NO PASSADO SÁBADO, NA TERCEIRA TARDE TÉLMICA: LANÇAMENTO DA REEDIÇÃO DE «NOVENTA E TAL CONTOS», DE ANTÓNIO CAGICA RAPAZ

16-06-2015 21:16

Eram amigos e partiram com poucos meses de distância, deixando-nos uma imensa saudade. Hoje são vizinhos nos topónimos de duas ruas paralelas, num renovado bairro popular da vila de Sesimbra. António Telmo e António Cagica Rapaz ilustram na perfeição a relação entre mestre e discípulo na arte... do bilhar. Reencontraram-se no passado sábado, na Sala Polivalente da Biblioteca Municipal, na terceira Tarde Télmica, numa sessão muito concorrida e, uma vez vez mais, presidida por Augusto Pólvora, Presidente da Câmara Municipal de Sesimbra, que se congratulou com a actual pujança do movimento editorial gerado em torno dos autores sesimbrenses e, em particular, com a reedição, pela edilidade, de Noventa e Tal Contos, clássico livro de estreia de Cagica, quinze anos depois do seu surgimento. A nova edição, enriquecida com um In memoriam António Cagica Rapaz escrito por António Telmo nos derradeiros meses de vida do filósofo, tem posfácio de Pedro Martins, que, com João Augusto Aldeia, apresentou a obra. No dia do aniversário natalício do Tó Manel. Em dia de Santo António, pois claro! Boa noite, ó mestre!     

«De tanto treinar, acabei por ganhar algum jeito e chamei a atenção do Dr. António Telmo, o Tó, que teve a gentileza de me ensinar a jogar com preceito, com os efeitos adequados e, sobretudo, a juntar. Fiz grandes progressos e pratiquei com gosto e proveito, ganhando uma experiência que viria a servir-me, anos depois, em Coimbra, para ganhar uns oportunos patacos, no snooker, na cave do Café Montanha…

Para além do patrão Arménio, também os empregados praticavam. O António Luís jogava bem, embora fosse pouco concentrado, o Cândido tinha bom toque de bola, mas o Hernâni, o saudoso inspector Cachopa, era melhor no ping-pong do que às três tabelas.

Da freguesia habitual, ficaram-me na memória as impagáveis partidas entre o Zé Romão, pequeno e risonho, e o António Casa Pia, cheio de retórica, passes de tauromaquia, verónicas e chicuelinas, acompanhando o movimento caprichoso das bolas, trejeitos e requebros, uma coreografia notável à volta da mesa. O Orlando, dos táxis, chorava-se muito, só jogava pela certa, para ganhar. Do mesmo estilo era o Pai do Céu que ganhava quase sempre ao Leste, apesar de o bom Daniel ter melhor técnica. Porém, abusava da fantasia, da tacada artística, e acabava por encostar a barriga ao balcão.

Mas os mestres incontestados eram o Tó e o Chico Cagica. Dotado para todos os desportos, talento inato, o Chico era um bilharista admirável. Nas raras vezes em que jogava, o Central em peso vinha assistir, apreciar a facilidade dos predestinados, a fluidez, o engenho, jogo corrido, com o taco a transformar-se em varinha mágica, sortilégio raro…

O Tó era um filósofo, um poeta, um artista que cultivava a arte pela arte, queixo esticado, gesto ousado, em busca incessante do lance de génio.

Os bons jogadores de bilhar adaptaram-se facilmente ao snooker que consideravam como arte menor e a que só a novidade deu algum interesse. Os menos hábeis jogavam na retranca, sem arriscar, com o único objectivo de ganhar, ao passo que outros davam largas à imaginação e à ousadia em partidas memoráveis como as que opunham o Tó e o Nicola filho. Eu ficava todo contente quando o Tó ganhava.»

ANTÓNIO CAGICA RAPAZ, "O bilhar", in Noventa e Tal Contos

«No Café Central, em Sesimbra, havia dois bilhares, um ao lado do outro. O Café era do Sr. Arménio, velho tuberculoso, mas cheio de vitalidade que me deixava jogar de borla, desde que o fizesse ao perde-paga.

Quando estava a jogar, costumava aparecer um rapazinho, muito aprumado, muito sério que se encostava ao outro bilhar, seguindo inteligentemente com os olhos o movimento geométrico das bolas, que eu impelia com o meu taco.

Depois, convidei-o a jogar, conforme vem contado por ele no livro que escreveu, alguns meses antes de abalar para onde todos, excepto um, tiveram, terão e têm forçosamente de ir.

Ele diz, no mesmo livro, que, se o seu destino não o tivesse futebolizado com passagem pela Académica, pela CUF e pelo Belenenses, teria talvez podido ser mais atento ao que eu lhe teria de certo ensinado.

Conta que apostei, com ele, num dia de muita chuva, que o povo tem razão quando afirma que “não há sábado sem sol”. Mostra-se convencido porque lá pela tarde abriram-se por instantes as nuvens para deixarem passar um raio de luz.

Apesar do futebol, era muito inteligente, não tinha embrutecido. Não vivia encegueirado por ele. Foi um notável jornalista, que nos encantou com as suas crónicas no Sesimbrense; escreveu livros que se lêem com o encanto das coisas sonhadas e só ali vistas. O seu estilo é simples, claro, tirando todos os efeitos dessa mesma simplicidade e clareza.»

ANTÓNIO TELMO, "In memoriam António Cagica Rapaz", in Noventa e Tal Contos