VOZ PASSIVA. 61

21-08-2015 00:33

António Telmo no convívio do Grupo da Filosofia Portuguesa

João Ferreira

[João Ferreira, no Porto, em Dezembro de 2014]

 

António Telmo no convívio do Grupo da Filosofia Portuguesa

João Ferreira

 

[...] "Meu caro João Ferreira, que memórias guarda da tertúlia nos cafés de Lisboa nos anos 50 e 60? Lembra-se de ter visto o Telmo por lá? Como era o relacionamento entre Álvaro e Marinho e destes com os discípulos? Recorda algum episódio em particular? O seu testemunho ser-nos-á precioso!..."

 Carta de Pedro Martins a João Ferreira. Em 16 de julho de 2015.

 

Pedro Martins, coordenador da edição das Obras Completas de António Telmo e autor de Um António Telmo publicado neste ano de 2015 pede-me um depoimento sobre António Telmo na tertúlia filosófica presidida por Álvaro Ribeiro e José Marinho em alguns cafés de Lisboa pelos anos 50 e 60. Naturalmente meu depoimento será muito limitado e apenas a versão daquilo que pude testemunhar. Outras pessoas do tempo poderão completar minha versão.

Para nos situarmos  no tempo lembro que regressei da Itália em dezembro de 1953 e fui residir em Leiria onde estive até junho de 1963. Ia a Lisboa algumas vezes ao ano, e aproveitava para me encontrar com meus amigos do Grupo da Filosofia Portuguesa no café Palladium.

Em 1954 publiquei na revista "Colectanea de Estudos" Temas de cultura filosófica portuguesa. Sobre a posição doutrinal de Pedro Hispano e enviei uma separata do ensaio a Álvaro Ribeiro. O Mestre se entusiasmou com o que leu sobre Pedro Hispano, e publicou no Diário Popular um comentário falando do trabalho, de Pedro Hispano e do aristotelismo em Portugal. Me convidou a visitar o Café Palladium para conhecer o grupo da Filosofia Portuguesa na próxima vez que fosse a Lisboa. Aconteceu que tive de ir a Lisboa nessa altura, e então escrevi ao Álvaro e marcamos o encontro no Palladium. Bem benevolente, Álvaro me  apresentou a José Marinho, a Orlando Vitorino,que eu já conhecia, a Afonso Botelho, a António Quadros, a António Braz Teixeira e aos demais componentes do grupo. Não me lembro se nesse primeiro encontro estava António Telmo, mas é bem provável que sim pois ele sempre acompanhava seu irmão Orlando. Havia outros membros jovens na tertúlia : Fernando Morgado, Luis Zuzarte, Francisco Sottomayor, entre outros. A impressão positiva que recolhi foi que Álvaro Ribeiro e José Marinho repartiam a liderança com a autoridade de mestres e sábios inteligentes.Mantinham-se em seus lugares como pares de todos os outros, deixavam fluir as temáticas e os debates. A presença deles estimulava os jovens. Álvaro Ribeiro ouvia e dialogava. José Marinho tinha como característica acompanhar, com um olhar muito vivo, a intervenção de cada um nas discussões. Por vezes iam também ao café figuras ilustres da amizade do grupo sobretudo leonardistas ou antigos alunos da Faculdade de Letras do Porto. Numa de minhas visitas ao Palladium encontrei José Sant'Ana Dionísio, que havia publicado em 1953, pela Seara Nova, O Poeta essa ave metafísica. Álvaro Ribeiro sugeriu-me que levasse para a tertúlia um comentário sobre o livro. Sant'Ana Dionísio compareceu e houve um interessante debate sobre o livro.

O que deve ser ressaltado é que grande parte dos componentes do grupo participava não apenas dos debates no café, mas de publicações, de conferências e debates que se desenvolviam na área de interesse do grupo. Delas participava António Telmo.

Entre esses eventos históricos que intensamente se produziram estão os Teoremas de Teatro, que acompanhei de 1955 a 1957 no Teatro Trindade e que eram coordenados por Orlando Vitorino e Azinhal Abelho. Antônio Telmo participava do debate que era aberto ao público após a apresentação dos Teoremas de Teatro

A partir de 1957, o Grupo da Filosofia Portuguesa entrou numa nova fase. António Quadros publicou o jornal "57" e com ele nasceu naturalmente um novo movimento cultural dentro do grupo da Filosofia Portuguesa. Foi publicado nesse ano de 1957 na revista Itinerarium(Ano III, n. 3, pp.221-259) Fundamentação geral da Filosofia Portuguesa minha primeira manifestação escrita sobre debate da Filosofia Portuguesa. Nesse tempo quando era ainda muito escassa a bibliografia sobre o assunto, o ensaio serviu como guião de um debate sobre Filosofia Portuguesa no Centro Contemporâneo de Cultura, no Largo do Mitelo, 1, em Lisboa. Telmo tinha então 30 anos. Seu irmão Orlando Vitorino entusiasmado com a grande oportunidade em debater um problema que ainda era conhecido só em ambientes restritos, pegou o número da revista Itinerarium, e colocou-o aberto na mesa da presidência  do Centro, convidando o público a discutir os principais pontos que ali eram desenvolvidos. A sala estava cheia. Havia personalidades ilustres interessadas no debate. Entre elas lembro a figura de Orlando Ribeiro(1911-1997), fundador do Centro de Estudos Geográficos, "o geógrafo português do século XX com mais projeção internacional". António Telmo participou do debate também, juntamente com outras figuras do grupo do café Palladium. Entre eles, Álvaro Ribeiro, José Marinho, Afonso Botelho, António Quadros e outros. Em rigor, este seria o primeiro debate público, fora dos ambientes de café e das páginas do livros de Álvaro Ribeiro, e dos textos dos componentes do grupo da Filosofia Portuguesa.

Outro evento que está documentado e que teve a participação de António Telmo juntamente com os principais membros da Filosofia Portuguesa aconteceu em fevereiro de 1956. Em carta de 29 de janeiro de 1956, Álvaro Ribeiro escreve a João Ferreira em nome do grupo da Filosofia Portuguesa para ir a Lisboa para participar de uma programação preparada pelos amigos do grupo da Filosofia Portuguesa. De acordo com a carta de Álvaro Ribeiro, da  programação fazia parte, em primeiro lugar, um colóquio entre meia dúzia de amigos escolhidos às 18 horas em casa do Dr. Afonso Botelho. Em seguida, haveria um jantar na residência de Afonso Botelho e às 22 horas a conferência A Saudade e seus problemas para os sócios do Centro Nacional de Cultura, com  discussão, no final,  para esclarecimentos.Álvaro Ribeiro acrescentava na carta "Pedimos que nos apareça munido de todos os seus trabalhos inéditos porque queremos fazer uma proposta de edição da conferência e de outros escritos menores". Paralelamente à carta de Álvaro Ribeiro recebi também uma carta de Afonso Botelho, no dia 2 de 1956 me convidando para jantar no dia da palestra ("para a qual já partiram os convites") que haverá no Centro Nacional de Cultura. A conferência A Saudade e seus Problemas foi realizada na Quinta-feira que se seguiu ao dia 4 de fevereiro. Afonso Botelho, Antônio Telmo, seu irmão Orlando Vitorino, Antônio Quadros, Álvaro Ribeiro, José Marinho, António Braz Teixeira,entre outros estiveram no centro de todo o debate que se constituiu em torno da temática apresentada. A presença de João Ferreira no Centro Nacional de Cultura celebrava a reabertura do Centro que havia sido inaugurado em 1952 com uma conferência de Teixeira de Pascoaes.

Há outros eventos a relatar que envolvem integrantes  do Grupo da Filosofia Portuguesa e António Telmo. O mais importante talvez seja um evento quase desconhecido e pouco badalado mas muito real que aconteceu em 1956. João Ferreira era então professor de Filosofia dos estudantes do Curso de Filosofia do Seminário Franciscano de Leiria. Organizou para seus alunos um Curso de História da Filosofia Portuguesa (cf. António de Sousa Araújo. "João Ferreira e o seu Cruso de História da Filosofia Portuguesa". In: Itinerarium, ano XLVI, nº 168, setembro-dezembro, 2000, pp.389-480). A notícia deste curso interessou Álvaro Ribeiro e os amigos de Lisboa. Aos poucos, João Ferreira trabalhou também por estabelecer um vínculo mais profundo de Lisboa com Leiria. Com a anuência e colaboração do padre José Alves Pereira foi possível organizar uma conexão envolvendo palestras e presenças importantes idas de Lisboa. Segundo carta de Afonso Botelho que falou em 27 de abril de 1956 sobre "Situação do conhecimento em Portugal", o conferencista dizia:"Devo levar comigo os amigos daqui e por essa razão teremos que voltar no mesmo dia." Na verdade, Afonso Botelho e seus amigos idos de Lisboa compareceram em peso no salão do convento da Portela em Leiria. Além do doutor Luís Filipe, amigo de José Marinho, e de Afonso Botelho, conferencista, foram de Lisboa: José Marinho, Álvaro Ribeiro, Orlando Vitorino, Antonio Telmo e outros elementos do Grupo da Filosofia Portuguesa, e ainda, como surpresa,  dois ícones da Renascença Portuguesa: Augusto Casimiro e Mário Beirão, autor de "O último Lusíada", parceiro de Pascoaes em A Águia e na Renascença Portuguesa. Tudo isso nos dava a sensação de que estávamos numa  segunda versão simbólica da Renascença Portuguesa, desta vez, porém, convergindo das Letras para a Filosofia. Na Carta de 20 de maio de 1956, depois da palestra em Leiria, Afonso Botelho agradece a recepção em Leiria:"Foi-me gratíssimo encontrar na simpatia humana com que nos receberam a marca dessa fundamentada esperança". "Os nossos comuns amigos cá vão, acabando os seus livros e eu a animá-los a meterem-se em novas empresas para as quais conto com o concurso do convento da Portela." Afonso Botelho confidencia a João Ferreira: " Que diz a uma História da Filosofia Portuguesa colaborada por todos ou pelo menos uma História da Filosofia Contemporânea?". Mais tarde Orlando Vitorino falará também, por sua vez, a João Ferreira sobre uma História da Filosofia Portuguesa e convida-o a escrever a parte medieval até ao século XVI. Afonso Botelho, em carta de 25 de agosto de 1956 fala de um Livro sobre Pensamento português e fala de um capítulo reservado para João Ferreira: "O pensamento português no ambiente da Escolástica. Pedro Hispano e sua influência"[...]. E fechava a carta, dizendo: "Todos os Amigos que estão em Lisboa lhe enviam cumprimentos".

Lembrando o encontro em Leiria, José Marinho comentava em 1963, numa carta a João Ferreira: "Desde que o simpático dr. Luís Filipe me levou à Portela ando com desejo de lá voltar. Vamos a ver quando poderá efetivar-se. Se vier a Lisboa peço-lhe que não se esqueça de me dar sinal".

Estes excertos de arquivo e vestígios de memória mostram alguns dados importantes relativos a atividades do Grupo de Filosofia Portuguesa em seus primeiros tempos de constituição e da ligação de António Telmo com o Grupo.

 

31 de julho de 2015