UNIVERSO TÉLMICO. 58

27-04-2018 12:34

Um fragmento da II parte de Vida Conversável, obra ainda inédita que resultou do registo de uma longa conversa de Agostinho da Silva com Henryk Siewierski,  antecedido  de uma nota introdutória assinada por este amigo polaco de Agostinho, é uma das valiosíssimas colaborações que vão integrar o próximo número da revista de cultura libertária A Ideia, especialmente dedicado à vida e à obra do autor de Conversação com Diotima e que será lançada no final do ano em curso, com coordenação editorial de António Cândido Franco, Pedro Martins, Risoleta C. Pinto Pedro e Rui Lopo. Em pré-publicação, antecipamos hoje aos nossos leitores um excerto dessa notável peça.

Vida Conversável

Fragmento da II parte (inédita)

Agostinho da Silva

com Henryk Siewierski

 

NOTA INTRODUTÓRIA

 

O texto aqui reproduzido integra segunda parte, ainda inédita, do livro Vida conversável, uma longa entrevista com Agostinho da Silva, conduzida e gravada nos últimos meses de 1985 e primeiros de 1986, em Lisboa. A primeira parte foi publicada pelo Núcleo dos Estudos Portugueses da Universidade de Brasília, em 1994 e, logo em seguida pela editora Assírio & Alvim, de Lisboa. Somente em 2014 apareceu perdido na passagem dos séculos e nas desventuras editoriais o texto datilografado da segunda parte. Atualmente a Vida conversável aguarda a sua publicação na íntegra.

Concluída a gravação, na primavera de 1986, Agostinho da Silva quis que o seu interlocutor dispusesse do texto das conversas de forma que acharia melhor. Tomei a liberdade de retirar do texto as minhas perguntas, comentários, provocações, já suficientemente presentes nas respostas, e dessa forma deixar correr a fala do Professor, não interromper nem fragmentar o seu fluxo, preservar ao máximo o caráter oral e o estilo individual do discurso que resiste a quaisquer interferências na sua exigente e envolvente sintaxe. Espero que desta forma o Leitor possa presenciar, também como o ouvinte, esse discurso inacabado e indisciplinado sobre tudo, em que a retrospecção da vida, a reflexão e a experiência revivida de busca do saber se confundem e complementam, e talvez o mais importante aconteça entre os domínios da ciência e da poesia, da física e da metafísica, em diálogo com o mundo e com o outro, além dos sistemas limitados pelos dogmas e preconceitos. 

 

Brasília, 25 de março de 2018.

                                                                                  Henryk Siewierski

 

 

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47.

 

Seriedade com que uma criança brinca. No templo budista em Tóquio. Toynbee e o futuro do mundo. Herdeiros do Cristo e do Maomé. Entender os outros no Oriente e no Ocidente.  A busca da unidade fundamental pelo europeu. China, Brasil, Japão. Fernando Pessoa – a unidade e a pluralidade. O fenômeno e o numeno. O verbo ser. Tempo e eternidade. Homem – filho de Deus.

 

A começar da tal história de Tóquio, neste livrinho do Nietzsche reencontrei uma frase que eu já conhecia de qualquer outro lado e que me parece muito importante, na qual ele diz que um homem atinge o máximo de maturidade na sua vida quando tem a seriedade com que uma criança brinca.

Ora, muito bem. Eu estava a ouvir uma história de Tóquio e estava a pensar naquilo que me contou do seu Miguel brincar em português. Quando o Miguel está inteiramente sério, segundo Nietzsche, isto é, quando não é um heterônimo na casa onde fala polaco, quando é ele mesmo no máximo da sua maturidade de 6 anos, no máximo de sua seriedade, o nosso amigo fala português, não aquele português do diálogo com que ele fala com os meninos da escola, mas um português do monólogo consigo próprio. Esse é um ponto muito importante. Quer dizer, se quando estamos plenos na vida, nós não estamos a ter uma linguagem connosco. Por enquanto, o menino está tendo uma linguagem falada, ele fala em português. Provavelmente, um pouco mais tarde, o menino brinca sem falar, possivelmente é o que vai suceder. E, quando ele for homem e estiver no máximo da seriedade, ele porventura não fala, ele vai abolir todos os heterônimos, porque ele falar quando brinca ainda é de certo modo um reflexo do heterônimo que ele é na escola. Um dia, quando ele estiver inteiramente sério, apaga todos os heterônimos e fará uma coisa que não tem linguagem para ele.

Quando eu estava na tal história do templo em Tóquio, eu realmente estava a falar alguma linguagem ou estava a ser mudo numa verdadeira linguagem? Eu estava realmente a ser dois ou três heterônimos. Estava ser um português ou brasileiro, um brasileiro em Tóquio, num país estrangeiro e, portanto, vendo as coisas com certa estranheza, achando muito interessante o som do sino e o som da moeda batendo na madeira. E ao mesmo tempo estava com as lembranças das minhas origens. Era um brasileiro em Tóquio, mas era também um português, pequeno, rezando as orações que a mãe em Barca d’Alva me tinha ensinado. Mas, na realidade, eu porventura estava silencioso. O íntimo de tudo não era eu estar a dizer as orações – até não sei se as dizia em voz alta se não –, nem tocar o sino, nem lançar a moeda. Eu estava de fato sendo ali plenamente religioso com o íntimo de cada uma daquelas coisas tão diferentes. Porque naquele templo já devia estar misturado culto dos antepassados e religião do Buda – primeira mistura. E a outra mistura que eu estava fazer era realmente a de uma religião que não era nem sequer um catolicismo ocidental, que era um catolicismo da minha mãe que porventura não seria um catolicismo muito ortodoxo, porque não me lembro por exemplo de ela ir à missa, de maneira que já devia ser um catolicismo meio avariado pelos mouros lá de baixo porque ela era originária do Algarve. Não nasceu no Algarve, nasceu em Lisboa, mas a minha avó, mãe dela, era realmente do Algarve, de maneira que aquele catolicismo dela já devia estar temperado. Além disso ela tinha tido uma experiência de Brasil, onde também não podemos garantir que o catolicismo seja perfeitamente ortodoxo. Bem, era, portanto, uma coisa qualquer que, no entanto, ela exprimia pelas orações que fazem parte do breviário, fazem parte da catequese de qualquer católico, mas provavelmente havia um silêncio interno fundamental.

Então, quando nós falamos desses homens todos que cita o nosso amigo Toynbee – nesta parte do Civilization on Trial que citou, em que ele diz que os nossos próprios descendentes não vão ser simplesmente ocidentais como nós, mas vão ser os herdeiros de Confúcio e Lao Tse, de Cristo e Maomé, de Lenine e Ghandi, etc. –, nós vemos evidentemente que não é aquilo que ele diz pelas suas palavras o que tem importância. Quando nós pensamos nas guerras que houve entre cristãos e mouros, entre muçulmanos e cristãos, as mais violentas que têm havido no mundo, e evidente que nós não pensamos que sejamos ao mesmo tempo herdeiros duma contradição. Mas é possivel que, à medida que nós nos vamos afastando no tempo, que vamos vendo a história mais longínqua se comecem esbatendo aquelas coisas que caracterizam cada uma dessas personalidades, para ficar apenas o fundamental. Exatamente como há diferença quando nós estamos junto dum homem e ele nos aparece com todas as suas características agradáveis ou desagradáveis, mas, à medida que nos afastamos dele, à medida que ele se afasta de nós e aquilo que é propriamente individual nele se vai esbatendo, fica apenas um pouco mais longe um ser humano, homem ou mulher, depois alguma coisa que era um vulto que sabemos não é um leão nem um elefante, é realmente uma pessoa, é um homem, e isso pode ser uma tranquilidade quando ele está misturado noutros seres… Se eu estou perdido no deserto e me aparecem bichos que não me interessam nada porque podem atacar e de repente aparece uma silhueta de homem lá no horizonte, a vida nova entrou imediatamente em mim. Eu não sei se aquele homem é mouro, se não é mouro, se me vai bater, se me vai matar, se me vai roubar, não sei absolutamente nada, mas pode haver uma esperança porque apareceu uma figura humana. Então, é possível que, à medida que nós nos afastamos do ponto da história em que eles estiveram, as coisas mudem. Quer dizer que nós tínhamos o homem fundamentalmente e não a sua circunstância. Quando se diz que cada pessoa é o que é mais a sua circunstância por adaptação, por harmonia ou por combate, não importa, ele e a sua circunstância, é possível que, à maneira que a história vai estando longínqua para nós, a circunstância desapareça ou apenas sirva para pôr em relevo umas determinadas características que nos dizem mais que as outras características que foram simplesmente o tempo dele.