VOZ PASSIVA. 144
FILOSOFIA E KABBALAH, António Telmo*
Paulo Pereira
A Filosofia Portuguesa constitui como que um reduto intelectual muito peculiar. Procura demonstrar a especificidade nacional de um pensamento, quer remontando às origens do filosofar português, quer estruturando-se em torno de uma «escola» que pode ser qualificada de heterodoxa, baseada em grande medida nos escritos e ensinamentos de Álvaro Ribeiro, Leonardo Coimbra e José Marinho. Para seguirmos pela senda da «etimologia» – uma prática querida a tais pensadores –, a Filosofia Portuguesa é uma forma de radicação (no sentido de «raiz») e de radicalização da provável irredutibilidade do filosofar, enquadrando-o numa concepção mística da nacionalidade. Consequentemente, não é de admirar que seja aqui que se acolhe boa parte do pensamento hermético português contemporâneo, posto que a impossibilidade de traduzir sem trair o portuguesismo filosófico para outras línguas molda um território de cumplicidades intelectuais muito particulares, fundamentadas, para mais, na forma de exercer o pensamento como uma razão dinâmica, uma hermenêutica espiritual, conforme proposto nos trabalhos de Leonardo ou Marinho.
António Telmo é um dos filósofos que se movem nesta área. Em certo sentido, é representante daquilo a que podemos chamar a «via reactiva» do hermetismo – de que René Guénon foi o mais destacado defensor. O mundo moderno caiu no materialismo extremista e o progresso (como ideia moderna) é antes um mal do que uma virtude. Telmo caminha por este trilho, e em «Filosofia e Kabbalah» mostra-o claramente. Daí que nesta recolha de textos dispersos (alguns dos quais originais), aqueles que parecem francamente reaccionários (como o que dedica à «perversão da linguagem»), devam antes ser interpretados como «regressistas», já que o escopo político é, aqui, o que menos interessa.
Autor de História Secreta de Portugal e de Gramática Secreta da Língua Portuguesa (livros que influenciaram muito mais gente do que é suposto admitir), Telmo, nos melhores textos da recolha, revela uma disponibilidade e uma inteligência invulgares (e até um estilo) aptos a produzir aquela escuta do silêncio necessária a todo o acto hermenêutico, escuta dos símbolos também, e respectiva inscrição num sistema de relações entre o microcosmos e o macrocosmos. Este sistema de relações é, em alguns casos, baseado na geometria sacra da Árvore dos Sephirot da kabbalah – representação dos dez poderes ou emanações de Deus na terra. Kabbalah hebraica, é claro, mas também kabala cristã, ou seja Tradição, senão mesmo Tradição oculta quando cabala é o mesmo que cabalarias ou cavalarias, sentido que reúne no mesmo momento o filosofar e o poetar, conforme o entendiam os poetas medievais e renascentistas.
A 1ª parte do livro é mais literária, nela se escondendo, porém, um sentido submerso de todas as «coisas», como quando Telmo chama ironicamente a atenção para a coincidência das regiões das touradas com as zonas de maior actividade telúrica portuguesa, ou quando fala na «caça» e no jogo de «cartas» como exercícios singulares de entendimento do mundo e do Eu.
A 2ª parte, dedicada à filologia, estrutura-se em torno de um aristotelismo que vê «que a alma é a forma do corpo» (pág. 39) e mostra como a linguagem é investida de razão, pondo em evidência uma «“lógica subterrânea” que constitui (…) o elemento fundamental de que a razão de apropria para ser ela própria» (pág. 41); aí, curiosamente, o autor recorre à psicanálise freudiana revisitada pela sugestão do cabalismo enquanto resume, igualmente, as suas teses acerca da lógica cabalística dos elementos (e não «fonemas» da língua portuguesa, sistema que leva a «pensar as letras como significantes, senão como significados» (p. 54).
A 3ª parte interpreta os contributos de filósofos e poetas para o pensamento nacional, cobrindo os legados de Pessoa, Régio e Pascoaes (um dos triângulos) de Leonardo, Ribeiro e Marinho (outro triângulo), desenhando assim um hexagrama em cujo centro se encontram Sampaio Bruno e Junqueiro, numa espécie de «arquitectura» dos princípios da Filosofia Portuguesa.
Por último, consagra especial atenção à poesia de Pessoa (analisando segundo idênticos preceitos o poema «Na Sombra do Monte Abiegno») e de Camões, procedendo, ao mesmo tempo, a uma leitura esotérica de Os Lusíadas, de que importa registar a interpretação que faz da personagem do «Adamastor» um avatar do Adão-Astral.
Aforismos diversos (sobre a «Árvore» ou sobre a «Esfera Armilar») vão ritmando estas páginas de Telmo, que requerem atenção e empatia, mesmo para aqueles cuja desconfiança por estas matéria é grande: se as lerem, é quase certo que ficam seduzidos. Se não, resta-lhes admitir que descobriram um pensador rigoroso, que sabe usar e legitimar a linguagem. E que com isso se preocupa.
(Guimarães Edit., 1989, 198 págs., 1500$00).
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* Publicado em Expresso (Suplemento Cartaz), de 13 de Abril de 1990, pp. 31-32.