VERDES ANOS. 13

20-08-2015 18:44

Sampaio Bruno, crítico literário[1]

 

Um dos aspectos pelo qual menos conhecem Bruno os nossos intelectuais revela os seus grandes dons de «crítico literário», senhor de segredos e processos filológicos de hermenêutica que lhe abriram o acesso a todas as zonas da literatura. Páginas e páginas se seguem e alternam nos seus livros, nas quais estuda a literatura francesa, desde os românticos aos simbolistas, a literatura russa, Shakespeare, Dante, Novalis e Goethe, toda a literatura portuguesa, para não falar da Geração Nova, um volume inteiramente dedicado a estudos literários.

Com a superioridade do filósofo que exerce a crítica, Sampaio Bruno interrogava a literatura de modo a descobrir a concepção do mundo pensada pelo poeta, pelo historiador ou pelo romancista. Consciente de que um novo pensamento ou uma nova ideia desce a escala que da literatura vai até à política pelo ensino, não caía no erro ingénuo de considerar, como querem os positivistas, a literatura uma sobrevivência do passado. Decifrava, utilizando a filologia, qual esse pensamento, qual essa ideia actuante. E assim resolveu muito problema obscuro e declarou muitos enganos no domínio dos conflitos políticos e das preocupações religiosas.

Em geral, os críticos literários acreditam na literatura como um objecto, uma coisa, não deixando, com os seus paralogismos, ver ao leitor o sujeito que está por detrás do objecto, a causa que se esconde na coisa. O autor da Geração Nova sabia muito bem como surge a questão literária, pois gozou de uma grande vantagem sobre quase todos os seus contemporâneos: a de ser inteligente. Se aceitamos a definição de Álvaro Ribeiro de que inteligente é aquele que compreende o que lhe querem dizer antes de lho terem dito, se adoptamos a menos subtil definição de que inteligente é aquele que não se deixa enganar, temos de reconhecer que a maioria dos intelectuais republicanos portugueses não era constituída por pessoas inteligentes, porquanto, mesmo e até depois de lho terem dito, não compreenderam e totalmente se deixaram enganar. Esses ingénuos Vencidos da Vida, e dizemos ingénuos para não ferir seus, por ventura ingénuos, prosélitos da hoje, escritores eles admiráveis que tanto contribuíram, por meio do poder do estilo, para instalar o que diziam querer destronar, para contrariar tudo o que diziam querer favorecer, não parecem pessoas inteligentes inteligentes, quando os comparamos à geração, pelos críticos menosprezada, de Garrett e Herculano. Efectivamente, tanto quanto diminui as figuras, os escritos e as acções de Antero, Eça e Oliveira Martins, exalta Sampaio Bruno as de Garrett, Herculano e Castilho. Também a Teófilo Braga não escapou o equívoco da influência dos Vencidos da Vida.

A crítica destes ao positivismo consiste no fundo no combate à filosofia portuguesa de Teófilo Braga. Outro foi o ponto de vista e de partida da crítica sistemática feita por Sampaio Bruno à doutrina de Augusto Comte. Fazendo depender a literatura da história e, por conseguinte, da lei dos três estados, dependência que ainda hoje (! ) orienta os cursos de filologia das Faculdades de Letras com as suas disciplinas de História da literatura portuguesa, inglesa, alemã, francesa, etc., os positivistas têm sempre pretendido dissociar a literatura da filosofia ou enterrar e ignorar definitivamente a filosofia na literatura. Deste modo, a ciência pitagórica, adoptada pelos positivistas, passará, no último limite, a reivindicar a totalidade dos direitos no domínio jurídico do ensino oficial e público, e a redenção das pátrias e da humanidade será retardada, uma vez que se-vede o aprendizato e o estudo das artes tradicionais.

Para combater o positivismo, escreveu Sampaio Bruno o Brasil Mental. Porquê o Brasil e não Portugal? Em 1857, ano em que morreu Augusto Comte e nasceu Sampaio Bruno, (curiosa coincidência!), já a doutrina, a que o biólogo Husley chamou um «catolicismo sem cristianismo», se encontrava implantada no Brasil, mediante acção de agentes franceses que ensinaram na Escola Naval do Rio de Janeiro. O positivismo não veio por terra de Paris; veio sim do Rio de Janeiro, por barco, em pacotes de livros. Tratava-se, portanto, de combatê-lo no seu ponto, para nós originário e nevrálgico. Simultaneamente, assim o filósofo evitava ferir os prtugueses; seus compatriotas. 

Elucidativo é que seja nesse livro, o Brasil Mental, onde Bruno insere o seu admirável estudo sobre a Pátria. Guerra Junqueiro, que, como se sabe, fora iniciado por aquele na filosofia de Pascoal Martins, apartara-se, desiludido, dos Vencidos da Vida. Entre Guerra Junqueira e Antero de Quental, Sampaio Bruno escolheu, sem dúvida, o autor da Oração à Luz, o poeta iluminista, o poeta da Pátria e do Catolicismo português (como viu F. Pessoa), ao pé do qual o Catolicismo germânico do autor dos Sonetos não sustenta comparação. Como sucede com Oliveira Martins, existem nos livros de Bruno muitos passos explícitos denunciando em Antero os sofismas hábeis ou inconscientes do seu estilo. Mas nenhum leitor atento e perspicaz é enganado com o alvo da crítica ao poeta-didacta brasileiro Martins Júnior. O visado é ainda Antero de Quental. 

A inferioridade da poesia didáctica é, em geral, admitida por todos os intelectuais. Isso não impede, porém, a admiração que muitos perfilham por todos aqueles poetas que puseram a literatura ao serviço da ciência, da política ou da religião. Medíocre leitor de Schopenhauer e de Hegel, Antero foi, sem dúvida, um excelente propagandista do pensamento germânico, servido como era por admiráveis qualidades de estilo. A mistura, nos Sonetos, de algumas noções de filosofia alemã com a mitologia católica, sustentada pelo lirismo, sentimental e enciclopedista, duma alma em perpétua contradição, não basta para fazer dele, como em geral se faz, o poeta-filósofo por excelência.

Só à cegueira provocada pelo ensino oficializado da literatura se deve atribuir a ignorância de tão fáceis explicitações. O positivismo faz ver ao invés a ordem por que se processa a tríade literatura, ensino e política e promove, por conseguinte, a sociologia a primeira das ciências. Daí a correlativa apologia da poesia didáctica, com a substituição do mito pela alegoria e do símbolo pelo emblema. A ordem «à rebours» que assim se estabelece, miragem na qual a literatura aparece como resultado, não deixa ver a verdade; tão bem formulada por Teixeira Rego. «A literatura é a expressão do sobrenatural». Somente quem o pensar poderá descobrir a íntima realidade daquele processo existencial que faz descer a palavra à política, e conceber o princípio do movimento que anima a humanidade.

O ensino de Sampaio Bruno, a actividade que desenvolveu como crítico literário não se perdeu. Hoje a literatura começa a ser estudada, nos meios afastados do ensino oficial, em função da filosofia. Tivemos de referirmo-nos, enquanto articulávamos estas linhas, a Teixeira Rego e Teófilo Braga. Estudando a obra destes três escritores, poderá alguém, no futuro, escrever a verdadeira história da nossa literatura, a última história da literatura portuguesa. Cem anos após o nascimento do grande pensador tornou-se possível confiar na virtude dessa esperança.

 

António Telmo



[1] 57, ano I, n.º 3-4, Lisboa, Dezembro de 1957, p. 15 [com breve antologia de textos de Bruno].