VOZ PASSIVA. 121

21-08-2021 00:12

“Filosofiat” ou da importância dos nomes e do erro

Risoleta C. Pinto Pedro

A 17 de Janeiro de 2014, a rubrica “Voz Passiva” do Projecto António Telmo. Vida e Obra”, publicava um texto de António Carlos Carvalho intitulado “Os nomes de António Telmo”. É um magnífico texto cuja leitura recomendo e que reencontrei agora, a propósito, já explicarei de quê. O texto consiste na comunicação apresentada ao Colóquio “A Obra e o Pensamento de António Telmo”, promovido em 2011 pelo Instituto de Filosofia Luso-Brasileira. Mas vamos ao que importa.

O texto do jornalista, escritor, pensador, editor, orador e amigo de António Telmo, consiste numa reflexão sobre a importância dos nomes na perspectiva do filósofo, e por isso se me apresentou ao caminho num dia que foi para mim, como tantos outros, de viagem. Quando me acontece viajar sozinha, penso e contemplo. O contemplar solta-me e disciplina-me o pensar. O carro transforma-se num templo, a estrada transporta-me para fora do tempo e os conceitos ora desfilam ora se aprofundam, complexos e límpidos sem interferências avulsas. Vinha discorrendo sobre pandemia e pausa. Tudo neste Universo é feito de respiração, balançando como pêndulo. A música: thesis e arsis, som e silêncio; o tempo: dia e noite; os astros com suas fases; o clima com suas estações; o humor com suas oscilações; a saúde com seus altos e baixos; e por aí fora. Apenas a actividade humana moderna é de uma incessante febrilidade, produção, exploração, expansão. Não há cessação de actividade. Porque a própria interrupção a que chamamos férias é uma imparável corrida: para outro lugar, para os prazeres fora de nós, para o divertimento. Continua a não haver pausa, silêncio, imobilidade. A sociedade de consumo é um imenso animal faminto que necessita de ser continuamente alimentado e tudo está organizado para que o façamos, mesmo quando pensamos que paramos.

Uma pandemia não tem méritos. Mas se formos inteligentes, isto é, se usarmos a inteligência que cada um de nós possui, podemos aproveitar tudo para aprendermos mais um bocadinho sobre nós e sobre o mundo. E este estado em que fomos mergulhados foi, está ainda a ser, uma imensa e desequilibrada pausa, tão excessiva e desequilibrada quanto a actividade anterior. Tudo parou. Até aquilo que já era paragem, os pauzinhos na engrenagem, as fugas ao indomável sistema histérico. Também a pausa parou. Tenho dúvidas que a maioria tenha aproveitado para ler, com o entusiasmo que se gerou em torno das redes sociais, lives, videoconferências, numa tentativa desesperada de compensar o proibido e legítimo desejo de contacto com o outro.

Ora a leitura em geral, e em particular a leitura dos filósofos, sendo ainda mais particular a leitura de um filósofo como António Telmo, constitui uma profunda respiração na actividade mental. Esta respiração tem vindo a ser promovida pelo trabalho editorial da Zéfiro, que vem publicando, ritmicamente, anualmente, as Obras Completas do Filósofo, trabalho coordenado por Pedro Martins. O XI volume, completamente terminado, ficou, também ele, suspenso à beira do poço da pandemia e aguarda as condições que os grandes grupos editoriais continuam a ter, mas que um editor independente como a Zéfiro, nestas circunstâncias não possui. Por isso, o XI volume aguarda serenamente. Esta situação, afectando economicamente a editora e culturalmente quem da sua actividade beneficia, o que não é de somenos, não seria, só por si, o único facto grave. É grave a forçada suspensão da respiração. Contudo, António Telmo era um homem com um ritmo afeito à planície alentejana, onde viveu a maior parte da vida, e esta pausa não o afectaria. Pelo contrário: aproveitaria para reflectir sobre as causas ocultas de tal detença. E, sem dúvida, começaria por olhar para o nome. O nome do X volume, o último a sair antes da grande travagem a fundo: Capelas Imperfeitas.

A expressão original designa o Panteão de D. Duarte, no mosteiro da Batalha, não acabado. É essa a sua imperfeição. O trabalho, em si, é tudo menos imperfeito, mas a morte do rei e do arquitecto inviabilizaram a sua conclusão. No reinado de D. Manuel o labor persiste com vista ao acabamento, e também no de D. João III: surgem o portal, a varanda renascença, obras sucessivas de Mateus Fernandes e Miguel de Arruda, e assim ficou a perfeita e inacabada obra, por isso designada imperfeita. Também a obra de António Telmo é, e isso está patente no espólio, uma obra perfeita em cada página que escreveu, mas muitas delas, muitos projectos de temas a desenvolver, de livros a escrever, ficaram inacabados. A publicação das Obras Completas tem contribuído, não só para reeditar, dando novamente à luz o que fora publicado, como para mostrar esse projecto futuro no seu processo de nascer, assim o desfragmentando e conferindo-lhe alguma unidade. Que tem. Ali se sente a respiração do filósofo, as pausas, aquilo a que ele chamava a sua “preguiça”, que eu vejo como contemplação sagrada, ali se vê como olha para trás e não tem receio de escrever o que já não diria da mesma maneira. Nas Capelas Imperfeitas, com seus apontamentos, fragmentos e inéditos dispersos, atinge-se o auge da perfeição do… imperfeito, no sentido já referido, de inacabado. Mas António Telmo continuaria a olhar para o título com a atitude que sempre teve perante os nomes e que António Carlos Carvalho tão bem sistematiza na acima referida comunicação, onde começa por assinalar que o você e  o tu não eram usados por Telmo, mas sempre o nome e apelido do seu interlocutor: «esse sublinhar do nome num tempo em que a importância é dada aos números que todos nós temos, que nos são atribuídos e é por eles que nos identificam, e não pelo nome que recebemos ao nascermos -- tal é o absurdo --, esse nome que nos deram e que se cola a nós ao ponto de a ele respondermos, de reconhecermos o seu poder de apelo». São as palavras iniciais de António Carlos Carvalho. Que vai, também, lembrar algumas das reflexões de Telmo, tais como (recito):
«Habitamos um nome, como habitamos uma casa.»
Assim como a existência de «uma íntima relação entre o nome de uma pessoa e o que ela viveu ou pensou» (Congeminações de um Neo-Pitagórico).»

Não querendo nem sendo elegante transcrever todo o texto, que o leitor poderá e terá todo o benefício em ler aqui:
https://m.antonio-telmo-vida-e-obra.pt/news/voz-passiva-11/,

pretendo apenas ressaltar uma outra importante afirmação de Telmo:

«O nome em princípio representa a essência sobrenatural do indivíduo.»

E outra ainda de seu mestre Álvaro Ribeiro:

«é preciso conhecer o ser que tem o seu nome e não outro».

Isto não se aplica apenas aos nomes humanos mas a tudo, daí eu trazer este tema, o nome do anterior volume publicado. Também os livros não se subtraem à Lei. Pelo contrário, contêm-na.

E para a compreendermos melhor, ajudará lermos a Gramática Secreta da Língua Portuguesa, onde os sons e as potências são quase racionalmente analisados e desvelados na sua criadora natureza.

Mas como não acreditamos em determinismos nem no poder da magia sobre a claridade do conhecimento, sabemos que este título, Capelas Imperfeitas, é sobretudo um instrumento para reflexão e não um dictat, a que também não atribuímos poder. Dictat não é Fiat, dictat é uma ordem que nos supera se tal permitirmos, Fiat é um poder que construímos pela luz da razão sustentada na intuição do coração. Também acreditamos na importância do erro para a evolução, e quando no início deste artigo ia escrever a palavra “Filosofia”, um t se acrescentou por vontade própria, um t de Fiat (Filosofiat), que acoplado ao amor pela sabedoria, possui um poder atómico no sentido da construção criativa, por isso acreditamos na próxima continuidade rítmica da publicação desta bela Obra de Telmo, que por muitos volumes que venha a ter (não terá muitos mais, e os que existem já não são poucos) será sempre incompleta, porque essa é a natureza da obra humana, à semelhança da própria criação do demiurgo, sendo que a próxima etapa da humanidade consiste, e Telmo para isso bem contribuiu, em ir aperfeiçoando o que ele, esse construtor escondido que não conhecemos do universo que conhecemos, não conseguiu. Ainda assim, que bela, esta Capela Imperfeita onde vivemos! Que sem o ignorarmos, não nos conformemos apenas com a beleza, enquanto houver seres em sofrimento. E outros a infligi-lo. As capelas imperfeitas que são a súmula do conhecimento e do pensamento humano inventariado pelos filósofos e pelos poetas, poderão ser o nosso ponto de partida e um possível caminho para mostrar quão nus vão os reis… de todos os domínios. É preciso sabê-lo para deixarmos de acreditar neles. E mais na nossa acção investigativa, reflexiva e criativa. Iniciemos, então, a imperfeita obra, nem por isso menos merecedora de ser construída.

Agosto 2021