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INÉDITOS. 51
21-04-2015 21:54Que o final de A Verdade do Amor, de António Telmo, esteve para ser outro, ficáramos já a sabê-lo por um trecho das suas Páginas Autobiográficas, parte integrante do III Volume das Obras Completas do nosso patrono, a sair a lume em Junho com a proverbial chancela da Zéfiro. No espólio télmico conserva-se, inédita, a primitiva versão da última cena, que agora damos a conhecer ao leitor.

Última cena
Ao meio, arde uma fogueira. É noite de São João. Um aluno entra de capa e batina, despe-se e lança-se para as chamas que se levantam, alegres. Seguem-se outros até doze. No lado direito da cena, sentados em grandes cadeiras, vestido de negro, um coro de sacerdotes católicos.
Coro, levantando-se e os braços solta uma exclamação prolongada e soturna de indignação e espanto.
Os estudantes dançam em volta da fogueira. Dançam com ela e saltam-na. Surge uma rapariga lindíssima. É a Natália. Diz:
“Por este rito queimamos o velho hábito secular de andarmos vestidos de preto, como se Cristo, apesar de ter ressuscitado, continuasse eternamente morto. Vede! Eu sou a filosofia, como a ensina Leonardo. Quem me ama pode andar vestido de luto?
“Triste e pesada como uma cruz é a religião de nossos pais.”
Alguns rapazes pegam nela e atiram-na por cima das chamas para que outros a recebam nos braços. Ela vem para a frente dançar com um de cada vez. Começa a soar um harmónio.
Uma voz canta:
1
Como é bom dançar
Ao som do harmónio
Sem pensar
Que o toca o demónio,
Ter Lilith por par
No adro da igreja
E todos a dançar
E ninguém com inveja.
2
Tão contente está Lilith
No seu trajo de campónia
Que se esquece que é demónia
E enteada de Afrodite.
Ao som do harmónio
Todos batem palmas…
Está tão feliz o demónio
Que se esquece das almas.
Cala-se o harmónio e a voz prossegue:
3
Ah! Mas fora da dança
Renasce a inveja.
Calou-se o harmónio
No adro da igreja.
Findou a festança.
Só há o demónio
E a demonia.
E esta balada
Na noite calada
Na noite vazia.
CORO de sacerdotes
Ai!, ai!, ai de nós!
António Telmo
UNIVERSO TÉLMICO. 13
21-04-2015 10:44CARTAS DE AGOSTINHO DA SILVA PARA RUY VENTURA. 01

1
[carimbo do correio – Lisboa, Patriarcal, 30.4.93; folha A4]
27.4.93
Meu prezado Amigo
Sua carta, tão preciosa por seus originais, chegou mesmo e muita alegria me deu, não só pelas páginas sobre Régio (1) como pelo seu próprio e excelente Poema (2). Junto vão as três Folhinhas de agora. Se algum dia vier por Lisboa terei muito gosto em que nos conheçamos e me pode avisar pelo telefone 3424036, de que chegará. De novo, muito obrigado e um abraço a nosso Nicolau Sayão [sic] (3).
Afectuosamente do
A.
____________
Notas de Ruy Ventura:
(1) Referência a um texto sobre o autor de Fado, lido por mim aos microfones da Rádio Portalegre em data que não posso precisar.
(2) Não recordo que poema terei enviado a Agostinho da Silva (talvez esteja no seu espólio, à guarda da Associação que tem como incumbência o estudo e a divulgação da sua vida e da sua obra). Será certamente um daqueles que depois incluí no meu primeiro livro, Arquitectura do Silêncio, galardoado em 1997 como o Prémio Revelação de Poesia, da Associação Portuguesa de Escritores, e editado em 2000 pela Difel.
(3) Nicolau Saião (Monforte, 1946), poeta e pintor relacionado com o movimento surrealista, com quem coordenei o suplemento cultural Fanal, editado no jornal O Distrito de Portalegre, do qual saíram 36 números entre Abril de 2000 e Junho de 2003. Foi ele quem me incitou a escrever, pela primeira vez, a Agostinho, bem como a Matilde Rosa Araújo, de quem fui amigo até à hora da morte.
UNIVERSO TÉLMICO. 12
21-04-2015 10:30Depoimento sobre Agostinho da Silva*

Ruy Ventura
Não tinha ainda vinte anos quando me carteei com Agostinho da Silva. O intercâmbio epistolar não durou mais do que seis meses. Aprendiz de professor que eu era e, sobretudo, noviço na irmandade (por vezes desavinda) dos que escrevem poesia, os seis bilhetes e pequenas cartas que dele recebi – acompanhados por um número apreciável de “folhinhas”, com poemas seus, traduções de poesia estrangeira e cartas-circulares (que mais poderiam chamar-se “sagitárias”, sendo elas setas de saber) – foram, todavia, instrumentos paráclitos (se entendermos este adjectivo como sinónimo de “espicaçador” espiritual, conforme nos ensinou, com rara penetração, o grande poeta inglês Gerald Manley Hopkins). Obrigaram-me a dar crescimento à semente que em mim havia. Quanto devo a Agostinho por isso! Nunca cheguei a privar com ele. Por timidez e por distância física, nunca correspondi ao seu convite. Perdi? Ganhei? Só Deus sabe…
Se hoje me distancio de várias facetas do seu ideário, reconheço ainda assim neste estranhíssimo colosso (como diria o seu grande biógrafo, António Cândido Franco) um dos maiores escritores e pensadores que Portugal houve na sua História. Por isso mesmo, recorrendo a uma parte do seu pensamento, me servi da sua inspiração na concepção, com Nuno Matos Duarte, do projecto da Devir, revista ibero-americana de cultura cujo primeiro número sairá até final do Verão.
Tratando-se de textos além da circunstância aqueles que me escreveu, na sua caligrafia quantas vezes a roçar a ilegibilidade, julgo útil voltar a divulgá-los, depois de terem visto a luz da imprensa pela primeira vez nas actas do colóquio Agostinho da Silva e o Espírito Universal, ocorrido em Sesimbra a 30 de Setembro de 2006. Junto-lhes agora algumas notas, brevíssimas, para que alguns passos sejam melhor entendidos.
Vila Nogueira, cerca de frei Agostinho da Cruz,
21 de Abril de 2015
____________
* Título da responsabildiade do editor.
CORRESPONDÊNCIA. 21
19-04-2015 14:48CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 04

Estremoz, 9 de Dezembro de 1995
Querido Amigo
Pede-me para lhe escrever e eu, que nunca lhe falei do seu belo trabalho in Galicia quando passou por Estremoz depois de tanto tempo passado sobre o seu envio, acordo agora com o carteiro a bater-me à porta trazendo-me a mais bela e inteligente carta que em minha vida recebi, a ao Afonso Botelho, ao filósofo exemplar que sempre me lembra Rabelais e o misterioso oráculo. Ao mesmo tempo, vieram um opúsculo de Francisco Soares (magnífico da filologia para a filosofia) e um livro de Luís Pacheco satirizando admiravelmente a vida literária.
Há muito tempo que não escrevo para gáudio dos pequenos diabos que têm passado pelo meu destino. Vai-me desculpar de lhe vir tomar o tempo falando-lhe do que der e vier sobre o assunto da sua carta. Só escrevendo poderei talvez ficar a saber o que eu penso sobre a saudade, estimulado pelas suas palavras de apreço sobre quanto deixei na Gramática. Faço, porém, minhas as linhas que escreveu no primeiro parágrafo da página 5 da sua Carta. Que felicidade a sua em saber como ali escrever tão bem! É tal e qual como diz o que se passa comigo, só que não o sei dizer assim. Elas, essas linhas, servem-me porém como o serviram a si para que não se pense que pretendo ensinar de cátedra.
Começo por lhe comunicar uma coincidência impressionante que descobri depois de ter sido publicada a Gramática. O mundo da Formação (que os cabalistas assim designam) é o que corresponde na árvore dos fonemas ao triângulo das líquidas:
~
N__________M
L
O R, líquida também, mas vibrante por excelência, corresponde ao plano da Fabricação. Está lembrado, não é assim?
Na terminologia de René Guénon, diferente da da Cabala, o R corresponderia ao mundo grosseiro, o M, o N e o L ao mundo subtil. Os dois mundos que se lhe sobrepõem são, no mesmo Guénon, os mundos informais, dado que só os dois últimos se caracterizam pela forma. A coincidência é a seguinte: na árvore dos fonemas imaginada por mim, o M, o N e o L estão sob o til, a pura ressonância (sub til). Isto, que descobri depois, é um dos sinais de que a árvore está certa com o que ela significa, como me foi um outro sinal, também só depois de ela ter nascido no espelho do meu espírito, o facto das iniciais de Jesus Cristo (em grego, língua dos Evangelhos, o I e o X) terem, por necessitação matemática, o seu lugar em Tiphereth, sephira donde irradiam todas as outras menos a décima, e que é o centro ou coração do Universo.
Pedi ao desenhista que compôs a capa do meu livro que ali pusesse a vermelho as três ressonâncias subtis em caracteres hebraicos. Na língua portuguesa, esta tríade com o R é constituída pelas consoantes que são final de palavra. Éden, som, sal, ir. O S, o Z e o X também aparecem na mesma posição, mas sem formar ditongo. São puros sopros. Têm, por isso, de ser interpretados diferentemente. Não são crepusculares ou outonais. O Câmara Júnior é o único linguista que vi classificar como ressonâncias os fonemas sob o til.
O mundo subtil ou intermediário entre o mundo grosseiro e o munda da inteligência é, como sabe, o reino da imaginação. É ali que a imagem reflecte e recebe a ideia, é dali que a imagem desce a formar o corpo, movimentada pela energia física que o R, a vibrante, representa. A Física, enquanto ciência, não vai além deste plano, a da energia enquanto força física. Os ocultistas, pretendendo estar de acordo com a ciência, não se cansam de proclamar que tudo é energia, que esta é a noção das noções, a pedra filosofal. Só a Arte Poética ou simplesmente a Poética pode perceber e activar essa energia bem mais subtil que um iluminado francês caracterizou como a do Mundo Imaginal.
E que nós devemos caracterizar como a da saudade, ali onde se casam o Céu e a Terra, ali “onde a Terra se acaba e o Mar começa”. Veio-me um dia a ideia de que Portugal é um barzakh, um entre-dois, nem isto nem aquilo, mas onde isto e aquilo transitam de um para outro. País da saudade e da imaginação intermediária entre o corpo e o espírito. A saudade é assim a actividade essencial da alma.
Pede-me o meu Amigo para dar opinião sobre o modo como na sua carta fala de Álvaro Ribeiro, quando, entre outras certeiras asserções, refere que “nas poucas vezes em que ele se dignou tratar do problema da saudade o tenha sempre abordado como um problema da solidão”, explicando depois: “quer dizer como um problema de filosofia existencial, problema a que ele era pouco sensível, não que a filosofia existencial não lhe pudesse interessar mas porque à solidão preferia a convivência, antepondo assim o amor à saudade.” Eu direi, divergindo daqueles que antepõem a saudade ao amor, que ela e ele são o anverso e o reverso da mesma relação, quando essa relação se dá totalmente. Vejo assim: a saudade é o amor em que o feminino está ausente e a sua forma presente, o amor é a saudade em que o feminino está presente e a sua forma ausente; naquela vive-se a ausência do feminino na forma que o torna presente, neste vive-se a ausência da forma no feminino que a torna presente. E esta duplicidade que ata os mundos ou, noutras palavras, que faz que o mesmo mundo seja simultaneamente espírito e carne não sendo nem um nem outra.
É deste modo que me parece possível pôr alguma objecção ao Álvaro Ribeiro, quando antepõe o amor à saudade. E digo só deste modo porque se enganam quantos interpretam o racionalismo do Álvaro Ribeiro como aristotelismo, pegados à falsa ideia de que o aristotelismo se opõe ao platonismo como um pensamento da Terra perante um Pensamento do Céu. Para Álvaro Ribeiro é na contemplação que reside o princípio da filosofia, tal como para José Marinho, mas, enquanto o primeiro haure na contemplação os princípios e as formas, isto é, as ideias que a razão pensa e transforma em acção, o segundo vai nela colher os movimentos que nos dêem asas para sair do mundo. Daqui que um anteponha o amor á saudade e o outro a saudade ao amor, não esquecendo que ambos são uma relação do masculino com o feminino. Aqui também, como para Portugal, temos que pensar um entre-dois.
Eis o que me foi dado tirar da sua carta. É muito? É pouco? Não é nada? Talvez bem mais decisiva do que me foi dado pensar a partir dela é a impressão que recebi ao ler a sua carta, ao sentir nela a expressão de uma das mais belas almas que me foi dado encontrar ao longo da vida. Certas frases dela fizeram nascer em mim uma emoção quase divina, como, por exemplo: “…a palavra cujos sons são luz visível”, “signo sumptuoso, que cauteriza a cisão babélica”, “ a alta e montesina nascente de Pascoaes”, “água boa e pura, de limpidez imperturbável”.
Meu caro confrade no neoplatonismo, que vê palavras e ouve luzes, estou feliz por lhe enviar esta carta na quadra de Natal, por lhe poder enviar os votos das maiores felicidades em modo litúrgico.
Um abraço do seu amigo e admirador
António Telmo
«OS MEUS PREFÁCIOS». 11
18-04-2015 11:31PREFÁCIO A ARTE E TRANSCENDÊNCIA, DE MARIA DE LURDES PELICANO[1]

Ao escrever este prefácio, conhecia Maria de Lurdes Pelicano apenas pela voz, de a ouvir ao telefone, e pelo vozear, de ler os seus transcendentes poemas. Quando não vemos, julgamos não conhecer, tão habitual e dominador é o sentido da vista que até, quando dorminos, se desenha no sonho a paisagem das imagens. O ouvido, porém, se o sabemos utilizar metafisicamente (e é só não nos esquecermos de que também existe em nós), é bem mais atento ao essencial.
Quando lemos, conhecemos pela vista ou pelo ouvido ou simultaneamente pelos dois? É que o corpo da palavra, na sua dupla natureza oral e escrita, emerge uno da treva e do silêncio, é luz que soa e som que ilumina, ela é portadora da única sinestesia que está ao alcance de toda a gente. O espaço revela-se-nos pela vista; o tempo pelo ouvido. Como observou Aristóteles, o nosso desejo de conhecer utiliza a vista para determinar semelhanças e diferenças, o ouvido para aprender. O que é que aprendemos com este Florilégio Poético de Maria de Lurdes Pelicano? Aprendemos a ser atentos à desgraça da humanidade neste fim de ciclo e ao que há em nós capaz de nessa desgraça viver em esperança. Ambas as coisas em perfeita simultaneidade, como a Cruz que se alia à Rosa. O título é tão belo – Arte e Transcendência – que se eu não tivesse ouvido Maria de Lurdes Pelicano pelo telefone seria na mesma atraído para conhecer o livro e não me sentiria logrado, antes exaltado, depois de o percorrer, por sentir na minha alma uma diferença que não havia antes. Perante os seus poemas, tal como me aconteceu lendo Dalila Pereira da Costa ou Natália Correia ou Maria Filomena Molder, e perante esta desgraça de uma humanidade feita pelos homens, não pude deixar de lembrar a profecia de Joseph de Maistre de que “a salvação virá pelas mulheres”, assim no plural sem alegoria ou sofisma.
António Telmo
[1] Maria de Lurdes Pelicano, Arte e Transcendência: florilégio poético, Edições Margem, 1997, pp. 9-10.
VERDES ANOS. 12
17-04-2015 12:40Da cultura portuguesa ao romance francês[1]

A tese defendida por João Gaspar Simões, em artigo saído no Diário Popular com o título “O Pensamento Poético de Teixeira de Pascoais”, segundo a qual a originalidade, isto é, as origens ou as fontes da verdadeira poesia residem no pensamento do sobrenatural, como exemplifica através de Victor Hugo, Rimbaud, Milton, William Blake, Guerra Junqueiro e Fernando Pessoa, é tese tão válida para a poesia como para os restantes géneros literários. Intuiu, além disso, muito bem que a realidade invisível que designa por «pensamento poético» se apreende e conhece por meio da analogia. À luz destes princípios poéticos torna-se fácil explicar a frustração dos escritores da Presença e verificar que, se José Régio constitui uma excepção, o motivo reside em só este poeta ter sido um pensador do sobrenatural.
Entre os géneros literários o romance é aquele que mais depende da antropologia. Parecem, todavia, ignorá-lo todos quantos baseiam o seu juízo de valor acerca do nosso romance na comparação da sociedade portuguesa com as sociedades estrangeiras. Pela antropologia se caracterizam as filosofias dos povos, e, por conseguinte, é lícito supor que só o predomínio da sociologia positivista na crítica literária permitiu negar a possibilidade do romance português.
O realismo, também chamado naturalismo, não é mais do que a subordinação da literatura ao positivismo, embora devesse ser etimologicamente adequação à realidade ou imitação da natureza. Quando J. K. Huysmans, depois de uma fase de obediência ao realismo, escreve À Rebours, livro pelo qual se reatava a autêntica tradição francesa do romance, derivada do ensino do português Pascoal Martins, Emílio Zola manifestou viva discordância. Como Zola, protestou unanimemente a multidão dos críticos. Somente Barbey d’Aurevilly soube antever os efeitos revolucionários do livro. Huysmans e Barbey d’Aurevilly formam com Léon Bloy uma tríade de romancistas odiada, por terem denunciado repetidamente nos seus livros a aliança secreta que o positivismo estabeleceu nos três sectores principais da sociedade francesa: – na política, na religião e na literatura. Assim, cada um destes escritores propôs-se demonstrar quanto é falso o preconceito de que a literatura é expressão da sociedade, pois se o chamado realismo soubesse levar ao limite este seu princípio condutor, sondando a vida social parisiense nas suas zonas mais cobertas, logo a sociologia se dissolveria para mostrar o princípio do mal, isto é, o príncipe das trevas ou o príncipe deste mundo.
Quem compare Marcel Proust com Barbey d’Aurevilly, André Gide com Huysmans, Paul Bourget com Léon Bloy poderá então avaliar a grandeza e a força do malefício que a Presença fez à cultura portuguesa e sobretudo à cultura francesa, ao esconder os seus maiores valores, divulgando outros para os quais facilmente encontramos equivalência na nossa literatura. Não caiu nesse erro Teófilo Braga, quando, num dos volumes das Modernas Ideias na Literatura Portuguesa, chamou a atenção para Balzac. Sem dúvida que encontrou, também, a resistência dum certo sector da mentalidade nacional, representado, então, por Amorim Viana, que algures se refere com desdém ao autor do Louis Lambert. Teófilo Braga, temperamento impestuoso e irascível, impreca violentamente o deísta. Torna-se interessantíssimo entender como é o positivista quem defende o pensador duma filosofia heterodoxa que foi Balzac.
Em nenhum outro romancista como no autor de Serafita podemos surpreender tão bem as origens que transmitem originalidade ao romance francês. Discípulo de Claude de Saint-Martin, conforme mostrou Ernst Curtius, num livro muito divulgado em Portugal, Balzac filia-se, pelas ideias que animam o seu pensamento literário, no martinismo, isto é, naquela corrente filosófica cujo promotor foi o português Pascoal Martins. A influência deste contemporâneo de Pascoal de Melo determina, aliás, todo o romantismo francês, consoante se entrelê nas obras de Victor Hugo, Lamartine, Alexandre Dumas ou Gérard de Nerval. Daqui o interesse de excepção que tem para nós, portugueses, a literatura francesa iniciada na Revolução. A ocultação dos verdadeiros valores da França explica as justas reacções periodicamente movidas contra a cultura desse país por aqueles portugueses que se negam a aceitar a superioridade de escritores que, nem na terra natal deles, é inteiramente reconhecida. Lícito é, então, preferir a literatura inglesa para a qual nos atrai, além disso, a afinidade atlântica.
Uma fonte de equívocos é a promovida pela confusão que se estabelece entre o romance como expressão do sobrenatural e, por conseguinte, de função educativa ou iniciática, e o romance como expressão de uma doutrina moral e, por conseguinte, de intenção didáctica ao serviço de um universalismo qualquer. O romance, como a poesia, como, em geral, toda a literatura didáctica, tem sido justamente combatido pelo simples motivo de que constitui uma transgressão do género. À poesia didáctica dedicou Sampaio Bruno algumas página de crítica e combate no Brasil Mental. Mas quem não estabeleça aquela confusão (e, para isso, é condição não a levar dentro de si), só tem de estar atento para reconhecer e receber o ensino artisticamente ministrado pelos grandes mestres do romance, espíritos para quem o moralismo e o didactismo, sociológico ou outro, constituem eternos obstáculos à evolução ininterrupta da humanidade.
António Telmo
UNIVERSO TÉLMICO. 11
16-04-2015 12:44Escrito no início dos anos setenta para a Revista Municipal, de Sesimbra, de que António Telmo, então Director da Biblioteca Municipal, seria também o director, "Projecto", de Agostinho da Silva, é um autêntico hino à capital da Arrábida e ao seu termo, microcosmo de Portugal a que o filósofo assina um destino messiânico. A revista não se concretizou, mas o escrito agostiniano foi publicado originalmente em 2004 por Pedro Martins na agenda Sesimbra Eventos, e republicado nas actas do grande colóquio sesimbrense do centenário de Agostinho. Irá também ser recolhido na Marginália do III Volume das Obras Completas de António Telmo, Luís de Camões seguido de Páginas Autobiográficas, a sair em Junho, na Zéfiro, com o apoio institucional e científico do nosso projecto.

Projecto
Agostinho da Silva
A quem chega, esfomeado de sol que não seja apenas uma entidade de cálculo astronáutico; de mar que não seja somente o das velhas imagens de cinza e chumbo; de céu que não evoque fatalmente todos os pessimismos prognósticos de uma poluição em que a humanidade se suicide; a quem vem de todos os medíocres países humanos cujo ideal mais alto parece ser o de constituírem um mercado comum que, dados os pontos fundamentais em que assenta não será mais do que um supermercado de excesso de produção e de consumo em que o que vale é o dinheiro de que cada um dispõe e não a fome que tem para satisfazer; aos que atravessam os Pirinéus, não com as incomodidades e os desastres de quem, por não ser rei em terra própria, vai ser na alheia escravo, mas com os confortos que mais rápida do que lentamente lhes estão destruindo a alma, pelo pecado mortal de ter sempre mais do que precisam e menos do que desejam; a esses tais, indo-europeus, brancos e pragmáticos, que dominaram o mundo e cujo afã é o de organizarem o trabalho de tal modo que ele os obrigue a trabalhar mais; àqueles que estão inquietos pela existência de nações em que ainda o indivíduo existe, as atraem a seu supermercado e já tentam a Espanha, e em que apesar dos desesperos se espera que volte o Rei Artur ou O de Alcácer; a esses todos oferece Sesimbra sol, céu e mar; que os ilumine, os proteja, os embale.
Homem, porém, nunca pode ser grande na medida em que recebe; as ascensões se fazem pelas curvas da dádiva, e pouco dão do que vale os que apenas nos deixam suas moedas fortes; porque isso neles não é dar, é desembaraçar-se do que, bem sabem no fundo, os está destruindo; de seus bolsos o tiram, não de si mesmos; e o que deles fica entra muito bem numa estatística dum país que recebe, o que não é a mesma coisa que uma estatística de país que ganha; cada dólar turístico é preço de uma nação que se vende; abaixa os dois termos da troca; e o que fica quando fica, de comércio feito, é apenas o que pode ter havido de realmente divino no puro humano que é seu aspecto exterior; no caminhante que chega alguma lembrança daquele São Francisco que reinventou o ser itinerante, percorreu com alegria a inteira Itália e ainda tentou converter o maometano, descobrindo no fundo de si próprio que o catequista que de Deus vem só tem de operar uma real conversão, a de si próprio àquilo que diz ser; no sedentário que o recebe, o que por dinheiro se não deu, aquele acolhimento que não obedece a políticas económicas e sobrevive neste nosso povo português apesar de tanta tentação de ser fechado, defensivo e duro; mas ignorar o Diabo é talvez o único ponto luminoso que se pode descortinar na ignorância; os outros sabem tanto que nem ao Diabo desconhecem; mas pescador, lojista, empregado de Sesimbra tanto não sabe do que não vale e tanto é o que importa que as artes demoníacas, no pior, se lhe escapam.
Creio, no entanto, que estamos ou entramos num tempo em que se tem de ir para além do franciscanismo; ou, se franciscanos temos de continuar, atentemos em dois pontos essenciais: seja o primeiro de que só vale ser franciscano quando o franciscanismo é voluntário, não se esquecendo que o pregador inicial e seus primeiros amigos ricos eram, fartos de sua riqueza, e que nenhuma santidade vem de se ter falta, mas decorre toda ela de um sentido excesso; seja o segundo o de que São Francisco, além do Santo que a Igreja a si tomou e com que Portugal tentou santificar o mundo a seus discípulos levando nos primeiros navios, era poeta, tanto nas imaginações de sua vida quanto nos versos que cantou, e que, inventando o presépio, pôs a claro que valor máximo para ele era o da criança, que toda nasce poeta e que o mundo a quase toda a gente mata como poeta, pronto, porém, a celebrar, mas já bem morto, seguramente enterrado, inofensivamente desfeito em cinza, o que, afrontando-o, a ele mundo, sua infância salvou, para escarmento e exemplo de adultos. A que tempo dizíamos então que estamos pelos menos entrando? Pois a um em que o mais importante de toda a santidade seja a poesia que nela há. Deus se mostrou na história do mundo já poderoso e já piedoso; já organizou cidades e já consolou os que choravam de haver cidades; já constituiu o direito romano e esteve nas prisões construídas pelo direito romano; já foi Jeová e já foi Jesus; creio que está agora de novo examinando sua obra, achando bom o que fez, apesar de todas as linhas tortas que os homens, instrumento e fim de Deus, em seus textos descobrem, e parecendo-lhe que se ruma a outro capítulo: que só agora verdadeiramente as trevas se vão separar da luz; que só agora ao homem se vai comunicar o pleno dom da criação; que todos vão poder ser poetas, acrescentando beleza à beleza do mundo. E que nisso Portugal, redivivo, resgatado para sempre Alcácer, reencontrado Dom Sebastião não num Messias salvador, mas no homem que todos morremos na batalha, tem papel de guia, de condutor do mundo, de moço de cego de todas essas nações que nada vêem; utópico sonho? Oxalá o seja, pois, como já se disse, “amanhã é dos loucos de hoje”; melhor, além de tudo, que só o manter fazendo prudentemente suas continhas de fim de mês ou só o ver, para o futuro, como nova encarnação da Dinamarca, de que já há uma; pelo menos uma, tão descuidado vai o mundo de ser monótono e sem esperança.
Portugal, porém, é grande demais, e se pensamos em Portugal, e no que tem a fazer, acabamos por lhe entregar como tarefa aquilo de que nós outros nos deveríamos encarregar. Vai, pois, o meu discurso, não àquele Portugal, e só esse vale a pena considerar, que inclui Corumbá na fronteira da Bolívia e Macau na fronteira da China, Lourenço Marques na fronteira da segregação e Chaves naquela fronteira que traçaram políticos esquecendo-se do preceito de que não separem os homens o que Deus juntou, mas ao Portugal que se concentra em Sesimbra, que em Sesimbra tem seu perfeito resumo com litoral de alcantil e praia, com seu castelo e seu porto, suas encostas e seus plainos, seus ocres e seus verdes, seu arreigamento no concreto e sua pronta partida para as nuvens, e que, dentro de Sesimbra, é ainda rijo núcleo em meus amigos de pesca ou pensamento, de mar ou alto, esses tais grandes em que o entusiasmo significa estar calmo e o cepticismo quer dizer, etimologicamente, não se cansar da busca. Para lhes dizer que estrangeiro que chega não tem apenas de deixar dinheiro para o orçamento da nação, mas de contribuir com o que sabe – e muito se sabe para além-Pirinéus, muito se ignora dos Pirinéus para cá – para que possamos viver um dia numa nação sem orçamento; para lhes dizer que em Sesimbra devem surgir os primeiros núcleos em que o poder de criação que está oculto em Portugal desde o século XV desperte, ganhe forças e ajude a tirar Europa e América dos becos em que se meteram, os de se julgarem superiores, e ajude a tirar pretos, amarelos e vermelhos dos outros becos, os de se julgarem inferiores, em que a ciência volte a ser humana e de todos, como nas caravelas o foi; para lhes dizer que tem Sesimbra de pensar em que nunca mais portugueses deixem sua terra, a não ser por franciscanamente o quererem, e que, fazendo-o, não apareçam em Paris ou Los Angeles como os escravos que deles fazem os homens, mas com a fidalguia que Deus lhes deu ao nascerem. Que Sesimbra e os Amigos acordem e aprendam com quem vem e tem obrigação de ensinar o muito que ainda têm, temos de aprender; que despertem e insuflem na sensatez do mundo a loucura que lhe falta e exorcismem de vez as múmias da prudência, da sabedoria linfática e do deixa estar como está para ver como fica; e que, ressuscitados eles próprios, passem a fazer de todo o emigrante um missionário, o missionário daquela missão de tornar fraterno o mundo que Portugal não cumpriu outrora, peado como se encontrou por uma Igreja que só o Vaticano II passou a ver como história; por um sistema económico que só o socialismo liberal poderá mitigar e só a automação lançará também aos armazéns do passado; por um sistema político, o dos Césares de Roma, que só verdadeiramente poderá desaparecer do mundo quando renunciar cada homem a ser ele próprio, em sonho ou realidade, dentro de sua casa ou de sua nação, para seu empregado ou para seu cão, César pior que o de Roma.
UNIVERSO TÉLMICO. 10
15-04-2015 11:53Testemunhos sobre Agostinho da Silva no centenário do seu nascimento*
António Reis Marques

Quis a Câmara Municipal de Sesimbra associar-se às comemorações do centenário do nascimento de Agostinho da Silva.
Em boa hora o fez, porquanto, ele foi um grande amigo desta terra, onde teve casa e gostava de permanecer e contactar com a sua gente.
Talvez por ser um dos poucos sobreviventes dos amigos que teve em Sesimbra, merecesse a honra do convite para vir dar-vos o testemunho da convivência que com ele tive o privilégio de manter, durante muitos anos.
Todavia, será mais em homenagem à sua memória, que tanto venero, que aqui me encontro, pois as minhas pobres palavras pouco ou nada poderão acrescentar ao lustre do muito que, no decurso deste ano, se tem dito e escrito sobre essa singular figura que marcou o século XX português.
Na tentativa, talvez vã, de superar limitações, decidi trazer-vos algumas breves recordações de aspectos da sua vida, comigo partilhadas, principalmente os relacionados com Sesimbra, para depois salientar particularidades do seu pensamento e, por fim, do seu ideal de liberdade.
Durante a sua permanência no Brasil, Agostinho da Silva criou, ou ajudou a criar, estabelecimentos de ensino universitário em algumas da suas cidades.
Quando falava disso, recordava sempre as dificuldades que enfrentava com as respectivas autoridades, as quais alegavam a inexistência de edifícios com a dimensão necessária para a respectiva instalação e funcionamento.
Nada de mais errado, contestava ele. Ao princípio, e tal como acontecia na velha Grécia, basta apenas que haja um mestre disponível e alguns alunos interessados, pois o resto virá depois.
Num país como este, de bom clima, poderá ser ao ar livre, sob uma árvore frondosa, à beira de um rio ou no recanto de um parque, que poderão sentar-se os discípulos a volta do mestre, para escutarem os seus ensinamentos e, sobre eles, reflectirem e fazerem perguntas.
E foi de facto assim, em regime ambulatório, sem burocracias ou preocupações administrativas, que ele iniciou o funcionamento de pequenos pólos de ensino, que mais tarde se tornariam em verdadeiras universidades.
Aponto esta interessante faceta da sua vida para revelar a intenção que teve de criar, na nossa terra, uma universidade aberta ou um centro de estudos sesimbrenses que, a título experimental, começaria por ser um curso de verão, cuja temática seria a vida de Sesimbra, nas suas principais vertentes, para o que havia até esboçado o respectivo programa. Recorrendo à memória e a excertos de cartas que me escreveu a esse propósito, pareceu-me de interesse referir aqui a súmula dos temas a leccionar, que depois seriam compilados e desenvolvidos para a publicação, que também preconizava, de uma espécie de compêndio de cultura geral sesimbrense.
Obviamente que, de acordo com a sua maneira de ser e agir, seria tudo muito prático, e as conversas, como ele gostava de dizer em vez de lições, seriam todas ao ar livre e em lugares emblemáticos da vida do concelho.
Permito-me abrir um parêntesis para recordar, que foi passeando nas alamedas do Campo Grande, em Lisboa, que ele deu as primeiras explicações ao Dr. Mário Soares, como este já teve oportunidade de referir, com a admiração que tinha pelo Professor.
A primeira conversa seria na Fortaleza de Santiago. É importante, dizia ele, começar ali em frente ao mar que é a matriz de Sesimbra, onde já se pescava ainda antes de Portugal existir.
Poderemos então falar da importância da nossa estreita plataforma ou planalto continental que, por ser estreita, traz por consequência que num espaço limitado, junto à costa, viva um maior número de espécies e de indivíduos de cada espécie.
Isso explica, a bem conhecida variedade e riqueza piscícola sesimbrense. É também por isso que a pesca se pode fazer em embarcações de pequeno porte, como está patente no elevado índice artesanal que caracteriza a faina marítima local.
Associada a esta actividade andou sempre outra com ela relacionada: a produção de sal.
Haverá então lugar para recordarmos a época da chamada “guerra do sal”, esse difícil período da história de Sesimbra, entre os séculos XV e XVI, por Setúbal ter embargado o fornecimento de sal para a conservação do pescado em salmoura, então tão necessário para o consumo público como para a exportação.
E só a pesca, fulcro da economia, com o tipicismo da vida dos seus pescadores, a variedade dos seus barcos e artes de pesca, e todas as actividades correlativas, como a construção naval e a cordoaria, passando pelo pitoresco do que foi a antiga lota, o desembarque e transporte do peixe, constitui motivação mais que suficiente não só para merecer várias conversas mas também para a criação, que idealizara, de uma instituição que expressamente se dedicasse ao seu estudo, investigação e divulgação.
A segunda conversa seria no Castelo, onde o amigo Rafael Monteiro, com o poder da sua vasta cultura, dissertaria sobre a história da sua terra, desde a origem até aos nossos dias.
Julgamos que teria até oportunidade de esclarecer e desenvolver a sua tese, de não ser aquele o primitivo castelo, mas outro mais a nascente, no lugar da “Meia Velha” ou “Ameia Velha”, perto do chamado Vale da Vitória onde, segundo a tradição, D. Afonso Henriques venceu as tropas do rei mouro de Badajoz.
A seguir iríamos à Lagoa de Albufeira, onde seria abordada a importância ecológica daquela zona húmida que terá sido, no início do quaternário, o lugar onde o Tejo se lançava no oceano para, no séc. XV, segundo os antigos mapas, ou portulanos, mostrar-se como uma reentrância da costa, aberta ao mar e, mais tarde, tornar-se então lagoa, como a conhecemos, por efeito da erosão que formou o cordão de dunas, separando-a do mar.
Por último, demandaríamos o Cabo Espichel, a finisterra d’Arrábida, rico no seu património geológico e histórico-religioso, onde vários factores se conjugaram para, desde a antiguidade, ser lugar privilegiado no campo do sobrenatural.
A força mística do lugar, transmitida pela grandiosidade da paisagem, feita de rochedos, ventos agrestes e os abismos marítimos que fazem sentir a pequenez da nossa dimensão será uma proposição aliciante para a visita ao Cabo e ao seu santuário.
O programa era mais vasto e diversificado, pois propunha como que a descoberta de Sesimbra para os sesimbrenses, criando-lhes uma forte identidade e um maior espírito de apego à vida do concelho.
Por vários motivos adversos, mas principalmente pela doença que o abateu, esta ideia não se realizou. Dela releva porém, aliado ao excelente nível de conhecimentos, o seu amor a Sesimbra, que dizia, e deixou escrito, ser uma das terras de que mais gostava, tanto na sua dimensão física como na humana.

Agostinho da Silva considerava-se cristão, e deixou escrito que aquilo a que chamava civilização cristã não existia e, por isso, era preciso construí-la.
Vivia pobre e, para ele, isso implicava não ter coisas, e gracejava dizendo, não ter sequer gente, pois tentar ser gente já dava muito que fazer.
Não se dar a si próprio, mas estar sempre ao serviço dos outros, em inteira disponibilidade, era também o que dizia e praticava.
Não aceitava que o chamassem de filósofo, pois na verdade era mais por S. Francisco de Assis do que por Aristóteles.
O franciscanismo era o seu modelo. Lembro-me de lhe ter ouvido, que na “Declaração Universal dos Direitos do Homem” se esqueceram de acrescentar o direito à pobreza.
Esclarecia porém, não se tratar da pobreza involuntária, resultante de fatalismo ou das desigualdades sociais, mas da que era assumida pelo despojamento dos bens materiais, pela sobriedade do viver, do vestir e do comer.
E essa sua maneira de ser e de estar na vida implicava ainda um dever: o de que a comunidade em que estamos inseridos receba sempre algo de nós próprios, estando cada um mais ao seu serviço do que esperando que ela o sirva.
E acrescentava a necessidade de uma cultura de deveres cívicos, de uma cidadania responsável – que infelizmente é muito frágil entre nós – e também de um espírito de tolerância no sentido de que “possa cada um ser o que realmente é, respeitando e entendendo o que os outros são, sobretudo aqueles que estejam em minoria de opinião”.
Sublinhava também que a pobreza, de que fizera modo de vida, já S. Francisco, que lhe chamara santa, tinha proclamado as suas virtudes, uma das quais é a liberdade.
E escandalizava aqueles que não o compreendiam, quando fazia a apologia do ócio e da necessidade de libertar o homem da servidão do trabalho, dado que a questão do trabalho não está em produzir bens essenciais, alimentos, vestuário e abrigo, pois na realidade o que todos procuram é produzir dinheiro, com o objectivo de o multiplicar e alcançar sempre mais e mais dinheiro.
O homem de hoje não usufrui da liberdade que apregoa, ou que lhe apregoam, porquanto está cada vez mais enleado na teia de várias servidões, submetido a novas formas de escravidão.
Produzem-se hoje cada vez mais bens, não essenciais à vida, mas apenas necessários ao sistema de mercado, lembrando a propósito o que ouvira ao seu amigo, António José Saraiva: “só escapando à sociedade mercantil pode o homem possuir-se verdadeiramente a si próprio e contribuir para inverter o ciclo infernal da mercantilização da vida”.
Por isso, pretendia que, em vez de se perder tanto tempo a definir e discutir capitalismo e socialismo, melhor seria que todos se empenhassem em abolir um sistema de produção que se alicerça no trabalho involuntário, ou forçado, da maior parte dos homens.
Com asserções como estas, que hoje se diriam politicamente incorrectas, não admira que houvesse quem o apelidasse de utópico, visionário ou sonhador.
Que seria porém da vida, onde parece que os valores estão a desaparecer, se não houvesse sonhadores como Agostinho da Silva?
Cabe aqui a lembrança do poeta quando falava “dos que não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida”.
Um dia fiquei surpreendido ao vê-lo desembarcar ali no terminal das carreiras, vindo de Lisboa, e manifestei-lhe a minha surpresa porquanto, e segundo tinha sido amplamente noticiado, era suposto encontrar-se àquela hora num acto oficial, onde seria condecorado com a “Ordem da Liberdade”, conjuntamente com outras individualidades.
Disse-me então, com aquela bonomia que lhe era peculiar: “Fui sempre, tanto quanto se pode ser, um homem livre! Assim, aqui estou eu em Sesimbra a usufruir da minha liberdade, pois só renunciei à condecoração com o seu nome.
De vários quadrantes há quem tenha pretendido usar-me como bandeira da revolução de Abril, cujos rumos se estão desviando dos propósitos proclamados.
É quase sempre assim, com as revoluções, e já o mesmo tinha acontecido a quando da implantação da República e todos sabemos das consequências.
A liberdade é um bem essencial que, tal como a saúde, só a avaliamos bem quando a perdemos.
A prática da famosa trilogia da revolução francesa, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, mais citada do que vivida, nunca foi dada aos homens senão parcelar e esporadicamente, e esses valores só fazem sentido na sua globalidade.
Vejamos o exemplo ainda recente das duas superpotências mundiais: os Estados Unidos d’América e a União Soviética.
Na América, há liberdade mas não há igualdade.
Na União Soviética havia igualdade mas não havia liberdade.
Tanto num caso, como no outro, foi esquecida a fraternidade, o espírito fraternal, próprio de irmãos, que poderia realmente estabelecer a harmonia entre os homens. E tudo porque, uma coisa tem falhado sempre: que o homem mude!
É bom que haja confronto de ideias, adversários e opositores, mas nunca inimigos dentro de uma comunidade nacional.
Tem sido sempre mais fácil mudar as instituições. Difícil, é mudar a natureza humana e isso ainda nenhuma doutrina ou revolução o conseguiu até hoje!”
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*Palestra proferida no Auditório Conde de Ferreira, em Sesimbra, em 17 de Setembro de 2006. Publicado em Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2014.
INÉDITOS. 50
14-04-2015 10:00
Fumo*
Fumo e o cigarro
É para me esquecer
De que só sou um que fuma.
A ideia a que me agarro
É o fumo a ser.
Não é coisa nenhuma.
António Telmo
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*Título da responsabilidade do editor.
CORRESPONDÊNCIA. 20
12-04-2015 17:57CARTAS DE ANTÓNIO TELMO PARA ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO. 03

[António Cândido Franco entre João Raposo Nunes e António Quadros, na Livraria Universo, em Setúbal]
Estremoz, 15 de Dezembro de 1999
Meu muito estimado Amigo
Deixei-me primeiro desenvencilhar o espírito de preocupações práticas. O endereço do Pedro Sinde é (…). Gostaria que me apresentasse o livro[1] em Setúbal. O José Manuel[2] tem servido de intermediário para o João[3] da Universo. Fiquei com o número do seu apartado no Correio de Cuba, igual ao da minha porta, mas, se o quiser visitar com este corpo em que levo a alma, não sei que casa hei-de procurar. Para lhe roubar meia hora, não mais, pois sei que para si o tempo é sempre pouco, ao contrário do que é para mim que tenho andado para aqui a arrastar esta preguiça.
Quando me desculpava ao Álvaro Ribeiro com a preguiça por não escrever, ele dizia-me ser a preguiça só uma palavra, que deveria ver a que correspondia. Leonardo não sei onde dá-a como egoísmo. Eu, por mim, penso hoje que é uma espécie de descrença nos homens para quem trabalharmos. “Para quê?” perguntava aquela alma do Regresso ao Paraíso e punha a pergunta como um pecado na balança. E a sagrada balança estremecia. Como eu estremeço ao ler estas suas palavras de novo deus da literatura: “…o seu livro bate às portas do Céu e ali tem sido atendido. O seu livro poupa à pobre e desamparada humanidade algumas catástrofes. Ele ajuda a despertar o Deus que dorme.” A pobre e desamparada humanidade! Então sempre a preguiça é egoísmo. E se por acaso fosse assim mesmo? Se com o pensamento se impedissem catástrofes? Nunca acreditei que tivesse esse poder. Afinal, a descrença não é naqueles que me possam vir a ler, é em mim próprio. Hoje, pelo menos, como ontem ao ler o Jornal de Letras[4], as suas palavras tiveram o condão de levantar do abismo do desalento este pobre e desamparado homem. É bom ter amigos. Ter Amigos. Amigos.
Bem sei que há dois. Um desamparado e pedinte, outro senhor de si e da palavra que faz ver. A preguiça é com o primeiro; com a glória o segundo. Mas este segundo já não somos nós, mas o Deus que desperta. E há ainda aquele que está entre os dois e que é, no meu caso, aquele que lhe escreve esta carta.
A sua sugestão de escrever um conto para cada um dos sentidos humanos fez-me lembrar uma discussão habitual à mesa do Café da Brasileira sobre qual dos sentidos, o da vista ou o do ouvido, era medianeiro do mais profundo conhecimento. Argumentavam uns e outros com as primeiras páginas da Metafísica de Aristóteles. Hoje vejo que é legítimo pôr a mesma interpretação relativamente ao olfacto, ao paladar e ao tacto. Dou-lhe inteira razão no que sugere. A verdade, porém, é que eu, no conto, descrevo uma experiência real, em grande parte passada comigo. A Arte de Olhar é uma história que deve ser lida à luz da minha relação com o poeta austríaco Max Hölzer noticiada em Trabalho de Grupo. Não é que ele ensinasse a arte de olhar ou de ver (esta é uma maneira minha e desviada ou substitutiva de contar a coisa). O que ele ensinava era a estabelecer contactos por um processo análogo ao que descrevo no conto. Sensação, não imagem (visual ou sonora), ou não muito como um gosto à maneira dos sufis…Mas, ao princípio era o Verbo. Daí o Leonardo Coimbra e a teoria da ressonância.
Eu gostei muito do seu escrito no Jornal de Letras. Admiro tudo quanto escreve, mas há o pior e o melhor e a notícia sobre mim e os meus contos é do melhor. Admiramo-nos, escrevemo-nos como o fizeram outros antes de nós. Porém, o que me parece importante é que sendo ambos artistas do dizível admiramos o mesmo indizível ou indivisível ou invisível no qual vivemos e somos. O António Cândido tem-lhe chamado o Nada. Na mesma linha deve situar o seu anarquismo. Também eu sou anarquista perante uma política sem príncipes ou princípios, sem arqueus e com gente arquiestúpida. Onde é que foi arranjar essa da minha democracia? O povo que criou a língua não é o mesmo que vota nas eleições. A cidade de Deus não se faz com votos, nem com desejos, nem com opiniões. A cidade de Deus não é, não será fruto da doxia, orto ou hétero. É um paradoxo que só os poetas-filósofos estão em condições de conceber. Não acha?
O paradoxo de… (perdi a ideia). É difícil. Paciência. Não será esta ausência o sinal de que devo pôr fim a esta carta?
Um grande abraço do seu muito amigo
António Telmo
[1] Nota do editor - António Telmo refere-se ao seu livro Contos, publicado em 1999 pela Árion. António Cândido Franco é o dedicatário público do conto “Doutoramento e Incesto”.
[2] Nota do editor - José Manuel Capêlo, editor da Árion.
[3] Nota do editor - João Raposo Nunes, poeta e livreiro. Proprietário da Livraria Universo, em Setúbal.
[4] Nota do editor – António Telmo refere-se ao artigo “António Telmo – Fábulas com pinturas”, que António Cândido Franco publicou, sobre os Contos, na edição de 1 de Dezembro de 1999 de JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias.
