VOZ PASSIVA. 140

09-01-2024 15:25

De Miguel Real, publicamos hoje a sua recensão do livro A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo, de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, recentemente dado à estampa no número 353, de 13 de Dezembro, do jornal portuense As Artes Entre as Letras.  


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António Telmo

Descida aos infernos

Miguel Real

 

De um modo genérico, o topos literário da “descida aos infernos” ou catábase foi vivenciado  por três autores portugueses no século XX não presentes no importante artigo de A. Rosado Fernandes, “Catábase ou a descida aos infernos” (Coimbra, Humanitas, vol. XLV, 1993): António Telmo (1927-2010), que a pensou; José Régio (1901-1969), que, com uma vida regular em Portalegre, apenas a dramatizou em duas peças de teatro, Jacob e o Anjo e Benilde ou a Virgem Mãe, e Luís Pacheco (1925-2008), que a experimentou em vida (cf. António Cândido Franco, O firmamento é negro e não azul. A Vida de Luiz Pacheco, Lisboa, Quetzal, 2023, cp. 12); do ponto de vista coletivo, ou de grupo, Orpheu, revista de 1915 que tinha por projeto extrair a Arte do inferno (a vida normal republicana e positivista), Fernando Pessoa, o próprio, esotérico, que teorizou e poetizou a “descida aos infernos”, e Mário de Sá-Carneiro que a viveu em Paris, suicidando-se.

Vem esta brevíssima introdução a propósito da publicação de A Glória da Invenção. Uma Aproximação ao Pensamento Iniciático de António Telmo (2023, Sintra, Zéfiro Ed.), de Pedro Martins e Risoleta C. Pinto Pedro, ambos fundadores e mentores do “Projeto António Telmo”, consultável na Internet. Uma palavra de louvor para a perseverança, a disciplina e o rigor entusiasmante de Pedro Martins, que, após a morte de Telmo, deitou mão ao seu espólio e tem vindo a publicar na Zéfiro a sua Obra Completa, indo já em dez volumes. Para falar verdade, não fosse a ousadia de Pedro Martins, António Telmo estaria hoje duplamente morto (desculpem a brutalidade da frase): estaria morto o seu corpo e estaria morto o seu espírito vazado nos livros que publicara desde 1963, data do seu primeiro livro, o dificílimo e extraordinariamente heterodoxo Arte Poética. Com o livro ora publicado, Telmo pode repousar em paz, passou doravante a ter um livro sintético do seu pensamento e da sua obra. Certamente que durante muitos anos não será publicada outra interpretação sintética do seu pensamento tão perfeita como esta. Em 2015, Pedro Martins lançara Um António Telmo. Marranismo, Kabbalah e Maçonaria (Zéfiro Ed.), onde se sublinha o primeiro capítulo, “Teoria do Marranismo”, mas, sem dúvida, Glória de Invenção supera-o. O ideal seria o leitor ler os dois livros para poder mergulhar profundamente na obra de A. Telmo.

Com efeito, a catábase ou a descida aos infernos permite a Telmo evidenciar a experiência mais profunda do sagrado, dos seus rituais propiciatórios e dos seus diversos planos: a religião, a magia, o gnosticismo, a cabala e o misticismo.

Telmo recusa a separação dicotómica e até contraditória entre Razão e Poesia que o Ocidente proclama desde o Renascimento, e, usando de uma dialética superior, engloba a poesia na própria razão e, ao modo de Paul Ricoeur (A Metáfora Viva, 1975), valoriza a metáfora como síntese de ambos os planos de conhecimento: “a metáfora garante a mediação entre a experiência iniciática e a sua expressão literária ou filosófica” (p. 32). Num plano superior, pensar é, assim, pensar por metáforas e não segundo uma lógica dedutiva ou indutiva. A esta dupla divisão civilizacional, Telmo acrescenta uma outra, constitutivamente portuguesa: a divisão entre um fundo cultural judaico e a afirmação cristã, o marranismo. Para Telmo, “o Marrano é o ser dividido entre dois credos: o antigo [judaico], de súbito interdito aos ancestros; e o novo [cristão], que lhe foi imposto [por D. Manuel I] de modo abrupto” (p. 31). Neste sentido, um vago judaísmo permanece no subconsciente cultural e religioso dos portugueses, e pensar é quebrar a barreira cristã do consciente e fundi-la com o antigo judaísmo. Este processo é o que Telmo designa por Filosofia (cultural), não a concebendo senão como um processo operacional que provoca efeitos comportamentais no filósofo, uma espécie de metanoia transformadora (“uma transmutação interior”, p. 37) para um caminho ético de perfeição. Este é, como o leitor já adivinha, um processo gnóstico, que, além de exigir rituais específicos (Maçonaria), exige igualmente o antigo conhecimento da Cabala (a Tradição) judaica (cf. Filosofia e Kabbalah, Zéfiro, 2013). Como escrevem os autores, o que Telmo propõe é, de certo modo, “é um comércio estreito e fecundo entre a via da filosofia clássica e a tradição iniciática” (p. 37). É justamente o que Telmo faz, apresentando a história de Portugal em “três ciclos”: ciclo Heroico ou dos Reis, ciclo do Clero e ciclo do Povo (cf. desenvolvimento em Horóscopo de Portugal, Zéfiro, 2017), bem como, aplicando a metáfora, numa análise ao Mosteiro dos Jerónimos, como templo iniciático da viagem do Gama à Índia: Jerónimos, os Lusíadas em pedra; os Lusíadas, os Jerónimos em livro, uma ideia fabulosa de Telmo que já está gravada a letras de ouro na cultura portuguesa.

Ora a “glória da invenção” consiste, justamente, … não, não dizemos, reenviamos o leitor para a pág. 43, lá está tudo esclarecido.

Porém, A Glória da Invenção possui outro supremo atrativo: os 10 sonetos intercalados no texto e escritos por Risoleta Pinto Pedro, que, obedecendo ao espírito da Arte Poética de Telmo, criadora de metáforas, faz a união, melhor, a ponte entre a poesia e a filosofia. A filosofia de Telmo sintetizado em 10 sonetos, cumprindo a tradicional função desta forma poética, eminentemente lírica, inventada no Renascimento para cantar o Amor, o que une, enlaça, o que funde, praticado por Camões, Bocage, Antero, Florbela e tantos outros mais. São composições delicadas, não improvisadas, muito menos espontâneas, cada palavra escolhida com uma pinça, porventura substituída uma e outra vez para criar a adequação ao todo do soneto, diligenciando nos dois primeiros quartetos o leito formal do rio donde correrá a conclusão como rápidos perturbadores e agitadores das águas os dois tercetos finais. Se o texto em prosa revela a grande sabedoria télmica de Pedro Martins, os 10 sonetos de Risoleta espelham a beleza do livro

Em conclusão, António Telmo é aqui apresentado como o grande pensador português do Hermetismo pós-25 de Abril, prosseguindo o caminho iniciado no século XX pelo portuense Sampaio Bruno e pelo lisboeta Fernando Pessoa.