VOZ PASSIVA. 97

09-08-2020 10:49

ANTÓNIO TELMO, DEZ ANOS DEPOIS

 

Observações sobre a filosofia de António Telmo e a torrente oculta

Da perscrutação pitagórica à kabbalística veraz

Alexandre Teixeira Mendes

 

 

“… o messianismo judaico, (…) tempera com a virtude da esperança a afirmação melancólica de que o homem ainda não é livre”                                                                                                       

                                                        Álvaro Ribeiro, “Meditação Lusíada - Amanhã, V Império” 

                                                        in Tempo Presente - Revista Portuguesa de Cultura, nº 17-18, 

                                                        II ano Set.-Out. 1960, pág. 7

 

                                                 

 

António Telmo é, para muitos dentre nós, justamente tido como dos mais peculiares e clarividentes dos filósofos contemporâneos. Na verdade, o autor de História Secreta de Portugal[1]  é um caso à parte, no sentido de que a sua obra - com eloquentes rasgos - comprometeu-se num caminho de inscrição numa tradição ou numa filiação  “pneumatológica[2] e, por certo, nos recursos de uma “arqui-escrita” e da experiência “arcana”. Podem assim compreender-se as “etapas” e, consequentemente, as “gradações” - “démarches” - de uma obra cujo poder verbal ou, se se preferir, originalidade e coerência intelectual (vínculo “críptico”) subsistem[3]. Não se pode pôr em dúvida o trabalho sobre a “chave” interpretativa[4] - na “conformação” à verdade “escondida” da tradição - e, portanto, a pertinência “simbólica[5]. Pode pois com toda a verdade dizer-se que tende a ser o protótipo, pelo menos em parte, de um singularíssimo pensamento especulativo e operativo (de sentido experiencial) da “hermetica ratio[6]. Trata-se, por isso, de uma imensa e incessante meditação (chamada muito simplesmente “arqueo-filosofia”) na indagação da nossa história como “cifra” e ainda na e(di)lucidação (entre diferentes planos e “conexões”) da identidade portuguesa[7].

 

Desvario, deslocamento

Não há progresso real - por pouco que nisso se pense - em filosofia - pelo menos do nosso ponto de vista - só existem aspectos “cumulativos” e “constâncias” problematológicas por si mesmas.  Supõem-se, por exemplo, como sugerimos, os refinamentos técnicos elucidativos e, particularmente, os contra-exemplos.  “A história da filosofia - poder-se-ia dizer - é descontínua e hetero, tansforma o mundo, como no-lo diz Roberto Casati, a filosofia é necessária, a filosofia acontece”[8].  E, assim, podemos dizer que a filosofia, não raras vezes, será sempre - conforme assinala Martin Heidegger - um desvario. A compreensão deste desvario da atitude pensante, só se pode lograr por um “deslocamento repentino[9]. Se, como acreditamos, em conexão com as formulações de Jacques Bouveresse, “no domínio literário e filosófico, o pensamento procede essencialmente segundo o registo da associação de ideias e que esta é essencialmente criadora e pode criar tudo o que quiser (...)”[10], concluímos, porém, por assim dizer, que cada filósofo cria a sua própria escolástica. Ora, para se entrar no pensamento dos grandes mestres, torna-se fundamental compreender a sua linguagem singular.  Deve, no entanto, referir-se que a filosofia é, por definição, uma arte (o grand récit).

 

Sagrado, “motu próprio

A singularidade e originalidade do nosso filósofo consistiu precisamente em retomar o estudo - numa atitude de obediência filial aos processos interpretativos - na encruzilhada da poética e da hermenêutica - omnipresente - e em parte, rigorosamente, ao que há de secreto e de sagrado na língua e na história portuguesas[11]. Mas a dificuldade amplia-se consideravelmente dado que os seus escritos constituem - de “motu próprio” - um corpus notável (as “Obras Completas” alcançaram, pois, 10 volumes) e, para ser franco, difícil, na sua tangência - , se nos é permitida a expressão -  de ser apreendido, numa palavra: surgem-nos  pontuados pelo  (sub)entender[12].  Sem de forma alguma abarcarmos todos os aspectos da obra de António Telmo, ver-se-á, portanto, que ninguém a pôs em mais evidência que Álvaro Ribeiro[13].  Isto no que respeita, no seu conjunto, à sua ligação à kabbalah hebraica (uma mística da linguagem): isso é indubitável[14]. Rigorosamente na comunhão da kabbalah e do hermetismo, por assim dizer, as suas especulações tributárias do pensamento esoterista, ajuntemos:  a peregrinação teologal pelos tratados “O Zohar” -  “O livro do Esplendor”[15] - do século XIII atribuído a Moisés de Leon mas que é, na verdade, uma obra anónima de séculos tal como a Tanak (Bíblia hebraica) e o Talmude -, ou certos complementos e, por vezes, alguns suplementos-síntese da nova kabbalah de Isaac Luria[16].

  

Ars Regia

António Telmo foi, pois, - voltamos a dizê-lo - um dos grandes pensadores portugueses (carismático e sem equivalentes e, por vezes, subestimado e hostilizado). Com a sua contemporânea portuense, Dalila Pereira da Costa[17], ele mudou a face  da reflexividade filosófica através dos seus ensinamentos e trabalhos sobre o substractum português - que é, pois, sucessivamente,  de um tipo messiânico-sebastianista - e os processos psíquicos -  interpenetração do subconsciente ou do  inconsciente hebraico - na sua verificação directa - aguardando de antemão a “salvação” - o juízo e o clímax – os “sinais do  escathon[18]. O facto novo é aquilo que se poderia chamar “pansofia” kabbalística; a acuidade desta resulta, se quisermos fazer uma leitura positiva e fiel, de que o fim supremo de todo o kabbalista é a união com a divindade (devekuth). Ele concebeu o seu trabalho em termos de Ars Regia dos “Filhos de Hermes”. Contentar-nos-emos com assinalar agora, sem nisso insistir, na disciplini arcani. É portanto necessário que se tenha a ideia do que é o ocultismo - a ciência da revelação divina  - e da aplicação da lei da analogia[19]. “O esoterismo é, na perspectiva, por conseguinte, de René Nelli, uma espécie de filosofia primeira[20].  Na verdade, é necessário não esquecer que todos os esoterismos, como tal, orientais ou ocidentais, longe de rivalizarem, se completam, - ou: primeiro, as “gnoses” -,  acordam sobre a simples obrigação posto ao homem de desenvolver sobretudo um “conhecimento superior”, mais largo, “verdadeiramente espiritual[21].

 

Obra-a-signatura

Julgamos que espontaneamente desabrocha em António Telmo o que poderíamos chamar o espírito da “iluminação” (seguindo as aporias da nova kabbalah)[22], quer para exprimir finalmente a filosofia, quer a vida do pensamento, no recurso à (re)descoberta - o “processus” - da subjectividade ? Sabemos, por exemplo, como reconheceu António Telmo, que o que é próprio da essência do oculto é o aparecer [23]. É preciso, portanto, atermo-nos a uma obra-a-signatura que é insuflada pelo horizonte mitopoiético. Resumamos: o seu ponto de partida é a arte poética e a filosofia que constitui (efectivamente) o seu centro gravitacional do mundo quid specificum. E onde se pressupõe, portanto, o limiar de uma tese primacial da kabbalah: a realidade é conduzida pela palavra. Quando afirmamos que a linguagem poética é linguagem no sentido próprio, como tal, palavra (absolutamente falando) viva[24].  Não é aqui o lugar para abordarmos a teoria metafísica dos estados múltiplos[25]. É certo, porém, que a imagem do nosso pensador vem, pois, associada ao seu neo-pitagorismo hermético e a uma kabbalística veraz, os fundamentos espirituais  - a subentendida “linhagem convivencial” - na  radicação da “escola portuense” -  que aqui mencionamos[26].

 

Philosophia Oculta

Não resta dúvida de que - sob o prisma de determinadas tendências ligadas à Philosophia Oculta[27] - António Telmo focalizou uma certa maneira escatológica de ver o mundo: num vínculo estreito com uma filosofia transcendente e profética da história (o advento messiânico).  Entretanto as  mencionadas especulações intelectuais - insights - ligadas à filologia, uma justificação da teoria declarada da gramática “secreta” da língua portuguesa, que tentou justificar a lógica interna e originária - as propriedades linguísticas submersas e modelares [28]- , e fez avançar os diferentes estudos linguísticos-kabbalísticos que lhe eram consagrados - e, inclusive, uma questão muito discutida - a imagística do percurso português - onde se tende a pôr em evidência uma teoria dos ciclos, das correlacções ocultas e das cifras -  directa e indirectamente -  se des(re)cobre o horóscopo de Portugal -  conforme ao seu objecto - a sua historicidade metafísica, por exemplo, ou os signos categoriais [29].

 

Subentendidos

O principal discípulo de Agostinho da Silva, naquilo que se designou por continuador in-conformista da escola neo-renascentista, que testemunha o afecto conveniente e ao logo de toda a sua vida, é, pois, o timoneiro da semiose hermética. A esta amizade - de “a filia” como “a-filiação” - junta-se a de Álvaro Ribeiro e José Marinho -, será, pouco a pouco, a  afirmação de uma longa colaboração. Os seus excursus parecem-nos simultaneamente sinuosos e precisos, sub-reptícios e assertivos, aqui, porém é importante ressaltar a qualidade dialéctica do seu pensamento unificado e (trans)lúcido (consubstanciando uma tessitura não standart da linguagem e, por conseguinte, de um idioma pleno de subentendidos). De facto, é um pensador clássico e de linha mitológica-hermética inegável que inaugurou um novo procedimento semiótico e compreensivo que vão, assim, a par. O fio condutor de seu trabalho-reflexão concerne, em última análise, a procura da individualidade histórica portuguesa e o retratar os seus traços típicos, reconstruindo o nosso passado histórico - fundamentum in re - traduzindo os “signos-chave” e a “mensagem” explícita - escalonando o seu futuro pela previsão e exactidão dos seus cálculos astrológicos. O que lhe interessava era adoptar o que se pode chamar de recurso às conjunções, quadraturas ou oposições de planetas, isto é, o repositório de enunciações ocultas. Ele tomou desde logo o ponto de vista do filósofo que abarca uma linguagem metafísica, conceitos terminológicos, denominações, configurações. Uma vez admitida a “estrela sobrenatural da filosofia”[30] .

 

(Trans)cursos

No nosso estudo deter-nos-emos, porém, em analisar uma obra plena de formulações e (trans) cursos, que interpela tacitamente o substractum da ciência hermética (sobre) essencial (e não exclusivamente), essa atenção e esse reconhecimento da componente da astrologia, do tarot e da kabbalah judaica, é absolutamente indispensável. Trata-se, sobretudo, de assimilarmos muito sucintamente as suas pesquisas em torno da arte como cifra, revelação e speculum - expressa num bom número de monumentos “raros” e “subtis” - em seu contexto original - veja-se p. e. “O mosteiro dos Jerónimos” - e reflectida numa “senha” ou “simbólica” genuína[31] (em profundidade, redundância e autentificação) que permanece viva e não ultrapassada -  de excelência - aquilo que é signum e figura (na sua “transmutação”, redundância (co) implicante e “tocha” do pensamento alquímico). Ele “acostumou-nos” pouco e pouco à busca incessante da complexio oppositorum - acolhendo a encruzilhada ou a junção de caminhos - a dimensão do pensamento (ambi-polivalente e não bivalente) que se dissemina?

 

Convocare

É essencial “convocare”, na íntegra, o mestre-pensador a priori vinculado ao esoterismo, em sentido lato, aos esquemas ou padrões sapienciais, o porta-voz e o expoente fidelíssimo da última geração (gente de escol) da filosofia portuguesa que nos interessa por agora. Aparece-nos como o auto-didacta de boa família dos acroamáticos e o filólogo da indagação escritural (que insiste sobre a precedência dinâmica da poesia, poético e poemática), o que leva a pôr o problema da estrutura da língua portuguesa. Alinhador de “cifras” (à luz de tácitas reflexões cripto herméticas) foi, acima de tudo, um estudioso meditativo (em esboços sugestivos) da maçonaria e, com frequência, do simbolismo maçónico. E isto leva-nos, no meio de tudo isto, à face do typus melancolicus de um pensador pouco convencional, palladium do oculto (que incorpora os contornos e os elementos de raiz mística e (neo)platónica). Podemos percebê-lo enquanto pitagórico e sincretista, aberto à “metapsíquica”, que busca a quadratura do círculo. No remate final do hermeuta ou do fenomenólogo, esclarecido e coerente, com faculdades e inclinação para os silogismos, claros ou subentendidos, - e daí por diante -, familiarizado com a experiência da reflexão e a indagação metafísica. Ele reflectiu, desde a primeira hora, sobre o templarismo, que exigiria precisar os traços pertinentes para um estudo mais extensivo. Aqui a misteriologia antiga,  a alquimia e a kabbalah judaica. Não obstante ser um sincretista, refractário aos contágios fáceis e à ubiquidade mental, dons específicos para a exegese arquitectural - dialéctica mobil e, naturalmente, rica, que sempre se depara com a especulação geométrica (para reconsiderar da capo toda problemática pitagórica-platónica). Ele é o hermeneuta insigne (na conexão circunscrita do “imperativo herético[32]) e inspirado desde início pelas ciências ocultas e seus corifeus - tendo como ponto focal o campo especulativo da alquimia - e, particularmente, da arte da astrologia - em plena féerie adivinhatória - o qual exprime sobretudo as grandes “conjugações” -, mergulhou directamente em plena “torrente oculta”[33]. Celebrare em latim indica, originariamente, “frequentare”. Celeber do grego kélos significa, como exemplo, transversalmente, calar, “chamar”, “convocar”. No exacto momento em que se nos depara o recolhimento - recolligere, apanhar, agrupar o que estava espalhado ou disperso[34].

  

(Sub)problemas

Não deveríamos nunca negligenciar o livre-pensador na índole e na tradição da escola portuense que meditou, todavia, em profundidade - deliberadamente - sobre a portugalidade e sua fisionomia própria - na sua singularidade e complexidade sacral e simbólica (inesgotável), do nosso inconsciente face à influência hebraica? E a tradição - dir-se-á? - as vias de acesso à pátria enigma (“ideia-directora”, “entelechia”, como se pressume) face a uma (nova) sociedade e a um sistema tecno-científico-económico que se deixou hipnotizar pelo mito do progresso e que permitiu a chamada globalização do espectáculo? Era tarefa pesada[35]. Devoção, pois, ao problema da substância dos ciclos históricos, inclusive a astrologia, e de “armanezar” para o futuro - matematicamente - sinais exclusivos, determinativos. Evidenciou, assim o cremos, o desejo ardente de tudo compreender e toda a sua adesão ao hermetismo no diálogo através e (a) dentro da maçonaria e da alquimia[36] - na confluência das suas vertentes filosóficas-especulativas e espirituais - essa lição específica do profetismo e da ideia messiânica[37].  Podemo-nos aperceber de uma análise fenomenológica-arquétipa e de uma valoração hermenêutica instaurativa - arqueológica - imediatamente traduzível - (pre) fixada? [38] Na primazia, pouco a pouco, aos problemas complexos - cerimoniosos - submetidos a muitas rectificações - dividindo-os primeiramente em vários (sub)problemas?[39]

 

Maneira de vida

O nosso autor assimilou, em todos os seus detalhes, (pelo menos, muito frequentemente), que a filosofia antiga (na sua virtus specifica) era principalmente “uma maneira de vida”. Ela foi exposta, por exemplo, por Pierre Hadot[40]. Verifica-se que existiu um denominador comum às formas de conceber a vida filosófica, pressupunha, em consequência, amiúde, a busca da sagesse, ou, acima desse âmbito, a assumpção de um modo de viver.  Poderíamos, a estes, somar principalmente a arqui-noção de “exercícios espirituais”. Pode parecer à primeira vista, que desde “Arte Poética” (Teoremas, Lisboa, 1963) tenha sido identificado antecipadamente como um “hermeneuta” - quando passa, portanto, de codificador a descodificador -, poderia ser aplicado a diferentes tópicos pormenorizados e específicos estudos em diferentes situações, que requereram unidades descritivas. No entanto, há fortes evidências que indicam que esses mesmos procedimentos adoptados  enfatizaram, de modo geral, a vertente hermética de raiz moderna - de cultor pitagórico[41] e kabbalista - uma vez descoberta uma fonte de motivação e meditação: ela parece estar significativamente relacionado a Luís de Camões e à sua poesia (que tem a vantagem de ser considerada em geral como particularmente neoplatónica), apresenta, decerto,  tensões contraditórias, bem traduz uma estilística e uma temática - sinal ou símbolo da modernidade da tradição - um pendor gnóstico. O aspecto importante neste caso é, por conseguinte, o seu programa de pesquisa. Não podemos falar deliberadamente de Luís de Camões sem nos referirmos a um poeta que possuía uma cultura assimilada e interiorizada. Resta sublinhar, entretanto, que os seus topoi ou tópicos favoritos e a sua poética miraculosa revela um forte pendor vanguardista, ou antes, na assimilação do espírito das letras clássicas e na superação do petraquismo.

 

Vinculum

Em António Telmo não se apresenta propriamente um único tipo de vinculum, há de reafirmar sempre um discurso capaz de se posicionar e superar os “diferendos”. Esclareça-se, desde já, que nas suas cogitatationes descortinamos a influência do hermetismo ou da literatura gnóstica-hermética. Apenas nesse contexto fica evidente um neopitagorismo[42] permanentemente verificado e confrontado com a kabbalah, e vemos de que modo, às vezes, sub-repticiamente, a filosofia aparece-nos como memoria spiritus[43]. No assentar, afinal, “em instantâneos” às correntes herméticas e sobretudo os círculos neo-platónicos e gnósticos, António Telmo foi, antes de tudo, um mestre itinerante, insistente, - com um não-sei-quê de secreto, dissimulado. Ele age como investido - um sábio fraterno e fervoroso - como um “sinal” de magistério extraordinário - expressão de “desbordamento”.

 


[1] Trata-se do seu opus magnum que hoje (re)lemos. Mal saído dos prelos (1977) obteve a maior aceitação e êxito. No meio da produção filosófica desse tempo exigente em questões de sinceridade política e o poder contagiante das propostas “revolucionárias” (redenção futura e total de Portugal - exigida entre os cidadãos - e consciência da necessidade de “mudanças radicais”) - este ensaio criou, ele próprio, um clima de  evidente “desmitização”. História Secreta de Portugal deu, evidentemente, muito que falar. Até porque na sua (des)construção em alicerces astrónicos - esparsa e veladamente - e em que o sistema e o totalitarismo do regime salazarista (o “clericalismo” do Estado Novo) são levados ao “banco dos réus” - procedeu a comentários e deduções do “destino” de Portugal: os factos que estão por vir. É então que o tema da “filosofia portuguesa”, designadamente a sua padronização espiritual, intervém.  Assim afirmado - nada menos - do que esse sentido do oculto - este mistério - da história - apokalyptai, “revelar”. Mas merece ser retida a sua posição dos fins de 1977. A Carta de António Telmo para Álvaro Ribeiro, endereçada de Borba, em 2 de  Dezembro de 1977, marca um clima: “Devemos, quanto a mim, situar-nos no vértice do triângulo e não descer para lutar no plano dos contendores, dominar desse ponto a linha dos opostos, resplandecendo à direita e à esquerda, sem lugar ou tempo que não sejam o lugar e o tempo da ideia” (in Cadernos de Filosofia Extravagante, Interiores, Correspondência Inédita, Zéfiro, Sintra, 2012, p. 137). Em atenção à carta atrás referida por António Telmo a Álvaro Ribeiro registra-se o apego a um ideal compreensivo, engenhoso, adaptável - e portanto claro e indiscutivelmente dialógico (de convivência pura) - que não sucumbe ao processo absolutamente específico e essencialmente conflituoso ou do dissentimento - o teatro político - perfilhando prudentemente aquilo que se convencionou chamar a “apoliteia” predicada por Julius Evola - um encontro mais conseguido com as visionações e as intervenções opostas e circunscrições polémicas  (para verificar ou redigir um argumento da seriedade sob o acervo do lugar e o tempo da ideia). Uma vez admitido o para além do político, é claro que o “engajamento” político permanece marcado pelo “condicional”. “A apolliteia – afirma Julius Evola - deve ser a regra do homem diferenciado” (Le Chemin du Cinabre, Editions Arkatos, Carmagnola, Torino, 1982, pág. 201).  Crer então - com muita facilidade - no pressuposto, por assim dizer, do controlo - tangível e perceptível - dos processos políticos e económicos é um engano. Pois interessa reconhecer que o real e absoluto controle está por inteiro nas mãos de muito pouca gente - nomeadamente as oligarquias financeiras - que por sua vez desfruta da maior parte dos benefícios. Será preciso sublinhar, ao terminar esta nota, que para Milton Friedman, no seu livro Capitalismo e Liberdade, a possibilidade de se obterem lucros é a essência da democracia e, por esse facto, é exigido aos estados uma política trabalhando no objectivo dos interesses do mercado. Os governos devem confinar-se, segundo afirma, inextricavelmente, à protecção da propriedade privada e, por sua vez, a execução de contratos, limitar muito simplesmente o debate político a problemas menores.  Na prática as verdadeiras questões, todavia, de produção e distribuição da riqueza, organização social, devem ser bem mais determinadas pelas forças de mercado. Mas, acima de tudo, devemos reparar em como muitos homens de estado desacreditaram as bases essenciais da condução dos negócios públicos. Lembremos o esplêndido livro de Pierre Mendés-France e Gabriel Ardant A ciência económica e a acção, para compreendermos certos aspectos da ciência económica, como, por exemplo, o que é, no plano teórico e no plano prático, o problema do “equilíbrio” e o problema da “escolha” (Publicações Europa-América, Lisboa, 1955).                        

[2]A palavra pneuma vem da palavra grega que significa “espírito” semelhante ao hebraico “ruah” e latim “spiritus”, também pode significar “respiração”. E por isso, precisamente, a palavra é usada no Novo Testamento e subsequentemente na teologia cristã para significar “alma”. Também é usada nos escritos gnósticos para distinguir aqueles que se libertaram do mundo material por meio de conhecimentos esotéricos (pneumáticos) daqueles que inevitavelmente se deixaram aprisionar no mundo material (os hílicos ou somáticos). Sabemos, por outro lado, o que significa a eficácia pneumática da palavra (é ela provavelmente a origem histórica do tema maçónico da demanda da “palavra perdida”).

[3] Os seus livros exigem que nos assentemos e reflictamos, compreendem notadamente uma prodigiosa exaltação de um hermetismo implícito. Consideremos especialmente o pendor ocultista e esotérico, em conjugação com a metafísica e philantrophia. A palavra ocultismo é de origem latina e oculto significa “escondido”.  Esoterismo é de ascendência grega e significa “reservado aos únicos adeptos”, por conseguinte “escondido” aos outros, aos profanos. Quando se procura traçar o seu desenvolvimento filosófico não é incomum falar-se de um “primeiro”, de um “segundo” e de um “terceiro” António Telmo. A oposição entre estes três momentos de per si parece cristalizar-se nos seus  1) “excursos” astrológicos filosóficos (como é notavelmente exposto na História Secreta de Portugal), 2) deambulações sobre a “mística” neo-pitagórica (os procedimentos algoritmos) e a kabbalah veraz ou, mais precisamente, 3) os estudos conexos directos e recorrentes de Luís de Camões  e a considerar todas as (in)determinações  do “traço”, “différence” e “texto”. A partir de António Telmo outro caminho hermenêutico (de análise e de interpretação criteriosa) se esboçou. Constatamos, portanto, a prevalência de um núcleo de obras onde se descortinam os escritos minuciosos e sóbrios, cuidados e elegantes, sistemáticos, e, com efeito, os estudos avançados e as passagens de redacção (no contexto de uma filosofia especulativa) que encerram ideias e conceitos esquemáticos e parecem (na aparência) meras notas.  Mas é preciso igualmente notar que na sua obra maçonaria e alquimia estão unidas pelo seu conteúdo iniciático-filosófico. Foi António Telmo - como Fulcanelli - um mestre iniciado, um estudioso e, em última análise, uma personalidade instruída intelectualmente nos textos alquímicos e os conhecimentos teóricos desta disciplina e, de igual modo, no esoterismo maçónico. Um sujeito no qual se juntam o exegeta nada-convencional ou então o filósofo contemporâneo - sob o impulso de Agostinho da Silva, Álvaro Ribeiro e José Marinho - , conhecedor das disciplinas transcendentes ou iniciáticas - em geral - e que partilhou um método de explicação da arte hermética, da máxima importância, tomando como base e apoio a descrição e comentário, de cunho rigoroso, sobre símbolos e emblemas ornamentais de diversos monumentos (onde apreendemos p. e. o “registo em pedra” do Mosteiro dos Jerónimos). Existe uma tentação frequente de subestimar a fé, a gnose, que vive precisamente, como todo o conhecimento, de uma visão original.  Se, como já argumentamos, António Telmo mantém os acentos dum autor magistral e inspirado, expõe, em algumas páginas, o essencial dos seus postulados histórico-salvíficos, resume inclusive as suas ideias mestras multifacetadas (um “transbordar” major). Não é fácil perceber o marco dos “distinguo” e, por conseguinte, dos “subdistinguos”.

[4] Neste particular, é elucidativo considerar avant la lettre a prevalência (em um “sentido estrito”) de uma conceptualidade gnóstica - e simultaneamente, como tentamos mostrar, de uma valorização e (re)apropriação hermética - conquanto marca ou re-marca de uma pressuposição metafísica e, consequentemente, onto-escato-teológica.  Reconsideremos muito atentamente o livro A chave dos Lusíadas, Luís de Camões, Prefácio, Paráfrase e Notas por José Agostinho, Livraria Figueirinhas, Porto, s/d. Ver também Marta Nolding Influência Gnóstica na Literatura Portuguesa, Lisboa, Fundação Lusíada, 1997.

[5] Symbolum - nós o sabemos - no sentido de “téssera” e no sentido de “insignia”, estandarte (vexillum). Poder-se-ia classificar de diversas maneiras a “simbólica geral”.  Para nos darmos conta que símbolo, do latim symbolus ou symbolum ou do grego symbolon, da família dos verbos symballein, que significa “montar”, composto por synjunto” e balleinjogar” com referência ao uso antigo de quebrar uma moeda ou outro objecto em duas partes iguais, para usá-lo como meio de reconhecimento. Fica bem assinalar aqui o admirável ensaio de René Alleau A Ciência dos Símbolos, Edições 70, Lisboa, 1982. Refira-se, entretanto, a obra-modelo de Bruno Forte Simbolica ecclesiale. La parola della fede. Introduzione alla simbolica ecclesiale, San Paolo, Milano, 1996.

[6] Importa ter presente o livro de Julius Evola La Tradition Hermétique - Les symboles et la doctrine, l’“art royal hermétique (Éditions Traditionneles Paris, 1975). Podíamos abstermo-nos de definir os atributos do conhecimento da herança da tradição unânime, abrangendo o que foi revelado aos sábios egípcios, persas e caldeus. Assim se explica, precisamente, o uso da mitologia e do rito, o estudo da harmonia, as estrelas, a matemática e a geometria sagradas e dos vários veículos iniciáticos, em geral, permitindo o acesso aos mistérios, vale dizer, o recriar a philosophia perenis.  Todavia projectando, e construindo por sua vez, um corpus de ideias metafísico (todo-poderoso) que constitui propriamente a tradição hermética-alquímica.  Nesta compreensão torna-se difícil delimitar, antes de tudo, a natureza esotérica dos ensinamentos do judaísmo que é expressa pelos termos sod (“secreto”), sythrey Torah (“mistérios da lei”) e outros equivalentes.

[7]Pensamento processual de grande alcance canalizado, entretanto, para o re-pensar e o re-interpretar o “logos” e o “ontos” português - onde poder-se-iam citar os estudos das “conexões arquétipas” e, por conseguinte, do âmbito “imaginal”.  Teremos de fazer o balanço de uma obra - considerável, na nossa escala de observação, irrecusável, - e no quadro da “tradição hermética”.  Afloramos aqui as formações sedimentares de uma metafísica (onde teríamos necessidade de a admitir como sinónimo-apego do “sobrenatural”) e as suas “vias iluminativas”. Podemos assinalar especialmente o uso do processo magistral que os judeus aplicam à interpretação de textos. Convém falar do tikkum, que constitui o processo de leitura para restituir, pouco a pouco, o sentido conveniente.

[8]Prima lezione di filosofia, Editora Laterza, Roma, pág. 6.

[9]La pergunta por la cosa, Editorial Sur, Buenos Aires, 1964, pág. 11.

[10]Prodígios e Vertigens da Analogia, Celta, Oeiras, 2001, pág. 152.

[11]Contentemo-nos em notar que a história escrita ou registrada é essencialmente - desenvolveremos esta ideia lá mais para diante - uma forma de mito. Notaremos em primeiro lugar que os termos “atenção hermenêutica ao que há de secreto e sagrado na língua e na história portuguesas” foram definidos por António Braz Teixeira. V. Intróito in Cadernos de Filosofia Extravagante, Interiores, Correspondência Inédita, Zéfiro, Sintra, 2012, pág. 28. Em segundo lugar, a noção tem um campo de aplicação amplo - e o seu mérito - se, naturalmente, as suas implicações estudadas. Falámos mais acima de um esquadrinhamento da tematização e portanto da teoria (theorien significa literalmente - na acepção, ao menos, de Aristóteles, - “ver”). Há muito para assimilar nos textos poético-visionários e kabbalísticos de António Telmo.  E, então, somos forçados a reconhecer no seu trabalho - aplicado à letra - a “propensão” ou “inclinação” heterodoxa - seguindo os próprios ditames talmúdicos. Refira-se, circunscritamente, o pendor a-cristão-católico mas que não se pode dissociar da “De  eclesia mysterio”  e o “depositum fidei” (depósito da fé) - as fórmulas  ou tentativas de recuperar o cristianismo iniciático e mistagógico.  A este propósito Elémire Zola faz uma observação inteiramente justa: “A função mediadora do intelecto hebreu provêm da aplicação exegética”. La Nube del Tear. Razón e Irraconalidad entre Oriente y Ocidente, Paidós, Barcelona, 2002, pág. 29. Mas, no decurso do seu périplo do saber, na sua condição de pensador e de autor, entra, ainda que isoladamente, em contacto com as correntes ocultistas e os franco-maçons, os “compagnons” da arte real. 

[12]Os “insights” de António Telmo, é verdade, mais do que leituras de circunstância, mostram-se vazados nos moldes das “pautas” esotéricas e da “ciência do oculto”. As linhas mestras desenham-se com clareza: reflexões sobre a herança templária e as tradições templárias, o neo-pitagorismo, Platão e Aristóteles, a kabbalah, os mundos metafísicos, a linguagem e, por conseguinte, o “verbo divino”, o “erro humano” e o mal, o messianismo, o sufismo iraniano, a geometria sagrada, a franco-maçonaria, etc., etc..  Compreender-se-á melhor o que pretendemos expôr, examinando a história da “ciência oculta” ou espiritual. Voltaremos a este assunto. Ver, por ex., Rudolf Steiner, La Science de l’Oculte.

[13]O ponto de partida inicial são, talvez, as verdades filosofais da kabbalah. É urgente denunciar o perigo da classificação de António Telmo como um mero esoterista ou guru, definição, a qual, é, crê-se, mais rígida no seu alcance que o místico, e reaparece aqui como problemática. A obra publicada - onde encontramos pois ensaios, poemas e contos - está repleta, se quisermos, de indicações subtis (não se limitou à mera “estética”). Já por uma tendência profunda da sua natureza - um modus operandi -, António Telmo foi conduzido a ler - extensivamente e com simpatia - nos requisitos das tradições místicas-espirituais - os grandes textos esotéricos. O nosso autor, como C. G. Jung, era um leitor de livros alquímicos. Mas onde encontramos, pelo menos, referências, de forma discriminada, à teoria hermética e a gnose.  Outros exemplos poderiam ser lembrados, especialmente a “gaye science” ou “gay sçavoir”, gaia ciência. Disso resultarão consequências hermenêuticas e interpretativas - que animam o investigador - albergam e promovem a “theoria” da “história” secreta. Notáveis são os seus escritos e palestras sobre Luís de Camões. Surge aqui em particular a sua atitude interpretativa na identificação com os “Fiéis do Amor” - atravancada e como que submersa no cripto-judaísmo no seguimento das teses de Maria Antonieta Soares de Azevedo e de Fiama Hasse Pais Brandão - face aos mal-entendidos convencionais, pode dizer-se sem hesitação, que rejeitam in limine a tese marrana. Partamos especialmente da ficção ou das suas narrativas e contos, assaz ambíguos, numa harmonia razoável, e, como vimos, do seu substrato literário implacável.  Sob todas as “revelações” multiplicadas o mundo se torna um aleph. Como já se sublinhou trata-se da letra inicial do alfabeto hebraico, indicação de que tudo começa - o que é capital -, significa, todavia, o ein soph, o infinito, a divindade. Será necessário referir que as letras gregas “alpha” e “omega” correspondem-se com as letras hebraicas “aleph” e “taw”.

[14]A kabbalah, à qual aludimos em notas anteriores, é, geralmente, traduzida como “tradição” e se refere a um ensino, conhecimento ou sabedoria do ocultismo, que foi recebida por Moisés no Monte Sinai e transmitido de “boca a boca”.  Tem-se partido da noção, que parece exacta, de que ao contrário da Thorá - que é revelação escrita - a kabbalah é evidentemente uma tradição oral. Como quer que seja, pensar como kabbalista quer dizer reflectir, nem pouco mais ou menos, de acordo com um sistema de conhecimento baseado no estudo esotérico da Torah e do Talmude, através do jogo de tensões, combinações e transliterações de letras e palavras. Mas a verdade é que, na kabbalah, cada letra do alfabeto é, por sua natureza, a emanação da própria divindade. E mantém o seu poder que é concedido de uma vez por todas pelo criador. Propõe-se, como se vê, um esquema, ainda, chamado “Árvore da Vida”, consistindo em dez esferas ou sephirot que emanam, contudo, da divindade, da primeira manifestação de Deus (Kether ou Coroa Real) até o plano terrestre (Malkuth ou Reino). Digamos que a kabbalah explica - é pois necessário afirmar - como a realidade começou a expandir-se do mundo do ein-sof (infinito), através dos mundos de adam kadmon (homem primordial), atzilut (nobreza), briá (criação), yetzirá (criatividade) e asyá (acção), para este mundo, assim nos parece, imediato. Conta-nos também como as almas simultaneamente, sistematicamente, “descem” e se “vestem” nos corpos actuais. Todavia, é altura de lembrar que a sageza e as doutrinas kabbalísticas foram introduzidas na maçonaria, até certo ponto, na Inglaterra em tempos elisabeteanos, irradiando conjuntamente nas lojas maçónicas (e, na simples medida em que foram penetradas por elementos especulativos). Finalmente, é importante repetir aqui que esta influência acabou, se preferirmos, por ser perpetuada através de ritos e tradições trazidas para França pelos maçons escoceses exilados no século XVIII. Nela descobrimos um corpo coeso de pensamento filosófico, mas de maneira satisfatória, que reconhece um conceito directriz generalizado de Deus, mas que rejeita uma definição específica de Deus e da fé. De notar que lemos recentemente - com grande relutância e sérias apreensões - alguma coisa mais do que a simples leitura metafórica-simbólica - dois ensaios de grande amplitude do Rev. Walter Begley: I) Biblia Cabalistica or The Cabalistique Bible with introduction, appendizx of curios and bibliography, London, published by David Nutt, 1903; 2) Biblia Anagramática or The Anagrammatic Bible, Edição do Autor, Londes, 1904. Este homem da Igreja e estudioso da Bíblia - no corolário de uma vis imaginativa - centrou-se principalmente no registo cristão em que a língua latina é usada mediante a aplicação da lógica anagramática aos textos mais apropriados e relevantes.

[15]É ver a tradução de Esther Cohen y Ana Castãno Zohar Libro del Esplendor.  A selecção, prólogo e notas ficaram a cargo de Esther Cohen (Azul Editorial, Barcelona, 1999). Há contudo um pequeno volume - em português - o melhor de entre muitas pequenas antologias que podemos apreender na escola de Gershom Scholem: O Zohar, O livro do Espendor, Editorial Estampa, Lisboa, 1994.   Bem diferentes foram, afinal, os estudos sobre o Sefer há Zohar de Gershom Scholem que recapitulam todos os outros. É importante destacar aqui As grandes correntes da mística judaica. Servimo-nos, geralmente, da tradução francesa Les grans courants de la mystique juive, Petit Bibliothéque Payot, Paris, 1983. Convém ler sobretudo os capítulos V e VI. Le Zohar: I Le livre et son auteur; II La doctrine teosóphique du Zohar, págs. 233-355. Ele coloca-nos perante o seu contexto histórico de um texto majestoso que é inclusive tido como “sagrado”. A este respeito - seguindo as observações de George Sassoom - podemos dizer com toda a propriedade que os textos foram escritos pela primeira vez no final do décimo terceiro século por Moisés de Leão. A circulação associadas a cópias - muitas ainda existentes - circularam, como se pode supor, até às primeiras publicações que ficaram disponíveis, em 1559, na Itália, - em Mântua e Cremona. Este processo não se restringiu a estas edições. Christian Knorr von Rosenroth publicou em paralelo o texto em latim Kabbalah Desnudata, porém de forma menos “padronizada”, dado que acrescentou “interpretações “próprias ao latim para tornar o texto mais místico na aparência.  Cf, por exemplo, The Kabbalah Decoded A new translation of the “Ancient of Days”. Texts of the Zohar by George Sassoom, edited by Rodney Dale, Duckworthe, London, 1978, pág. X. Mesmo assim, acentue-se, há quem negue que o Zohar (“irradiação” em hebreu) tenha sido escrito no século XI pelo rabino cabalista Moshé de Léon. Teria sido redigido, dizem-no muitos neófitos judeus, pelo rabino Shimon Bar Yojai (Rashbi), que viveu nos séculos II e III. Mas a verdade é que o seu único propósito é de ser, assim, incontestavelmente, uma espécie de guia espiritual. Como pensam muitos, deixa o campo livre para as pessoas (do ponto de vista não simplesmente individual) alcançarem a origem das suas almas, um caminho, bem entendido, que tem imediatamente, se acaso assim se pode dizer, 125 estágios.

[16]António Telmo não se afasta, no entanto, tal como Sampaio Bruno, de uma investigação formal, exímia, o que é certo, em torno à doutrina do mundo do tikkun ou restauração, o que, concretamente, implica a leitura das metáforas luriânicas (retratação, ruptura dos vasos, elevação das centelhas). Insistimos - no decurso deste curto estudo - em que a doutrina controvertida de Isaac Luria é, de bom grado, a do tsimsun ou da concentração ou contração. Aí o primeiro acto do en-sof - do ser infinito - foi então - na sua visão pertinente - o de retirar-se explicitamente de um espaço místico que lhe pertencia para poder ser ocupado por o mundo - tese aparentemente desconcertante - por si criado. É extremamente instrutivo o conceito de que o universo deixa de ser uma “emanação” para ser uma “contração” divina. Impossível iludir a noção misteriosa de “quebra dos vasos” - donde se funda a origem do mal - que levou Isaac Luria da “Escola de Safed” à doutrina do tikkun olam, reparação do mundo. Também aqui o espírito anseia por retornar à unidade com a “fonte”, tornar-se parte de Deus novamente.

[17]É fácil compreender a excepcional estima que tinha pela autora de Corografia Sagrada, reclusa e de outro mundo, onde tendem a coexistir a poética, a mística e a metafísica, para confirmar uma filosofia da graça e da liberdade - mescla de uma cristologia em correlação com uma pneumologia - , mas, antes de tudo, uma filosofia dissimuladamente esotérica, na aderência à apokatastasisis origeniana, - e até uma visão histórico-salvífica - escathon -, tendo António Telmo desempenhado o papel de “sage” na zelosa promoção da filosofia tão só como, por exemplo, de “exercício espiritual”.

[18]O tipo mais óbvio do “fim dos tempos” - escathon - comum a todas as “religiões políticas” - para lembrar o ponto de vista de Eric Voegelin - não virá apenas, como poderíamos supor, do decreto divino, mas justamente do esforço de uma minoria “consciente” - e sabendo-se que poderá consumar-se, inclusive, num futuro próximo e determinado, uma solução temporal e concreta para o problema do mal. Este mesmo tipo de doutrinas políticas - nos quais se ressurgiu o milenarismo - merecem, deste modo, uma menção especial nas obras de Jakob Taubes, Jacob Talmon, Karl Lowith, Norman Cohn, etc.. Mau grado algumas dificuldades, pode aceitar-se - seguindo Eric Voegelin - que o ideal trans-histórico da gnose - no ponto de apoio de uma espécie de bricolage erudita numa direcção precisa ou num sentido particular que nos remete aos estudos de Hans Jonas, Henri de Lubac, Norman Cohn, Karl Lowitth, - enquanto raciocínio complexo articulado a uma grande narrativa - é uma revelação escatológica. Assim se funda o messianismo - o esquema do reino messiânico - e profetiza, neste contexto, a vinda iminente de um messias, de um imperador dos últimos dias, ou delimitado naquilo que denominamos o milenarismo ou quiliasmo. 

[19]Lembrar-nos-emos que a categorização é fundamental para o pensamento. E com efeito o mecanismo que a realiza é a analogia. Diríamos, simplificando, que a analogia é um mecanismo que permite a percepção implícita do "mesmo" entre duas situações diferentes. Destaque para o notável contributo e exemplo reflexivo de Maurice Debaisieux Analogie & symbolism, Étude critique de l'analogie comparée au symbolisme dans la connaissance métaphysique et religieux, Gabriel Beauchesne, Paris, 1921.

[20]Les grands arcanes de l`hermetisme occidental, Éditions du Rocher, Monaco, 1991, pág. 10.

[21]Nós podemos reforçar esta observação também com o facto de que, em certa medida, “revelação, iniciação, técnicas de purificação interior, desenvolvem os poderes secretos do homem e garantem, post mortem, a sua salvação ou a sua libertação”. Ibidem, pág. 11-12.

[22]É legítimo pensar, por exemplo, que a Torah - do verbo hebraico instruir e o nome luz -, mais do que um livro histórico ou, consequentemente, um livro moral, é, pois, de facto, em contrapartida, um “método” ou (registando-se a indicação) de um “guia” para a correção do “ego”. O termo “luz” na kabbalah é usado, de maneira peremptória e ampla, como “força” que corrige o homem e, por sua vez, no seu substracto “prazer” que preenche o homem que corrigiu o seu “ego”. Seja qual for a visão adoptada nunca poderemos omitir o exame de alguns pontos essenciais da obra de António Telmo que é considerada, a justo título, um exemplo de puro kabbalismo (ciência dos signos e de seus correspondentes).  Digamos que é necessário levar em conta que se alicerça numa mística (conhecimento experimental, de modo geral, de Deus). Essa consideração da experiência verdadeira - mística - supõe o êxtase (a tomar para si uma “plenitude” mediante a experiência do inefável). E onde identificamos, pois, o símbolo que conota o místico: a linguagem (não verbal) - edificante - do silêncio. No que diz respeito à kabbalah (da palavra hebraica QBLH, do verbo leqabel = “receber”, “dar boas-vindas”) podemos referir-nos aqui-e-agora à sabedoria “esotérica” dos rabinos judeus medievais.  Na prática, são mais antigas as doutrinas (a QBLH ou QaBBaLah) sobre as “coisas divinas” (teosofia) ou cosmogonia e antropologia, que foram fundidas numa teologia, somente após o cativeiro dos judeus na Babilónia. Pode-se, pois, defender que a QaBBaLaH original é idêntica à doutrina secreta dos antigos caldeus, os kadesim, astrológos sábios e profetas da Babilónia e também inclui antecipadamente grande parte da sabedoria persa ou “mágica” (magh, no antigo persa, significa “sábio”, sensato). Subscrevendo esta definição, estaríamos inclinados a assinalar que, a sua verdadeira origem, no entanto, é encontrada já, em si mesma, nas revelações místicas, baseadas em experiências transcendentais do divino, depois transmitidas da “boca ao ouvido” (ou seja, do mestre ao discípulo) dentro de uma tradição esotérica desenvolvida através de escolas místico-mistéricas. Didacticamente seria pois legítimo o uso do formulário QBLH ou Qabbalah (Kabbalah) para nos referirmos à experiência mística original e sua transmissão oral, e Cabbalà para indicar, ao invés, a tradição escrita como aparece acima de tudo nos textos dos cabalistas medievais e renascentistas. Aliás, compreende-se que a Cabbalà, portanto, ou “tradição não escrita”, tinha que ser implicitamente uma ciência real básica directa e contínua. Desse vínculo singularíssimo à kabbalah teórica junta-se - nesse espaço correspondente, se possível, - um ramo prático catalisante interessado nas 21 letras do alfabeto hebraico (e, em especial, de acordo com os métodos de Gemara, Notaricom e da Temurah) que não é isento de sons (sílabas, palavras), números e, como que os protótipos, ideias (linguagem ideogramática). Podemos dizer que a cabala, esforçadamente, tem representado - como regra geral - a corrente mística da experiência religiosa hebraica.  Poderemos, pois, notar, na verdade, que os primeiros verdadeiros cabalistas foram os tanaim, os sábios iniciados judeus que apareceram em Jerusalém no início do terceiro século antes da era cristã. Assim também se pode dizer – face ao que estamos examinando - que os livros de Ezequiel, Daniel, Enoch e o Apocalipse - e uns tantos outros assim concebidos - são obras (por decerto privilegiadas) puramente kabbalísticas. Convém ter presente o livro do Genésis que pode ser lido em “chave” cabalística. Hoje, dir-se-ia, que a Torah pode ser considerada uma Qabbalah que Deus “revelou” a Moisés e, em qualquer caso, como a própria mensagem contida nessa recepção (“primeira tradição” ou “tradição original”).

[23]Do Encoberto (Mito Sebástico) in As Linhas Míticas do Pensamento Português, Fundação Lusíada, Lisboa, p. 58.

[24]Observamos o filósofo na encruzilhada da via propriamente inaugurada por Pitágoras. A metafísica é, tornemos a frisar, para António Telmo, o conhecimento supremo, assim, porque é igual a revelação.  De facto, porém, o conhecimento metafísico, no sentido estrito, não pode ser - como anotava René Guénon - divulgado nem na íntegra nem directamente. Deste ponto de vista, e por conseguinte, considera-se que cada religião fornece, como já vimos, as chaves e as regras de exegese metafísica.  Em todo o caso, lembremos que António Telmo foi, peremptoriamente, um autor em que a vocação estética e hermenêutica se autonomizaram. Podemos até acrescentar: ficou preso e acorrentado à interpelação poética e do pensamento e, portanto, ao seu dinamismo bergsoniano e, sobretudo, à inspiração gnóstica, trans-fenomenal. António Telmo postulou, naturalmente, a transformação iniciática do ser humano. Mas compreende-se também o motivo por que sublinha a realização do ser pelo conhecimento (significa a distinção entre conhecimento imediato e conhecimento mediato, o mesmo é dizer, entre conhecimento efectivo e conhecimento simbólico).  Esta inclinação natural pelo pensamento verdadeiramente “iniciático” e tradicional foi acentuada pelos seus estudos, em profundidade, da kabbalah judaica e do esoterismo islâmico persa-iraniano.  A este respeito, é importante notar os “apports” (que se devem reter por se enquadrarem de forma personalizada) de René Guénon, Oswald Wirth, Fulcanelli,  Julius  Evola, Raymond Abellio, Gershom Scholem e Henry Corbin.

[25]Convém citar aqui René Guénon: Les états multiples de l`être, Guy Trédaniel, Éditions Véga, Paris, 1984.

[26]Isso mesmo nos lembra Jesué Pinharanda Gomes no seu extraordinário ensaio A “Escola Portuense” - Uma Introdução Histórica-Filosófica, Caixotim, Porto, 2005. Nunca será demais voltar à sua tese que pressupõe uma teoria do vínculo permanente e ininterrupto - do qual emergem e coexistem entre 1850 e 1936 - como resultado da boa diferenciação plural - um conjunto de espiritualidades tí(tó)picas. Esse vínculo configura uma estrutura dinâmica filosófica que “reflecte” ou “reproduz” esquemas referenciais e constantes variáveis no campo reflexivo (na bivalência ou ambivalência – tendo em conta a delimitação de um corpus matriciado no Porto).  Outros estudos, por não considerarem a teoria dos vínculos - internos - exteriorizados e (re)introjectados - chegam a resultados inconsistentes - ou não conclusivos -, pois  recusam compreensivelmente o assinalamento de um denominador comum. Veja-se p. e. de Afonso Rocha A Escola Portuense em Questão, Porto, Universidade Católica Editora – Porto, 2019. Como podemos observar, o estudo em causa e a tese enunciada - não isenta de riscos dado que permanece fechada em si própria - pode-nos abrir novos caminhos à compreensão do problema. É interessante agora considerar como a actividade múltipla e infinitamente variada da “Escola Portuense” (na sua descendência) pode ser consolidada (de uma vez para sempre) num modelo de unidade absoluta e indivisível? E que pode ser descrito como enraizada num ou outro traço particular de renovação filosófica e de contacto estético de cunho próprio? A verdade é esta: aquilo que correntemente qualificamos de a “Escola Portuense” era e é ainda, como já dissemos, uma filiação “esotérica”. Desenvolveremos, eficazmente, esta ideia lá mais para diante. Para compreendermos onde reside a originalidade de escola portuense a partir de um reportório de autores sucessivamente evocados e estudados  e a estudar -  numa grelha de análise sábia e inspiradora  - que se quer manter e mesmo reter - ver  o livro A Pluralidade na Escola Portuense de Filosofia - O Pensamento Moral e Político de Newton de Macedo de Pedro Baptista (INCM, Lisboa, 2010). Este nosso amigo recentemente falecido manteve, de facto, a noção tradicional e de análise fenomenológica de Pinharanda Gomes - servindo-se do modelo teórico da “Escola Portuense” - para o completar e construir - e outro não existe - um esquema explicativo mais geral, que é, em última instância, a do seu pluralismo e diversidade, ampliando assim o quadro interpretativo. 

[27]Imediatamente se adivinha a imensa amplidão do assunto. Quando se fala do campo iniciático e mágico, é preciso ter presente uma justa noção da atitude “oculta”, no recurso constante à prudência, extrema reserva e a absoluta discrição. Aplicam-se aqui ainda os exemplos caricaturais muitíssimas vezes associados ao gosto vã de falar obscuramente, ex catedra e autoridade, onde prevalecem as vaidades e bagatelas  e, portanto, os discursos “em si” ostentatórios e infalíveis – com as consequências que daí decorrem - que, sob uma forma ou outra, são um invólucro vazio. Trata-se seguramente de nos elevarmos e espiritualizarmos, livrando-nos, em verdade, da opacidade da matéria. Podia falar-se, aliás, do que nos incumbe à depuração, convenhamos, tendo em conta as múltiplas moradas, os resquícios e os desvãos da história?

[28]Salientamos - como “contraponto” - predominantemente filológico e da descrição linguística-estrutural - um dos livros mais notáveis e insubstituíveis - “Estilística da Língua Portuguesa” de M. Rodrigues Lapa, Coimbra Editora, Lda., Coimbra, 11ª edição, Revista pelo Autor, 1984.

[29]   Considera-se aqui, neste sentido, a plataforma, compreendida num sentido lato, das três tradições -  judaica, cristã e islâmica -,  um puzzle, dado, - e, a dizer a verdade, sobre um fundo linguístico e filosófico, por si só, de casuística, de espiral dialéctica e de valências particulares  (através de canais diferentes e - como veremos - pelo cruzamento de diferentes portadores), onde faz sentido re-lembrar o paideuma da reliosidade peninsular. Dessa maneira vem a resultar na tematização “à la limite” - fundada, 1 primo, na observação da arte de filosofar e, 2 secundo, numa interpretação definida dos seus parâmetros crípticos e operativo, teológico e teo-antropológico, - atenta adequadamente à natureza das conexões entre as ideias e resultados de seu pensamento aberto à transcendência oriundos da tradição rabínica, patrística e corânica -  bem como da relação bi-unívoca da palavra poética e literária à palavra filosófica “estilizada” - aceitamos, assim, pois, que a pistis, a gnosis e a sophia encontram o seu ponto de equilíbrio. É também digno de nota que tenha abordado a maçonaria, não apenas o que é o fulcro-originário insubstituível e sin(cr)tético -, que nos chega trazida do fundo dos séculos -, mas, inclusive, progressivamente, o universo “iniciático” (ex. (trans)figurações de pormenor). É inútil discutir aqui, em pormenor, a iniciação, a singularidade do iniciado, que em virtude do ritual, ascende ao mundo superior para se unir à totalidade dos seres, à luz divina da sabedoria.

[30]Do Encoberto (Mito Sebástico) in As Linhas Míticas do Pensamento Português, Fundação Lusíada, Lisboa, p. 55.

[31]“O símbolo - na observação de Gilbert Durand  - é epifania de um mistério”. Cf. La imaginación simbólica (2a. ed.). Biblioteca de filosofía. Buenos Aires, Madrid: Amorrortu editores, 2007.

[32]Tocamos aqui no paradoxo fecundo da noção de heresia, tomando este termo no sentido original de aíresis, que           indica o facto de adoptar justamente per se uma determinada opinião ou ponto de vista para sustentar algo. Sucede também que a sociedade moderna exige que o indivíduo faça uma escolha (sentido primitivo da palavra heresia) em parte deixando a adesão passiva à sua tradição cultural e religiosa, para optar (sobre qualquer assunto) por uma das religiões (e culturas) da sociedade pluralista.

[33]Evidentemente que a astrologia a título individual se enuncia, de facto, no mapa de nascimento. O astrólogo, acolhendo métodos mais seguros e mais acurada lógica, tem, em verdade, a oportunidade de estudar (não obstante) todo o quadro das funções, faculdades e características eventuais da personalidade de uma pessoa (nas gradações sempre do alfabeto astrológico -  assim e em resumo -  parte-se da elaboração de um modelo genérico e variável tendo por base o signo zoodiacal, recorrendo a certos dados, indícios, diferentes e complementares, e procedendo-se, principalmente, às deduções fornecidas pelos diversos aspectos dos planetas). Posto que a literatura teosófica e ocultista opõe, não poucas vezes, o termo personalidade a individualidade. Com efeito: ao primeiro de facto define a natureza sempre mutável e terrestre do homem, enquanto o segundo refere-se à entidade relativamente permanente e espiritual (ou essencial). Pode-se, certamente, falar-se de um corpo doutrinal secreto, do simbolismo hermético e do simbolismo astrológico onde seria de apreciar o seu gosto pela astrologia - como esboço - exaltando a relação da cronologia dos acontecimentos históricos com os trânsitos astrais? Tem-se a consciência clara que a astrologia parece ser formalmente, como se depreende da mensagem colhida pela corrente dos tempos a que aludimos anteriormente, - no seu modus operandi - a sistematização da filosofia cosmológica. Por detrás da teoria astrológica - tão fundamente eivada de lógica e de metafísica - assente nos decanos e nas múltiplas (sub) diviões do zoodíaco - patenteia-se - conforme terminologia de Synesius - um determinismo cósmico. A Astrologia, Lisboa, Livraria Clássica Editora de A.M. Teixeira, 1917, p. 32-33. Mostra, portanto, sinais de vir a declarar-se ciência - opinativa ou declarativa? - é acolhida como articulação de um método oculto - ou não - que eventualmente leva a um levantamento de um quadro (estabelecido dentro de certos parâmetros) em que serão projectados e reconhecidos os próprias posições e conjunções astrais. Poderíamos iniciar o seu estudo - reflectidamente - lendo cada um dos parágrafos do livro - que temos diante de nós e para o qual remetemos ao leitor - Ciro Discepelo Nuova guida all`astrologia, Analisi e interpretazione del tema natale, Armenia, Milano, 1998.

[34]Nada mais difícil que organizar as obras completas de António Telmo - esse extraordinário mestre e amigo - de que fomos ouvintes íntimos (noviços) assistindo (como discípulos inofensivos), com frequência, a magistrais prelecções. E, procedendo assim, para nós, revejo-o erradio e exorbitante, no seu ensino acroamático (ou esotérico).  De resto, ao que já assegurei, o nosso amigo Pedro Sinde devia-nos levar directamente do Porto a Estremoz (muitos fins de semana, sem desvios ou retrocessos, à conquista do bom convívio intelectual).  Outro companheiro afectuoso e filial - Pedro Martins - repetimos - não fez mais, então, após a morte de António Telmo - ocorrida em 21 de Agosto de 2010 - do que recompilar com rectidão - de forma benfazeja e com maestria - as suas obras - (re)descobrindo inéditos e “dispersos” - e apreendendo “de diversos lados” artigos que, de modo geral, voltam a ser objecto de consideração.  Contra este esquecimento de uma opera subtilíssima na contra-corrente da nossa tradição filosófica, de Francisco Sanches a José Marinho, no enfoque do processus histórico português (os elementos conscientes e subconscientes do espírito) e seus significados simbólicos (em todos os seus detalhes) que gostaria de render homenagem com este texto.

[35]Sistematizar o pensamento e as ideias supostas de António Telmo não é uma empresa fácil. Numerosas leituras mostram a importância e a configuração de uma imagem da filosofia - como prescrições in saecula - ao abrigo de um peregrinar incansável - que se casa com uma kabbalística veraz. Essa versatilidade de inspiração, estende-se, ao que já indicámos, à versatilidade de forma.

[36]Creio que se poder dizer que a alquimia se situa ao nível de uma “religião-sabedoria” e que se presenta ou opera através  de uma inevitável concepção criadora, tratando de compreender e conhecer o Espírito e a Criação.

[37]  Profeta vem do grego prophetes, em que pro significa “por” e phetes “falar”. Assim, no grego original, um profeta é alguém que “fala por” outra pessoa. Este sentido é fiel ao significado original hebreu.

[38]Ilustrativo, a este propósito, é, por exemplo, no conjunto dos seus originais, o seu trabalho mais divulgado e de elaboração sistemática História Secreta de Portugal. Nele a filosofia, mercê de um estilo cintilante, associa-se à mente clássica e ao tipo de discurso da clarividência, o messianismo que, mais ou menos acentuadamente, sempre nos caracterizou. Onde se entrecruzam a poesia, poética e poemática ou de apego às questões substantivas arquétipos ou imagens primordiais ou mitologemas (o re-nascimento iniciático e simbólico), porém, a cultura grego-latina gnóstica hermética, o neo-pitagorismo, a kabbalah judaica, bem como a doutrina persa-sufi.

[39]Sub - segundo Manuel Ferreira Patrício - é uma preposição muito importante no elemento do pensamento de António Telmo (Testemunho sobre António Telmo. Passos da Memória in Cadernos de Filosofia Extravagante: António Telmo, Zéfiro, Sintra, 2011, p. 123).  Consideramos aquilo que está sob (sub). Várias vezes foi posta em questão – acto contínuo - o aflorar da realidade subtil que é, como se pode congruentemente dizer, a vida do pensamento.

[40]Recordemos, a este respeito, o extraordinário livro-conversação - na mais chã das linguagens - “La filosofia como modo di vivere conversazioni com Jeannie Carlier e Arnold I. Davidson, Einaudi, Turim, 2008. Seria pois necessário destacar alguns dos seus mais sugestivos e primorosos ensaios, tais como Exercices Espirituelles et Philosophie Antique, Albin Michel, Paris, 2003; Che cos’è la filosofia antica, Einaudi, Turim, 1998; The Veil of Isis - Essay of the History of the idea of nature, Harvard University Press, Massachts, 2006.

[41]Pitágoras - segundo F.M. Cornford - era tido como um profeta do Apolo mântico e o hierofante de uma revelação sagrada (Principium Sapientae - As origens do pensamento filosófico grego, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2ª edição, 1981, p. 180). Mais: não escreveu nada, tendo sido os neopitagóricos que deram a conhecer os seus ensinamentos, embora já Heródoto e Aristóteles tivessem feito referências a um tal Pitágoras taumaturgo (fazedor de prodígios). Pitágoras - citado acima - foi um inventor de um teorema de geometria, um formulador das leis da teoria musical, e um enunciador de aforismos misteriosos. Um aspecto importante é a sua filosofia da revelação e sistema irredutível ao cristianismo - e a magnitude do ensino religioso.  Assim, a palavra mesma de “filosofia” foi forjada por ele; os seus precursores primitivos eram conhecidos como sophoi - “sábios” -, mas Pitágoras fez-se chamar philosophos -amante do saber” - reconhecido pelo seu amor a um ente superior a todas as coisas.  Os dados indicam que mais venerado que Pitágoras foi o legendário Hermes Trismégisto, Hermes, “três vezes grande”. Sabemos que os dois grossos volumes atribuídos a Hermes -  Asclepius e o Corpus Hermeticum -  são especialmente esclarecedores, e pelo simples facto de constituírem uma “enciclopédia oculta” tratando - no dizer de Jamie James - sistematicamente de astrologia, dos poderes secretos das plantas e dos minerais, dos talismãs para convocar espíritos aéreos e demónios do mundo subterrâneo (e magia para os afastar), bem como da literatura filosófica duma casta pitagórica particular”. Cf. La Musique des sphères, Editions du Rocher, Mónaco, 1993, pág. 141. Destaque, ainda, para o curioso e clássico livro - de que possuímos a edição castelhana - de Amadeo Dacier (1657-1722) - Pitágoras - Las revelaciones de sus símbolos ocultos y los Versos Dorados, Editorial Humanitas, Barcelona, 1999.

[42]A esse respeito ver Pythagorean Knowledge from the Ancient to the Modern World: Askesis, Religion, Science Edited by Almut-Barbara Renger and Alessandro Stavru, 2016, Harrassowitz Verlag -Wiesbaden 2016. Há no livro de Flisha Scott Loomis (1852-1940) - professor de Cleveland, Ohio (EUA) - “The Pythagorean Proposition” - algo de importante mas que deve ser particularmente acentuado. Esquecemos demasiado facilmente que este matemático coleccionou durante mais de 20 anos, de 1907 a 1927, demonstrações deste teorema, agrupou-as e organizou-as num livro, ao qual chamou A Proposição de Pitágoras. A primeira edição, em 1927, continha 230 demonstrações. Na segunda edição, publicada em 1940, este número foi aumentado para 370 demonstrações. Depois do falecimento do autor, o livro foi reimpresso, em 1968, pelo National Council of Teachers of Mathematics. O Professor Loomis classifica as demonstrações do Teorema de Pitágoras, a que já nos referimos, em basicamente dois tipos: provas “algébricas” (baseadas nas relações métricas nos triângulos retângulos) e provas “geométricas” (baseadas em comparações de áreas).  Ver The Pythagorean Proposition, Its Demonstrations Analyzed and Classified and Bibliography of Sources for Data of the Four Kinds. of "Proofs”, Classics of Mathematics Education, 1968, The National Coumcil of Teatchers of Mathematics , Inc.

[43]Passamos agora, é certo, à chamada notação algorítmica ou um programa? O que nos dias de hoje chamaríamos os parâmetros de um procedimento (catalisante ou perscrutante) imergindo portanto em detalhes (sem perder de vista as especificações originais)? E onde não faz diferença, aparentemente, se um argumento é in limite uma variável, uma constante ou uma expressão; o que importa é que tenha valor, e assim por diante? Assim também nós: nessa unidade plural - que nos submerge - que significa sobretudo meditar, sem cessar, sobre a confluência das três grandes tradições monoteístas: hebraica, islâmica e cristã. Digamo-lo, desde já, e tornaremos a dizê-lo continuamente: trata-se de um filósofo metafísico - heterodoxo, sem vacilações, - comprometido, em simultâneo, com o pensamento “esotérico”, por isso mesmo, distintivo.