VOZ PASSIVA. 145

02-05-2025 08:51

Brincar aos Polícias e Ladrões

(Em dia de aniversário de António Telmo)

Risoleta C. Pinto Pedro

Um dos encontros dos biógrafos de António Telmo com vista à futura biografia, deu-se com dois companheiros de escola, em Arruda, de cujos testemunhos destaco um, particularmente comovente:

«O Tó era o melhor, era bestial, eu dava-me muito bem com ele. E reitera: não há dúvida, o Tó Vitorino foi sempre o que andou mais comigo. O Tó era uma criança de quem toda a gente gostava.»

E a que brincavam? À fisga, à bola, ao pião, ao botão… Outras vezes iam até à Pipa, o rio que passa por ali abaixo onde tomavam banho nus. Brincavam aos polícias e ladrões todo o serão, até às onze da noite. O que era, na época, para as crianças, muito mais seguro do que estarem hoje sozinhas frente a um computador, no isolamento e no silêncio do quarto e expostos… a todo o tipo de perigos. Cada um, ora desempenhava o papel de polícia, ora o de ladrão, e esta narrativa fez-nos viajar rapidamente até a “Um Conto Policial”, cuja história nos dispensamos de contar, mas de que não resistimos a citar: «todo o polícia tem em si um ladrão». A tão prematura aprendizagem do olhar isento e não unívoco.

Os Contos de António Telmo são alguns dos mais curiosos documentos, difíceis de classificar, entre a ficção, a memória biográfica, a reflexão filosófica, a crítica literária… E neles, como exemplificamos acima, encontramos um pensamento complexo em que apenas conseguiremos penetrar se nos despirmos da dicotomia, do preconceito, do lugar-comum, do “prêt-à-penser”.

A expressão «todo o polícia tem em si um ladrão», se à primeira leitura pode desencadear em nós um sorriso, uma vez transportada para a vida, para a experiência e para a realidade, começa a ser muito mais dura de roer, porque desarruma os índios e os cow-boys e já não sabemos onde estamos nós.

Também escreveu um dia que as lutas no futuro (que são o nosso presente) seriam, não do bem contra o mal, mas do mal contra… o mal. O que torna o bem muito mais difícil de encontrar e por isso maior o desafio para os… polícias?

António Telmo cedo revelou um pensamento muito próprio e singular capacidade de olhar as coisas para lá da aparência. Por isso, a apreciada brincadeira aos polícias e ladrões, longe de o fracturar em dois ausentes, acrescentou-lhe, e à humanidade, uma considerável dose de sombra sem a qual muito difícil será encontrar essa pedra rara que decompõe e ajuda a conhecer, não direi a luz, que aqui nos é inacessível, mas as suas várias partes, como demonstra, e ele tão bem mostra, a árvore da Kabbalah.

 

2 de Maio de 2025