UNIVERSO TÉLMICO. 72

21-10-2022 00:07

Sobre O Plutocrata*

 

 

Uma família dar à luz um génio, pode acontecer, mas dois já se torna surpreendente. O meu primeiro e importante encontro com os Vitorino deu-se com António Telmo, que trouxe até mim um tesouro de nomes e obras onde encontrei o seu irmão Orlando, cuja obra conheço muito mal, mas quando há uns tempos li O Plutocrata, fiquei espantada com tanta coragem no pensar e no dizer. Comecei sendo surpreendida pela actualidade e lucidez, e depois fiquei a pensar na forma magistral como ele, enquanto homem de teatro, consegue que o próprio livro seja uma encenação. Não vejo Ernesto Palma como um pseudónimo, pois é-lhe dada vida e um relacionamento com o autor/ortónimo, para além de que Orlando Vitorino não  se limita a criar um heterónimo, mas coloca-se a si mesmo a manipulá-lo, como bonecreiro que se oculta mas não se esconde e revela os bastidores, sendo que esta revelação é a forma de fingir que está a velar aquilo que, afinal, revela. E assim temos, nas primeiras páginas, o plano do palco.

O conteúdo não é menos brilhante do que a forma. E veremos, lá mais para o fim, como estão profundamente ligados.  Revolução, guerra, argentário e plutocrata, que dá o título ao texto, são conceitos que vai explanando ao longo do livro enquanto analisa acontecimentos e personagens históricos, situando-se nos três últimos eventos revolucionários: 1910, 1926 e 1974, em que modelos foram sendo substituídos: monarquia por república, república por ditadura e ditadura por democracia, mas concentrando-se, sobretudo, no mais recente, observando que apesar dos discursos, se verifica que a revolução «assegura a perduração das mesmas hierarquias e, à frente delas, os mesmos burgueses» constituindo famílias e clãs. Há famílias que vão passando de regime em regime. Pergunta então: porquê a revolução, tendo em conta que esta não é feita pelo povo? Para saber quem faz a revolução, começa por pôr de lado quem a não faz: os políticos, as grandes instituições, onde inclui a igreja, e os argentários. Resta, então, o plutocrata, sendo que apenas um, até hoje, se assumiu como tal, colocando-se a hipótese de que os outros se escondam entre os argentários. Convém, contudo, distinguir muito bem uns dos outros: o fito do argentário é deter a posse do dinheiro para o aumentar, ao passo que o plutocrata detém a sua disponibilidade para exercer o poder sobre a sociedade. É essa disponibilidade que permite fazer, ou não, uma revolução.

O retrato do plutocrata é a discrição, até ao secretismo. Exemplifica com Mendizabel, que viria a ser Ministro da Fazenda e Presidente do Governo de Espanha, e ajudou a financiar e a organizar a revolução liberal; vendo-a perdida e o povo a apossar-se dela para a transformar numa guerra sangrenta, não deixou de a financiar até à vitória que se julgava impossível. Quando tal aconteceu, festejou com um jantar faustoso e discretamente se retirou. A missão estava cumprida.

Orlando Vitorino vê o plutocrata como um fenómeno contemporâneo relacionado com a quantidade de dinheiro disponível, os 90% que ultrapassam a aplicação na transacção das mercadorias. É ele, segundo “Ernesto Palma”, a que Orlando Vitorino, na sua encenação, ‘dá voz’, o obreiro da revolução, que tem sempre na base a ameaça de alteração da sociedade, que não vem do exterior, mas sim do povo. A revolução é uma espécie de mudança de alguma coisa, para que tudo se conserve: evitar que o povo percorra o caminho que vai da insatisfação à guerra e destrua a estrutura que ele [plutocrata] deu à sociedade. O que tem de acontecer periodicamente, pelo desgaste dos regimes políticos. No momento da necessidade do acontecer, tudo tem de estar já preparado, e toma a forma de jogo com o político, e de recrutamento e formação dos revolucionários. É na classe média que vai recrutá-los, pelas suas ambições financeiras, pelas suas pretensões intelectuais, matéria dócil às modulações que o plutocrata lhe queira dar alimentando-lhe os motivos de ressentimento e frustração, sustentando-lhe a vesânia até ao momento de ela ter sua soltura na revolução, incutindo-lhe pelos jornais e pela universidade os chavões do novo regime. Todos os regimes lhe servem, mas em 74 era a democracia que se mostrava mais consensual, pois comprovadas inviabilidade e falência do socialismo, a democracia acaba por ficar apenas formal, e por ser exercida, de facto, como uma ditadura. O que Orlando mostrará com a demonstração da subtilmente instituída censura, nas páginas que dedicará à cultura. Não interessa ao plutocrata a ideologia, mas a sua eficácia, em função do objectivo que pretende.

 Orlando Vitorino percebe isto antes, muito antes, dos tempos que estamos a viver, mas que ele já entrevia, por estar atento aos sinais. Não se trata de um estudo de sondagens, mas de uma apurada sensibilidade para compreender o pulsar do sistema.

Da revolução é apresentada a receita simples: começa o plutocrata por fazer avançar os militares, aplaudidos como heróis, nas ruas solta os revolucionários da classe média já devidamente formados, com slogans e cartazes contra… ele, o plutocrata. Seguidamente faz regressar os políticos dos seus idílicos desterros mais ou menos idílicos a quem os militares entregam os poderes de estado.

Ora sendo muito bem analisado, não podemos deixar de notar o excesso de simplificação, pois nem todos estavam em exílios dourados: muito estavam em prisões em condições inclassificáveis e muitos já tinham morrido nelas ou a fugir delas.

No que é genial é a apresentar o plutocrata como oferecendo-se à execração pública e à espoliação de bens e direitos, como empresas e bancos, abandonando o país, para… instalado o regabofe, palavra que vai buscar a Herculano e Oliveira Martins, o nepotismo e as arbitrariedades e a corrupção, a aproximação da ruína e do abismo, lhe ser rogado, por populações em susto, e pelos políticos, que regresse. Com direito à restituição de empresas, bancos, jornais, televisões, etc, desde que regresse.

Uma vez regressado, o calcanhar de Aquiles do plutocrata é a cultura, porque não a consegue conceber a não ser na sua forma planificada e vazia, e não pulsante e viva, livre do controlo do sistema. Volta-se para as instituições do regime, concede benesses aos seus intelectuais, e prossegue em direcção ao seu fim, que é a eliminação do pensamento filosófico, artístico e científico. Ridicularizando, esvaziando, e submergindo sob tecnologia.

Vai centrar-se, uma boa metade do livro, naquilo que dá a ver como a tragédia e o espectáculo da planificação da cultura para a abolição do pensamento. Aqui começamos a compreender como forma e fundo, neste livro, estão ligados. É a redução de tudo ao espectáculo, que acaba por ser uma estratégia de encobrimento da censura, as luzes dos holofotes ocultando a cor do lápis azul que as massas, encadeadas pela luz de cena, não conseguem descortinar. A singularidade e a identidade dos povos ficam completamente escamoteadas e substituídas por produtos culturais artificiais, arbitrários e vazios.

O autor usa o método teatral para desmascarar o espectáculo de uma cultura em que o  sábio é obsoleto, o investigador independente da comunidade científica é não validado, e assim se instala o Santo Ofício a amordaçar Galileu, a universidade de Londres a querer impedir Shakespeare de escrever, a perseguição feita pelos nazis à filosofia judaica, ou a proposta de um antigo parlamentar do anterior regime, que para calar Aquilino, pretendia proibir de publicar algum livro quem não obtivesse previamente licença ou licenciatura da universidade. Quantas das nossas obras-primas não teriam sido publicadas! Na democracia, os processos não são tão primários, são mais subtis, ou menos grosseiros, pela sofisticação, mas igualmente perversos.

Eliminado o pensamento superior, aquele mais requintado e complexo, resta, e estamos rodeados por ele, o pensamento vulgar.

Recorda ainda momentos civilizacionais dolorosos como aquele, no mundo islâmico, que se seguiu a séculos de esplendor intelectual e cultural, entre os séculos VII e XII, cujo movimento civilizacional acabou por ser extinto, até hoje, pelo livro de El Gazali: A Destruição dos Filósofos. Apesar da resistência do notável Averroes, que deu origem à destruição da sua obra e condenação a prisão perpétua, aquilo que se seguiu foi destruição sistemática das obras dos sábios, multiplicação dos autos-de-fé, lavagem da tinta dos manuscritos, incêndio das bibliotecas.

Vale a pena lermos as palavras de Moisés Espírito Santo que seguidamente transcreve:

«O mundo muçulmano apresenta desde então o espectáculo calamitoso de um universo paralisado […], a civilização muçulmana condenada a reclusão perpétua». Acrescenta: «O mundo islâmico aparece-nos, desde então, sem vivalma, multidões sem a menor criatividade intelectual e inovação, um deserto […]. Do século XII até ao nosso tempo, o rol dos seus cientistas e filósofos é uma folha em branco […], o seu contributo para o progresso da humanidade cifra-se em zero.[…] Hoje o que as antenas dos media captam [deste mundo], são movimentos políticos de revolta e desespero, terrorismo, repressão das liberdades». Terminada esta citação, retoma o autor o paralelismo aonde pretende chegar, socorrendo-se de Renan, para quem, com «a exterminação violenta da filosofia no século XII, nem mais uma dúvida se produziu, nem mais um protesto se levantou no mundo muçulmano». E para Fereydoon Hoveyda, o escritor, pensador e diplomata iraniano, «a destruição dos filósofos foi um verdadeiro suicídio, o mundo islâmico imobilizou-se no século XII; do Índico ao Atlântico imobilidade completa».

Onde pretende Orlando Vitorino chegar trazendo estes autores às suas páginas? A um paralelo entre esta tragédia para a civilização islâmica (e para o mundo…) e o que se passa actualmente no ocidente: «a eliminação da filosofia por doutrinas cada vez mais divulgadas nas escolas (o estruturalismo, a “nova história”, a “etnologia moderna”, a “linguística moderna”, o neo-pragmatismo americano […], a mesma evanescência do pensamento artístico reduzido a obras de imitação e cópia, com a estética no lugar da poética. […] A mesma abolição do pensamento científico desprezado e rejeitado pela tecnologia devastadora das mentalidades e pela cibernética capaz de devastar a natureza», etc, acrescentando ainda o fundamentalismo teocrático substituído por outro tipo de fundamentalismo, democrático ou, talvez, pseudodemocrático.

No fundo, trata-se da tentativa de abolir o pensamento individual e original e a dúvida, instaurando algumas vacas sagradas bem-pensantes e inquestionáveis, que uniformizam crenças e punem desvios, sendo que qualquer tipo de afastamento do rebanho é tomado como individualismo excessivo ou rebeldia. Aquilo que Moisés Espírito Santo designa como «calamitoso espectáculo». Aos Ministérios da Cultura e da Comunicação Social vê-os como herdeiros directos dos totalitarismos nazi e comunista, adoptados sem questionamento por quase todos os regimes democráticos do mundo, manipulando o que deve ser a cultura neste mesmo mundo. Então, sobre o real, a humanidade tem vindo a desenvolver crenças como: apenas o fenómeno é real, e após o positivismo, em que só facto era real, o domínio da natureza pela técnica criou a crença de que só o social é real, culminando «nos nossos dias, com o crescente predomínio da técnica e seguindo um processo que escapa à sociologia e se desloca para a cibernética, a realidade transfere-se para o espectáculo. Agora, só o espectáculo é real». Creio não haver nenhuma dúvida de que ainda hoje é este imperativo que vigora. Basta assistirmos aos nossos telejornais. O pior do teatro sem a catarse, que é o melhor dele.

O inquietante é que: «com […] a realidade identificada ao espectáculo, a planificação não só se torna possível como só há lugar para ela.» E com isto, a ausência da liberdade, uma espécie de morte. Sem resistência, e é isso que é trágico.

Discorre seguidamente sobre como o próprio plutocrata se vê esfumado no meio do espectáculo, e de como funciona o mecanismo da planificação. Mas não pretende este texto tornar-se paráfrase do livro que o inspirou. Por isso, remeto para uma leitura atenta destas páginas, nomeadamente para as consequências da planificação geral das artes, palavras aflitivas de lucidez, sobretudo no que se refere ao teatro, com os belos teatros pelo país fora encerrados ou demolidos; contudo, «às ‘companhias de actores’ que teimam em persistir, dá-se-lhes a esmola de um subsídio e improvisam-se para elas espaços impróprios em armazéns abandonados».

Dá exemplos de gigantismo e gosto pelo sepulcral em casos, factos, construções, edifícios e orçamentos que em lugar da cultura cultuam o vazio espectáculo do vazio, transmitido por um único e multiplicado palco chamado televisão, criando hordas de indiferentes multidões hipnotizadas.

Vejamos:

«A indiferença, sendo a anulação de todas as diferenças ou determinações que distinguem e afirmam a personalidade dos homens, a individualidade dos seres e a singularidade das coisas, é já exaustão realizada, o niilismo enfim alcançado. Aparece como condição para se ter lugar no espectáculo, mas ultrapassa-o. Põe fim à época em que só é real o espectáculo e anuncia a época em que só o vazio é real».

 Numa sociedade de enganos como aquela em que vivemos, é tão difícil afirmar a verdade, que só mesmo um homem do teatro, com o que o teatro tem do domínio infantil, escondendo-se atrás da sua máscara de bobo, a que aqui chama «Ernesto Palma», consegue dizer que o rei vai nu.

Não queremos, não temos de, e talvez não possamos concordar com tudo, admitir esta análise na totalidade seria, talvez deitar por terra todo o ideal de uma geração, no que se refere à mais recente revolução, mas às vezes, para que algo se salve, é preciso ter a coragem de arriscar tudo perder. Porque vai haver outra revolução daqui a umas décadas, um século, dois, menos, o plutocrata saberá melhor do que nós, pois é obra dele, e seria lamentável, talvez trágico, que não tivéssemos aprendido nada com este livro.

 

Lisboa, 19 de Outubro de 2022

 

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* Palma, Ernesto, O Plutocrata, Ed. Serra d’Ossa, Vila Viçosa, 2009. 1ª edição: Edições Ledo, Lisboa, 1996.