveram, ocasionalmente ou na frequência de regulares tertúlias, algumas das figuras mais relevantes da cultura nacional. Aquela casa não passaria de um simples edifício, acolhedor mas inerte, se através do seu memorável morador não a animasse a chama permanente do espírito.

Relativamente à sede de uma comunidade ecuménica, Agostinho afirmava ser o Cabo Espichel local de antiquíssimos cultos, pois os povos antigos conheciam ou intuíam a realidade paranormal de determinados lugares que influíam no ser humano, pelas suas características telúricas ou pela sua específica posição geográfica.

O Cabo seria um desses lugares, um promontório sagrado, que alguns estudiosos sustentavam ser o velho “Promontorium Sacrum” dos geógrafos da Antiguidade.

E lembrava a influência árabe na região, cujos testemunhos mais evidentes seriam as moedas encontradas numa das muitas lapas ali existentes, a própria configuração da Capela da Memória e, acima de tudo, o topónimo Azóia que, designando as velhas aldeias da sua proximidade, significa ter ali existido uma confraria religiosa formada em volta da personalidade, viva ou morta, dum santão ou de um místico, o morábito.

Entre as suas considerações sobre esta tão bela região arrabidense, para a qual foi pedida a classificação de património da humanidade, sublinhava que os seus extremos estavam sacralizados por dois extraordinários lugares de culto que, embora decadentes, a religiosidade popular tem conseguido manter: a nascente o convento franciscano, situado num recanto idílico da serra, com a singela beleza das suas construções; e, a poente, o santuário de Nossa Senhora do Cabo que apontava como “o único monumento pelo povo inspirado, pelo povo construído, pelo povo conservado”.

Porque somos herdeiros de tão sublime legado, saibamos ser dignos dessa graça procurando preservá-lo e valorizá-lo ainda mais.