UNIVERSO TÉLMICO. 73

21-10-2022 00:11

Preâmbulo[1]

Elísio Gala

 

Esta obra é simultaneamente uma obra temporal – marcada pelos nomes das personagens que identifica e cita – e é também intemporal, feita para todos quantos na liberdade do pensamento garantem o trânsito para a liberdade que demanda a mais plena realização da justiça.

É inegável a sua actualidade ética, social e política, no que esta tem de trágico e portanto de frustração da liberdade em luta inglória com o destino.

As considerações que aqui se apresentam têm como horizonte a consciência de que o desenvolvimento das paixões afecta toda a vida e de que os “encantamentos” de diferentes naturezas – erótica, religiosa, política, militar – são fonte de conflito com os deveres.

Mas outras interrogações se levantam: o problema do fundamento, natureza e garantia de uma comunidade; o valor da ciência; a interrogação sobre a forma de regime; o desejo de libertação em confronto com o comodismo e o violento ataque de muitos; o superior sentido da educação radicado no mais íntimo da alma humana e não na expressão relativista e naturalista da vontade do mais forte (grupo de proprietários, maioria popular, ou um só homem).

Nesta obra se mostra como os regimes menos dependem das instituições que da virtude dos homens, pelo que o verdadeiro guardião de uma sociedade é sobretudo a apropriada educação e cultura. É na educação que uma comunidade encontra a sua essência e sustentáculo, pelo que o Homem se degrada e destrói quanto mais minada estiver uma sociedade nos seus valores e tradições.

Aqui se critica o moderno, igualitário e meramente descritivo conceito de cultura, longe do alto e valorativo ideal de cultura como princípio formativo, hierarquizador dos modos e formas de manifestação dos indivíduos e povos, apontando à excelência que só em almas de escola pode alcançar a perfeição.

O Plutocrata é, como o afirma o seu autor, o resultado de conversas semanais ocorridas em tertúlias de amigos, onde se descreve a indignação da sociedade portuguesa.

Um deles, Orlando Vitorino, foi quem mais decisivamente estimulou Ernesto Palma, autor de Orientação da Leitura. Ernesto Palme é um homem de acção que tem a seu modo procurado elevar o nível cultural e social das populações mais desamparadas. Poderia parecer então que, apostado na eficácia que pertence à acção, esquecesse a beleza e o valor educativo que são pertença da literatura. Nada de mais errado. Do convívio assíduo com a experiência e saber de homens como Orlando Vitorino, retirou – como disse em saudosa conversa – as mais subtis e luminosas sugestões para esta obra.

Ernesto Palma, ao indagar da sociedade portuguesa, só aparentemente faz trabalho de sociólogo, uma vez que os conceitos que nos apresenta aparecem-nos definidos e determinados antes de qualquer abstracção da liberdade individual. Contrariando o método sociológico de observação e experimentação, situa o homem num plano de associação superior ao da animalidade. O nosso autor apresenta-nos o problema da liberdade e da culpa, da análise da qualidade de uma vida que deve ser julgada pela sua aptidão para desenvolver a virtude na alma.

Num período de influências corruptoras, dá-nos exemplo de uma liberdade com substância, já que nascida no “amor da sabedoria” e não em mero hábito. Ele é um auxiliador na busca de um caminho de abolição do igualitarismo nas almas, incitando-nos a ascender desta noite… para a luz da Verdade.

A sociedade é uma psyche. Se doente e desordenada, doente e desordenada também a psyche dos seus membros. A construção da sociedade é a construção da alma, operada a partir do centro onde se situa a ascensão para a luz. Mas como resistir à morte? Uma das fontes da vida é a interrogação, que é já manifestação de que há um “cuidado da alma”, cuidado do que há de divino no Homem. E toda esta obra na sua rigorosa dedução está prenhe de interrogações.

Só o autodomínio permitirá alcançar a harmonia da existência moral do Homem com a ordem natural do Universo. Com o crescente poderio das máquinas, aparelhos e utensílios a consciência humana verifica como a imprensa, pode servir contrários fins. Nascida para a difusão de valores culturais torna-se arma mortal de injúria, insulto, subversão valorativa e adormecimento mental. Para este adormecimento também contribui a planificação da cultura executada através da estatização do ensino, do controlo da informação e do monopólio do reconhecimento social.

Quer o poder “mortal” da imprensa, quer o efeito adormecedor da planificação cultural corrompem a sociedade. A sociedade corrupta é como um animal grande e forte, que Platão denominou de “a grande besta”. Estudados os hábitos do animal, há que encontrar as palavras e tom adequado ao seu governo. O que o animal gostar será bom. O que o provocar será mau. Assim se compreende a miserável natureza dos conteúdos de muitos dos programas transmitidos pela televisão e de muitos dos espectáculos subsidiados.

A libertação de tais cadeias só poderá ser realizada ou por um qualquer nobre espírito, aperfeiçoado pela educação e retido pelo exílio longe da sua pátria; ou por uma grande alma que nascida numa pequena aldeia, não manifeste qualquer interesse por cargos de administração política; ou talvez por um pequeno grupo que, vindo para a filosofia, para a qual a natureza os dotou, se determine a firmar a sua razão e ética no amor ao saber e não numa vontade social ou acaso determinado naturalmente.

Ernesto Palma, dotado de nobre espírito e grandeza de alma, encontrou os amigos e o convívio que lhe permitiram provar da doçura e beatitude do bem da filosofia.

Esta obra coloca-nos perante uma dificuldade e uma constatação. A dificuldade é a do restabelecimento da vera hierarquia dos poderes humanos, isto é, da subordinação da técnica à ciência e desta à metafísica. A constatação é a de que toda a política há-de estar dependente de uma ética, por sua vez subordinada a um sistema de filosofia.

No abismo das forças existenciais, passadas e presentes, a alma experiencia a morte. Na escuridão da luta e do sofrimento, pode-se gerar no centro da alma a luz que ilumina o caminho do conhecimento, e permita distinguir a vida, do calafrio da morte.

A filosofia é essa luz e esse esforço de identificação conceptual das forças do mal. Enquanto luz, a filosofia constitui um acto salvífico individual e comunitário, uma vez que ao evocar e reconstituir a ordem recta na alma de quem filosofa, faz com que aquela alma se torne o centro de uma comunidade livre da circundante sociedade corruptora.

Até ao fim da sua vida, o autor desta obra soube manter-se tranquilo face ao desvario da multidão. Qual viajante surpreendido por uma tempestade, soube abrigar-se no amor ao saber. Abrigar-se da chuva da injustiça, da poeira do corte da relação da natureza com a graça, do vento da liberdade humana não solidária com a existência de Deus.

O proveito da leitura de O Plutocrata consiste em ganharmos consciência do carácter absurdo e cruel de um mundo regulado e regulamentado por homens desprovidos de virtudes teologais.

O proveito da leitura de O Plutocrata é dar-nos a bela esperança de que libertos da vida ali descrita, talvez nos possamos descobrir, serenos e em paz, quando chegar o fim.                         



[1] Nota do editor – De O Plutocrata, de Ernesto Palma, 2.ª edição, Vila Viçosa, Serra d'Ossa, 2009.