UNIVERSO TÉLMICO. 54

26-09-2017 10:33

Agostinho da Silva: retrato do filósofo enquanto drama*

Pedro Martins

 

Confesso-vos que não fui feliz na escolha deste título. Não creio que Agostinho possa caber num retrato, que é uma imagem fixada na imobilidade e se presta à veneração dos altares, o que ele, por certo, lamentaria.  

Com palavras suas direi agora, do que em seguida vos vou dizer, que não descobri nada: vem tudo em Cortesão.   

O historiador definiu o homem português segundo três virtudes básicas: a hombridade, a inquietação e a plasticidade amorável.

A hombridade, comum a todos os iberos, não é apenas um sentimento de independência individual; significa também a consciência austera da dignidade humana e do valor do indivíduo e traduz-se em inteireza de carácter e afirmação intimorata da virtude e da verdade.

No castelhano, esta hombridade exaspera-se e desvia-se até à afirmação amoral do indivíduo; no homem português, combina-se com a plasticidade amorável, que dá ao espírito, exaltado pelo amor, uma capacidade eminentemente compreensiva, tanto para comunicar como para apreender. É um dom de simpatia e comunicação cordial que lhe permite dar e receber, sem alterar o seu fundo próprio.

Foi o que sucedeu no Japão, onde os portugueses deram bem mais do que receberam, mas de onde acabaram expulsos, por se terem recusado a abjurar a sua fé cristã.

A inquietação, comum aos povos ibéricos de raiz semita, ganha uma tonalidade específica no português: é ela que explica a sua hombridade plástica, por confronto com a hombridade rígida do castelhano.

Hombridade, inquietação, plasticidade amorável: eis Agostinho, como sabemos pela biografia, de muito recomendável leitura, que dele escreveu António Cândido Franco e pelo livro de Risoleta Pinto Pedro sobre a alegre inquietação da sua literatura.

Logo em 1957, em Reflexão, Agostinho fará notar que, ao invés da França, «do lado de Espanha ninguém sacrifica a personalidade à convivência», para depois observar que a maior façanha de Portugal foi ter resistido a Castela, para assim poder cumprir o seu dever de ser católico: isto é, fraternal e universal.

Daqui parte o seu ecumenismo. Por longos anos, a busca da unidade será para o filósofo mero proselitismo de conversão a um cristianismo vincadamente paraclético: a partir da unidade essencial do Espírito, procura desenvolver a universalidade significada na etimologia da palavra católico.

Como escreveu Álvaro Ribeiro, «a teologia, em Portugal, não é exclusiva, nem predominantemente cristologia». Em 1964, em “Ecúmena”, afirma Agostinho: «A razão voluntária essencial de me ver católico não seria a existência de um Deus Pai ou de um Deus Filho; seria a crença no Deus Espírito Santo». E, pouco adiante, acrescenta: «é o Espírito quem torna todas as regiões aceitáveis, embora só seja verdadeiro o cristianismo, porque só o cristianismo o põe como Deus; e, se fordes fiéis a este culto do Espírito, podereis ir ao encontro de qualquer religião e qualquer religião poderá vir a vós, porque continuareis fiéis ao essencial do cristianismo.» 

A primeira parte desta última citação é inaceitável; a segunda permite compreender o drama do filósofo, na medida em que lhe revela a preocupação de permanecer português: receber do outro, sim, mas sem que isso implique a perda de uma identidade que, antes de mais, é religiosa.

Já em Reflexão, de modo revelador, Agostinho distinguira os Portugueses de Judeus e Mouros. Com condescendência, lembrara, porém, como os homens de nação assim tornados estrangeiros assistiam reverentemente a esse culto do Espírito Santo que, nas suas palavras, «descera em novo Pentecostes sobre a nação portuguesa, sagrando-a para seu apostolado».

Este Agostinho brasileiro, homem de Igreja que persegue ardentemente o desígnio da Fraternidade, alerta-nos para os riscos heterodoxos: quem pensa com audácia e argúcia, tende a agir sem caridade perante os menos aptos dos seus irmãos. Deve, pois, obedecer com humildade à hierarquia, o que tanto vale para um Lutero como para Joaquim de Flora, a quem, por mais de uma vez, criticará Agostinho o anúncio do fim da Igreja e de uma terceira revelação no palco da História. Na sua visão, «foram os portugueses mais largos e se fixaram no Cristo, como verdadeiro e último profeta», enquanto o calabrês foi estreito «por não ver que, na ida de Jesus para que o Espírito viesse, nada mais se estava afirmando que a perfeita espiritualidade do Consolador».

Foi isto escrito em 1964, e Agostinho, no seu afã de arrebatar ao Islão o selo da profecia, chamando a Cristo verdadeiro e último profeta não pode deixar de evocar a primitiva Igreja judeo-cristã de Jerusalém, chefiada por Tiago, o Justo, que professava a cristo-angelologia do Verus Propheta, arquétipo celeste sucessivamente manifestado na héptada do mistério: Henoch, Noé, Abraão, Isaac, Jacob, Moisés e Jesus, este último o derradeiro suporte terrestre das hierofanias do Adão Celeste. Sabemos de tudo isto por O Paradoxo do Monoteísmo, de Henry Corbin, autor que Agostinho bem conhecia e recomendou a António Telmo, para que o discípulo pudesse erguer a sua prodigiosa desocultação de Camões; mas não sabemos se a leitura de um outro livro do francês – No Islão Persa – o não terá levado a reconciliar-se com Joaquim.

Na verdade, Corbin, ao interpretar Flora, reconduz ao mistério íntimo de cada alma, e não à imanência da causalidade histórica, a sucessão da Igreja de Pedro pela Igreja de João própria da Idade do Espírito Santo: «É que o tempo existencial» – escreve Corbin – «quebra a trama do tempo histórico para cada alma que penetra no mundo do Espírito e antecipa o mistério da morte».

Pela antecipação do mistério da morte se pode definir a mística, domínio a que Agostinho assimila a quinta-essência da religião, pela inefável experiência que supera a oposição entre sujeito e objecto. Inferior à religião é a teologia, que o filósofo não pode distinguir com segurança da filosofia. Por certo tem apenas que «filosofia separada de teologia é invenção do Diabo»; e aqui convirá lembrar, de novo com Álvaro Ribeiro, que «incorre no perigo de não compreender o pensamento português quem levar ao extremo a distinção e a separação, talvez válidas para culturas estrangeiras, entre filosofia e teologia».

A teologia é critério que permite aferir o desenvolvimento do desígnio ecuménico de Agostinho. Na Educação de Portugal, escrita em 1970, já sob o influxo invencível da Liberdade, propõe, para não mais a abandonar, a igualdade de tratamento teológico e político de todas as religiões, concebidas como os vários aspectos da religião do Espírito, cujo Evangelho, definitivo, terá por língua o Português. Não se trata agora de desenvolver a plena vocação universal do cristianismo, mas de considerar uma nova religião. Como, no ano seguinte, dirá em “Nota a cinco fascículos”: «foi até agora a Igreja Católica uma parte da Igreja Cristã; consistirá fundamentalmente a metanoia em ver a Igreja Cristã como uma parte da Igreja Católica, de quem sejam outros componentes os anglicanos e os budistas»

Porém, ainda em 1971, em Goa – Cadernos Teológicos, o seu heterónimo Frei G. H. desconcerta-nos, ao afirmar da religião do Espírito Santo: «é coisa que acho nunca poderá haver, embora se lhe possa prestar culto dentro de outras religiões», pois «o Espírito Santo é o centro abstracto, o ponto simultaneamente ideal e existente, só pensado e real, em que se encontram todas as religiões; como o ponto importante e indispensável de uma roda é exactamente aquele que nela se não move, assim toda a actividade religiosa vem do Espirito, nenhuma religião é sem ele concebível e todas a ele se dirigem».

Três anos depois, será com aparente relutância que Agostinho escreve “Sobre Ideia de Deus”, texto em que a influência de Sampaio Bruno vai muito para além do título. Com efeito, o que pensa sobre esta matéria reproduz a teologia de Frei G. H. E acrescenta:

 

«Mas há outra razão que me tem feito guardar silêncio sobre o assunto, imitando o que fez aquele lendário, ou não, rei romano, ou etrusco, que para o fim da vida adorava a deusa Tácita, e não imitando os mestres zen para consumo da Califórnia, que, com as melhores intenções do mundo e aumentando ao mesmo tempo a felicidade espiritual de Mr. Jones e o depósito no banco, nos declaram que sobre o Absoluto nada há que dizer, e o dizem abundantemente em volumes anuais desprendidos e gordos. É que efectivamente só podemos falar do que é relativo».   

 

E que nos diz ele a este propósito?

Não nos devemos iludir com a aparência de algum vocabulário vinculado à teologia cristã. Agostinho pensa como um cabalista. Ao distinguir Deus, ou o Espírito, ou o Absoluto, da pessoa do Pai, o filósofo põe a Trindade como uma emanação, pois, conforme escreve, «o mundo explode de Deus, ou Deus explode em mundo», e um cabalista falaria aqui do Ein Sof e da árvore das sephiroth que o manifesta. Na verdade, a ideia da criação ex nihilo é incompatível com um Deus absoluto de cuja totalidade nem mesmo o mal Agostinho se permitirá excluir, e um cabalista falaria aqui de Geburah. E ao lembrar que, em física, a expansão e a contracção do Universo são simultâneas, evoca o modelo cosmogónico da actividade divina que, segundo a Cabala, tornou enfim viável a existência do mundo.

É bom que se fale aqui de esoterismo, ou não confessasse o ecuménico Frei G. H. o seu desejo de ir aprender sufismo em Ormuz; e não entrevisse Agostinho um deus imanente em cada homem. Quando, em Educação de Portugal, proclama que «ecumenismo não é contrato, é vida», e «lhe serão sacramentos símbolos só», e considera «todas as religiões como os vários aspectos» da religião do Espírito, antecipa e amplia o Contributo maçónico para o diálogo entre as religiões do Livro, estudo em que André Benzimra intenta recuperar o grande segredo de reconciliação desses Templários tão do apreço de Agostinho que bebiam o mesmo vinho dos sufis e dos cabalistas.

O diálogo, quase nunca ensaiado, do seu ecumenismo religioso com a gnose da iniciação poderá ser proveitoso. Só o esoterismo, que considera os princípios, permite realmente a superação dos dogmas. Se, como Agostinho imagina, «Deus brilha no reverso das medalhas exactamente como no anverso», e se o esotérico está para o interior como o exotérico para o exterior, talvez em tudo isto se vislumbre um sentido preciso para o convento ecuménico de Frei G. H., onde de cada um se espera que se aprofunde tanto na sua religião que encontre as dos outros.  

Extremamente ambicioso foi esse ecumenismo, ao pretender abarcar o candomblé, o agnosticismo e o ateísmo, quando se poderia ter cingido ao que, então como hoje, lhe estaria mais próximo e seria mais urgente: o conflito entre judeus e árabes. Mas a verdade é que Agostinho, na sua prospectiva da década de 70, quase sempre omite o judaísmo; e já nos anos 50, em Reflexão, chegara a recuperar, com evidente acrimónia, a polémica teológica cristã medieval contra os judeus. Ainda aqui, por um presumível recalcamento marrano, revela-se Agostinho medularmente português. Pena foi que não tivesse podido relacionar «os desterrados religiosos» que foram construir o Brasil com a difusão perene, em terras de Vera Cruz, do culto do Divino, para o que lhe faltou conhecer os estudos paulistas de Anita Novinsky e ter prestado atenção ao que Moisés Espírito Santo lhe poderia mostrar.

A fazer fé em Frei G. H., duas convicções parecem mover Agostinho nos vastos territórios que vimos percorrendo: «uma, a central, alicerçada, além de tudo, pelo que meditei no candomblé da Casa da grande Olga de Alaketu, e que é a da Fé que me liga às crenças joaquimitas e, portanto, às mais puras das dos nossos povos de origem portuguesa ou ao português aculturados; a segunda, periférica, a de procurá-la e encontrá-la em todas as religiões, quer as do Deus Ausente, quer as do Deus Presente.»

Nesta relação, necessariamente hierárquica, entre o centro e a periferia, de novo se confrontam o «rijo cerne da hombridade» propagado pela irradiação da plasticidade e a tendência dissolvente do que, nesta, é já receptividade. Entre avanços e recuos, todo o drama hesitante de Agostinho da Silva, de que fomos colhendo sinais, se joga aqui.

Bem mais do que as filosofias dadas aos prelos, prezava ele as «vidas filosóficas». Neste sentido, o testemunho com que quase termino será da maior relevância, se nos lembrarmos de que, para Agostinho, pelo «Filho, divino, sacrificado e salvador», pôde o homem «na sua dor ter companhia»:

 

Um dia, recebi em casa um telefonema de um senhor que se dizia filho de Agostinho da Silva e que, soube-o depois, exercia o múnus de Professor Universitário no Brasil. Diz-me quem era e o que pretendia: “o meu pai sempre nos pediu que não o deixássemos morrer sozinho. Com isto queria significar que desejaria um sacerdote nos últimos momentos da sua vida”. E acrescentou: “tendo em conta as conversas que tínhamos a seu respeito, julgo que ficaria contente, se o sacerdote fosse você”. Claro que disponibilizei-me de imediato (fosse quem fosse o Agostinho que precisasse de mim). Apresentei-me logo no Hospital S. Francisco Xavier. Sorriu, tomou a minha mão e mostrou vontade de falar o que, naquele momento, já lhe era impossível. Mantive com ele um diálogo gestual, que resultou em pleno. No fim, com o seu consentimento, administrei-lhe a Unção dos Doentes e dei-lhe a Absolvição geral. Não tenho capacidade para exprimir a emoção e a alegria dos dois.

 

São palavras de Dom Manuel da Silva Martins, Bispo, hoje Emérito, de Setúbal. Por elas porventura se verifica que, no fim da vida, Agostinho refluiu ao «rijo cerne da hombridade», o qual, como ensinou Cortesão, significa «inteireza de carácter, tenacidade e fidelidade a todas as tradições da terra e de uma cultura multissecular».

Foi Agostinho aquilo que era. E assim se se cumpriu Português.

 

* Comunicação apresentada ao "Dia Literário Agostinho da Silva", que se realizou no dia 24 de Setembro de 2017, no Pequeno Auditório do Centro Cultural de Belém.