VOZ PASSIVA. 05

19-12-2013 15:03

Prefácio a Sesimbra, o Lugar onde se não morre

António Reis Marques

 

Conhecemos o António Telmo alguns dias depois da sua chegada a Sesimbra, para onde seu pai veio exercer as funções de conservador do Registo Civil. Estávamos então em meados da década de 40 e, tal como todo o país, vivíamos com as carências e as dificuldades resultantes do decurso da segunda guerra mundial, das quais a falta de géneros alimentícios e de combustíveis era das mais graves. Apesar disso foi também uma época de viragem na vida local, que recuperava de um longo e doloroso período de crise económica, devida a escassez de pescado, que culminaria no ciclone de 15 de Fevereiro de 1941, deixando Sesimbra exangue. De facto, foi após esse trágico acontecimento que não só se verificou um sensível aumento na produção das artes de pesca, mas também se conseguiu a almejada construção do porto que melhorou radicalmente a actividade dos seus pescadores, tonificando assim a débil economia da terra.

 

Viríamos depois a saber, por ele, que seus pais hesitaram na vinda para Sesimbra visto que lhes tinham dado a imagem duma terra aonde era predominante a pobreza da sua gente e, ao mesmo tempo, grassava a temível tuberculose que tantas vidas ia ceifando.

 

Na verdade, a “Piscosa” dos anos 30 tinha sido palco de vários acontecimentos negativos que afectaram gravemente a vida de toda a população, que só conhecia alterações durante a época balnear, com a vinda dos banhistas ou habituais frequentadores da sua praia, cuja estadia dava um notável contributo ao comércio e ao rendimento de muitas famílias que lhes alugavam as casas, influenciando também a maneira de ser e de estar dos seus naturais.

 

Era este o quadro da vida sesimbrense, quando o António Telmo cá chegou. Ainda desconhecido, foi primeiro apontado como o filho do “doutor do Registo” e depois pelo Tó, diminutivo familiar que ele nos consentiu e com que passou a ser tratado. Porque era bom praticante de bilhar, um dos seus entretenimentos favoritos, passou logo a frequentar o desaparecido “Café Central”, o único estabelecimento público que dispunha de uma mesa daquele jogo.

 

Foi assim que conheceu os componentes de uma tertúlia que lá reunia e tinha sido criada por duas das mais distintas figuras da cultura sesimbrense: o super inteligente Rafael Monteiro, que parecia já ter nascido com carta de iniciação, e o não menos dotado Zé Preto, o poeta que melhor soube cantar Sesimbra e as suas gentes. À sua volta juntavam-se alguns rapazes mais novos, possuídos por aquele sentimento cívico e afectivo de pertença a uma comunidade, a um povo, pois as afinidades que os aproximavam tinham por matriz o culto do amor à terra, na fidelidade à essência da ancestral e laureada Póvoa marítima em que nasceram e viviam. Queriam entender o presente em função do conhecimento do passado, fundamental para perspectivar o futuro. Assim, os encontros tinham por objectivo, para além do estudo da origem e da história de Sesimbra, o conhecimento dos seus valores, tradições, usos e costumes, para melhor os saber defender e exaltar através da participação na vida das suas colectividades e instituições mais representativas. Porque eram todos de origem humilde conviviam diariamente com gente verdadeiramente simples, que olha a vida com uma singular filosofia que distingue o essencial do secundário, isso dotou-os de uma certa capacidade de percepção da existência de uma realidade que nos transcende e está subjacente em tudo. Todavia, a época e o contexto social em que viviam não valorizavam o pensamento, o primado do espírito.

 

Foi nesta roda que entrou o António Telmo, o qual, como tão bem disse o Rafael, que era o companheiro mais velho e o guia da tertúlia, passou a ser o seu eixo, ou seja o novo condutor que mudaria a rotação, o movimento da roda, fazendo-a girar por outras vias, abrindo outras perspectivas, ensinando-nos a pensar, a reflectir antes de agir, a fazer-nos entender aquele princípio de que todo o acto criativo é precedido de pensamento, a existência da imagem mental antes da criação.

 

Alguma coisa de distinto era já manifesto naquele jovem, algo circunspecto mas com grande poder de sedução, que não partilhava dos hábitos e pequenos vícios dos rapazes da sua idade, que aborrecia futilidades e era sóbrio nos actos e nas palavras que porém traduziam, na clareza e profundidade dos seus juízos, na lucidez das suas proposições, os sinais de uma grande, rara inteligência. Perceberíamos então a afirmação de Almada Negreiros: “as idades do espírito não têm paralelo com as idades físicas e morais da existência, de modo que uns já chegaram a certos patamares enquanto outros ainda agora se meteram ao caminho”. 

 

E a temática das reuniões que não excluía reflexões pessoais sobre a vida social, cultural e política passou a ter outras vertentes desde o conceito de pátria e de identidade nacional até ao auto conhecimento, às velhas interrogações de quem somos nós, qual a nossa origem e destino, e que mistérios se escondem por trás da nossa humanidade. Para tanto, a todos era exigido uma certa elevação nos diálogos e o uso da linguagem mais digna para se exprimirem.

 

Porque, para além de integrarmos a tertúlia, tínhamos também o privilégio de merecer a sua amizade e intimidade, passeávamos juntos pela beira mar ou pelas cercanias da vila, em conversas em que pequenos episódios do quotidiano se transformavam em lições vivas sobre o mundo que nos rodeia, procurando levar-nos a desvendar as essências que as aparências escondem, a compreendermos aquilo que Carlos Queiroz tão bem definiu na quadra:

 

“Ver só com os olhos
É fácil e vão.
Por dentro das coisas
É que as coisas são.”
 

Nessas deambulações ele ia também descobrindo Sesimbra, através do conhecimento dos seus lugares míticos como a fonte da Califórnia, com os seus “medos” e “encantos”, a serra d’Achada com os seus ermos, a “Pedra Alta”, ponto axial onde apareceu a imagem do Senhor Jesus das Chagas, e o pulsar da vida da terra na sua natural ligação ao mar, com as emblemáticas figuras dos velhos arrais da pesca, descendentes dos navegadores de Quinhentos que, para sua surpresa, mantinham na vida profissional a integridade da jerarquia tradicional de moço ou aprendiz, camarada ou companheiro e arrais ou mestre.

 

Seria contudo junto ao campo de jogos da “Vila Amália”, então afastado da vila, que ele nos faria observar uma das mais interessantes manifestações do mundo natural, que depois viríamos a conhecer melhor até pela sua repetição diária. Estávamos conversando ao entardecer de um dia primaveril quando, de súbito, a quietude do lugar se altera com o ruído da chegada dos pardais que se recolhiam, para o seu repouso nocturno, nos ramos dos altos eucaliptos que circundavam o recinto. Eram às centenas e vinham de todos os lados, em contínuas revoadas e num chilreio frenético que se mantinha mesmo quando já empoleirados.

 

Ia-se aproximando a hora do crepúsculo, e é então que se dá o curioso fenómeno em que, numa simultaneidade impressionante e como se fossem elementos de um coro obedecendo à batuta do maestro, todos os pássaros param a chilreada, tudo se cala e cai no mais completo silêncio.

 

É apenas um instante, mas um instante surpreendente, naquela hora mágica, tão propícia à meditação, quando a chegada da noite obscurece os últimos raios solares, que as aves se calam depois dos seus cânticos de despedida da luz, que se oculta até voltar a raiar na manhã seguinte. E, tal como na hora crepuscular, também nos alvores de um novo dia, no regresso da luz, são essas pequenas e graciosas criaturas do maravilhoso mundo alado que, cantando, nos anunciam esses momentos sublimes em que se dá como que a comunhão da natureza com todos os seres.

 

Em preito de gratidão e admiração aqui deixamos esta evocação de algumas vivências e experiências que partilhámos com o António Telmo, na nossa adolescência nesta terra onde ele viveu, ensinou, pensou.

 

(Escrito em 2011)