ANTEONTEM, NA CASA DA CULTURA, EM SETÚBAL, PERANTE UM GRANDE AUDITÓRIO: ARRÁBIDA NUNCA VISTA
Dobrado o meado do século passado, Jaime Cortesão atribui à Arrábida a posição inigualável que a torna, entre as outras serras portuguesas, a de mais variadas perspectivas panorâmicas. Ora foi sob o signo do novo -- de um renovo de perspectivas bem avesso aos clichés folclóricos -- que, sempre sob a condução de Daniel Pires, no passado sábado se falou da Arrábida na Sala José Afonso da Casa da Cultura, em Setúbal, na primeira das duas tardes que compõem o Colóquio "Arrábida, Candidatura a Património da Humanidade" (no próximo sábado serão oradores António Carlos Carvalho, Lina Soares, João Reis Ribeiro e Pedro Martins), iniciativa do Centro de Estudos Bocageanos a que o projecto António Telmo. Vida e Obra se associa. Assim, Pedro Martins apresentou o novo caderno ensaístico de Ruy Ventura, O Eixo e a Árvore: notas sobre a sacralização do território arrábido, um pequeno grande livro que vem revolucionar as imagens e as ideias que possamos formar da áspera e graciosa cordilheira mística, seja, por exemplo, pelo papel axial que o ensaio, numa revelação tão surpreendente quanto atinada, atribui ao vale de Sesimbra (algo que já as intuições de um António Telmo ou de um Agostinho da Silva haviam assinalado), seja pelas aliciantes pistas hermenêuticas que projecta sobre a obra de Sebastião da Gama, cujos três primeiros títulos, Serra-Mãe, Campo Aberto e Cabo da Boa Esperança, reflectem num rigor quase milimétrico os três grandes componentes orográficos que estruturalmente informam a região. Escusado dizer que os 40 exemplares postos à venda se esgotaram, pois na sala, repleta, foram cerca de 60 as pessoas que integraram a assistência, e onde se encontravam representantes da edilidade sadina, da Diocese de Setúbal e da candidatura da Arrábida a Património da Humanidade.
Seguiu-se a primeira mesa deste colóquio. Vanda Anastácio, hoje a maior autoridade em Frei Agostinho da Cruz (cuja edição crítica esta professora universitária vem preparando), a par de algumas importantes e precisas informações biográficas sobre o poeta-monge, ofereceu aos presentes uma leitura da sua obra que nos mostra como a grandeza daqueles versos, na sua beleza e na sua sabedoria, pode permitir, na singeleza despretensiosa da catequese que encerram, a reconciliação do homem contemporâneo com um Deus de que anda distante.
Sempre de improviso, sempre em pé, António Cândido Franco falou entusiasticamente sobre Teixeira de Pascoaes, o Marão e Marános, fazendo a ponte entre o vate da grande montanha do Norte e o meridional confrade da Arrábida, e procurando surpreender as analogias que ligam as obras de Pascoaes e Sebastião da Gama, num exercício dialogal novo e fecundo.
Sobre frisar dados históricos porventura inatendidos, Ruy Ventura trouxe novas sendas hermenêuticas à leitura da poesia de Frei Agostinho da Cruz, e ao diálogo que a irmana com a de Sebastião da Gama, ao passo que Filipa Barata propôs ao auditório propedêuticas pistas de leitura da obra de Daniel Faria, malogrado poeta do sagrado que foi também um eminente estudioso da poesia religiosa daquele que no mundo tomou o nome de Agostinho Pimenta.
Talvez tenha sido como António Cândido Franco, já ao cair da noite, numa roda de amigos, chegou a afirmar: hoje só se falou de Deus! Terá sido este o segredo da novidade que, como uma brisa suave, tantos no sábado puderam sentir?