UNIVERSO TÉLMICO. 49

07-03-2017 15:33

Agostinho e o triunfo da entrevista

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Este livro é um pequeno grande objecto de recordação, uma pedra de desagravamento, que não corrigindo nem substituindo o que deveria estar a acontecer, isto é: a edição e reedição da obra de Agostinho da Silva, como Renato Epifânio muito bem alerta no seu importante e sintético prefácio, importante pela frontalidade, contudo ajuda a tirar da sombra esta paralisação, e contribui para um apesar de tudo impossível consolo pela situação lamentável em que se encontra a monumental obra...

O livro lê-se com muito agrado, como todos os textos de Agostinho, e para além da entrevista propriamente dita, os textos complementares (prefácio, nota editorial e posfácio) também são de assinalar. É, por diversas razões, um livro histórico. Porque retoma uma entrevista histórica, a última dada à imprensa, em 93, ao Jornal Raio de Luz de Sesimbra, na pessoa de três entrevistadores: José Pedro Xavier, na altura director do jornal, e dois então jovens jornalistas: António Ladeira, actualmente poeta e professor de literatura nos EU; e Pedro Martins, escritor na área da reflexão filosófica, criador e coordenador do PAT.VO e do GEAS. A acrescentar a essa anterior razão, o livro apresenta informação importante que a peça jornalística, naturalmente, omitia, para além de integrar uma série de publicações da colecção Nova Águia, da editora Zéfiro, série com evidentes sinais de tendência para crescer.

Esta entrevista, na sua versão original, gravada, permaneceu entre 1993 e 2014 em hibernação nas cassetes que viajaram com António Ladeira para o seu êxodo no Texas e lá repousou arquivadamente todos estes anos, até ao momento que os astros desenharam para o seu desocultamento. Nelas, os dois jornalistas de então, Pedro Martins e António Ladeira, aos quais se juntou Rui Lopo na preciosa tarefa de transcrição, aperceberam-se que uma grande percentagem do material gravado não fora publicada. Assim nasceu o segundo livro gerado no seio do GEAS, acarinhado pelo mesmo jornal Raio de Luz e seu actual director António Marques, que em breve texto chama a atenção para a forte ligação de Agostinho da Silva a Sesimbra.

Na nota editorial, Pedro Martins, António Ladeira e Rui Lopo evocam o título da entrevista original que é uma citação de Agostinho: «A Península Ibérica deveria ser guia do mundo». Isto recorda-me uma conversa recente com um amigo de Marselha com quem Agostinho teria gostado de conversar. Dizia-me ele que estava a pensar vir viver para Portugal e aqui fazer durar a sua vida até ser chamado para o Eterno, por aqui ser ainda o único país onde é possível ser patriota e nacionalista sem se ser nazi ou de extrema direita.

Este título, esta primeira publicação em jornal, é a primeira etapa de um percurso que viria a revelar-se muito mais longo do que os intervenientes de 93 teriam imaginado. Numa segunda fase, a entrevista saltou do jornal e voltaria a ser publicada na terceira parte do livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, em 2014. Mas Agostinho foi um cruzador dos mares e dos ares, e a viagem da entrevista não terminaria aqui. Voaria do Texas novamente para Lisboa, o Atlântico estava-lhe na vocação. Mostraria, na chegada, que quatro quintos do que fora gravado permanecia inédito. É a terceira etapa, a descoberta. Ou redescoberta. Culminando num quarto passo: a publicação autónoma em livro. Acrescentado o prefácio de António Cândido Franco e o posfácio de João Ferreira. Diferentes latitudes, diferentes gerações, a mesma amizade pela personalidade, a mesma admiração pelo carácter, o mesmo respeito pela obra.

É, assim, um livro que alia a didáctica dos estudos à evocação da figura, a fluência da conversa e a sedução do pensamento.

Na sua reflexão, António Cândido chama a atenção para um muito significativo acréscimo de dramatização do texto publicado em 93 para o livro. O que é natural, dada a extensão significativa de texto acrescentado.

Acentua também, e isto é muito importante, relativamente à literariedade da escrita de Agostinho, a sua habilidade e domínio de vários registos, entre o oral e o escrito, não se limitando a um estilo.

Assinala igualmente a importância que o género entrevista foi progressivamente adquirindo na expressão de Agostinho, possibilitando a este conversador, com o passar dos anos, manter o ritmo de comunicação com as pessoas.

A entrevista permite-lhe, parece-me, acentuar, pela oralidade, uma já característica do seu estilo de escrita que é a coloquialidade e a vivacidade. Não surpreende pois, que num conversador por excelência, a entrevista floresça.

Faz lembrar a importância de algumas entrevistas do seu amigo e compadre António Telmo, mas no caso deste por razões de conteúdo, não de frequência ou estilo.

Em Agostinho são tantas que, como diz António Cândido, «chegam bem para criar […] um compartimento próprio» onde alterna a narração com o discurso directo, formando «quadros poéticos vivos, embutidos em conversas».

Discurso directo que frequentemente não constitui uma resposta ao entrevistador, pois a partir das perguntas, o que muitas vezes faz é discorrer, com constantes digressões, voltando sempre a apanhar o fio. O discurso directo é o diálogo que reproduz/cria/inventa, daqueles de quem fala, ou entre eles. Antecedido e seguido do discurso do narrador, como é o caso, a propósito de a Espanha se ter apropriado da designação que partilhávamos como habitantes da península, o protesto de D. João II:

«D. João II protestou. Disse: Espanha não é um país. Espanha é a Península. Nós, portugueses, somos “portugueses da Espanha”. Que ideia é essa de vocês arrebatarem o nome e ficarem sozinhos com ele? Larguem o nome! Eles nunca largaram o nome.»

O início ainda é antecedido pela marca do narrador «disse» seguido de dois pontos, mas a passagem do final do discurso de D. João II para o do narrador é feita de modo imediato, quase abrupto. O «colosso» no seu melhor.

Na alternância entre as perguntas e as respostas, o que ressalta é, ainda que respeitoso do lado dos entrevistadores e coloquial do lado do entrevistado, um tom de companheirismo, demonstrando sintonia que não é propriamente concordância, mas que surge da empatia. Igualmente passa, pelas entrelinhas das perguntas, uma boa preparação; um conhecimento implícito e não superficial dos temas, o que é de salientar; uma prontidão na articulação entre a resposta e a pergunta seguinte.

Mas também é divertido ver a forma habilidosa como, por vezes, o entrevistado se desvia da pergunta, caso a questão não lhe interesse ou desencadeie algum outro tema sobre que considere mais apaixonante discorrer. É o caso da pergunta acerca da Universidade enquanto elite intelectual, que quase ignora, para falar de tema mais da sua preferência, como o estudo das tartarugas.

O que é encantador nele e cativa e conquista o mais duro e sério racionalista é a candura, a inocência, o atrevimento com que profere heresias, a ponto de desarmar qualquer um, abrindo brechas no pensamento dito normal, lógico ou comumente aceite.

Um dos seus temas de eleição é o divino, embora não o trate a partir de nenhuma religião em particular, mesmo quando manifesta simpatia por uma ou por outra, como é o caso do cristianismo, mas o pensamento de Deus é desenvolvido frequentemente a partir do pensamento de Portugal, que vê na sua dimensão eterna, para lá do espaço que ocupa:

«Porque eu digo, podia ser que Portugal, numa catástrofe geológica qualquer, ou antropológica, sumisse. O que não sumia era esse pensamento. O que não sumia era o pensamento defendido por eles na vida da plenitude do Divino, a plenitude de Deus».

Fala de tudo: desde as tartarugas, a temas de um altíssimo grau de complexidade, e o tom é didáctico. Acima de tudo, é um professor a explicar coisas complexas de modo natural, porque profundamente interiorizadas. Nunca se preocupa em, e até evita, passar por erudito. Assim como não distingue temas através da gala ou da sumptuosidade da palavra. A sumptuosidade é mais criada pela vivacidade e por vezes quase gongorismo das imagens. Também não distingue personagens pelo seu estatuto, nem mesmo pelo grau de admiração que por elas nutra. A familiaridade é o modo com que trata todos, mortos ou vivos, socialmente desvalorizados ou o contrário. É o caso da mais que insuspeitamente admirada rainha Santa Isabel, que trata por «Isabelinha». É a ternura. Mas também a fraternidade. Todos os homens são irmãos e não há nenhuns acima dos outros. Aprendamos com ele.

Apesar das frequentes alusões do seu discurso ao divino, o foco é, sempre, a vida. A sua inspiração são os portugueses do passado, os portugueses das aventuras, os portugueses da História, os portugueses de sempre, com destaque para os das viagens das descobertas, cujas palavras inventa, ou melhor, cita como se estivesse em comunicação directa com eles e os ouvisse dizer: «Não basta viver no divino. É preciso também viver no concreto, no real, naquilo de todos os dias», rematando com a sua já retórica interrogação que não pressupõe uma negativa: «não é?». Porque o argumento vem de autoridades, que são «os portugueses».

A entrevista, propriamente dita, inicia-se com um tema muito caro a Agostinho da Silva: a missão de Portugal no Mundo. Mas não é com pompa que trata tão pomposo tema. São expressões coloquiais e metáforas do quotidiano que este pedagogo usa para falar de temas considerados importantes. É o caso da expressão varrer a casa, a propósito da União Europeia. Fica tudo dito e os pontos colocados sobre os ii, sobre quem varre e sobre o estado da casa a necessitar de grande varridela. Ou limpeza. Para bom entendedor…

E sempre presente a lembrança da poesia, que para ele não se limita canonicamente aos textos poéticos, mas é muito mais ampla: um espírito e um estilo e uma forma extensa e extensível de viver a vida.

Um tema que tem proporcionado alguma polémica, a propósito do culto do Espírito Santo, é o menino. Por vezes é o próprio Agostinho o criador do equívoco, pela insistência que coloca na coroação da criança, mas nesta entrevista há um momento em que quase esclarece, quase se demarca do seu próprio discurso, quando diz:

«Então o que é? É porque eles julgavam que o menino era capaz de imperar no mundo, de governar o mundo? Não, de jeito nenhum! O que eles achavam é que é o exemplo melhor que temos do homem, e que o homem é a coisa suprema do Universo. Não há nada no Universo que exceda o humano.»

Aqui mostra que não é literalmente que se deve fazer a leitura, mas pelo símbolo, pela metáfora. O que já não entra em contradição e quase converge, com estudos que mostram que na tradição mais remota o coroado era um adulto. Ele próprio afirma que ali a criança é o símbolo do que existe melhor no humano.

Aproveitando para fazer a ligação às suas preocupações com a escola e seu papel deseducativo. Mais à frente afirma: «as escolas deseducam as pessoas».

Pelo meio destes temas grandes e sérios que ele trata com um misto de naturalidade e entusiasmo, não podemos ignorar o pitoresco, como cores com que vai salpicando a conversa. É o caso, que relata, de Roberto Carneiro, ex-ministro da educação, coroado Imperador aos quatro anos. De Imperador do Espírito a ministro, uma despromoção, digo eu, seja-me permitido o aparte. E talvez uma razão para não se coroarem crianças. É demasiado pesada, a coroa sobre uma cabeça de menino que ainda pode vir a ser ministro. Sabe-se lá que consequências poderá ter…

Tema importante que irá ser magnificamente abordado por João Ferreira no posfácio, é a questão da filosofia, que Agostinho aproxima, como faz em relação a tudo, do quotidiano. Fazer filosofia sobre o requeijão será, para ele, a mais elevada das filosofias. Aquilo que designa como a «atenção ao concreto», a vida material ou o espírito na matéria, ou, melhor ainda, a matéria como expressão do espírito, Deus «inteiro e pleno no mundo». A recorrente ideia de aliar a existência na carne ao anseio de plenitude. O que está, de algum modo, relacionado com a busca do poético com que salva o quotidiano da banalidade. E nenhum tema, nem a regionalização, fica fora desta outra forma de filosofia, ou, como diriam Huxley e Telmo, da «arte de olhar».

Especificamente em relação ao tema da filosofia portuguesa, que como já referido será o centro do texto de João Ferreira no final do livro, Agostinho vai igualmente pôr os pontos nos ii. Para ele, não está em causa a existência da filosofia portuguesa, mas não a situa na Universidade. Os «homens que fazem a Universidade […] não têm filosofia portuguesa.»

E põe a tónica no aspecto operativo da filosofia portuguesa, aquela que se traduz em comportamento, por se impregnar no ser. Dá, então, a sua definição do que é ser filósofo: «olhar a vida e pensar sobre ela»

Não se trata da recusa do pensar, mas da recusa do pensar estéril, sem consequências. Elege um pensar com visibilidade no «comportamento», um conceito muito do seu interesse, nomeadamente quando, a propósito da Seara Nova, afirma que, independentemente de não se ter de concordar com tudo, existe naquele projecto «um plano de comportamento de Portugal». O que valoriza.

Embora não coroando o pensamento como coisa abstracta desligada da vida e do comportamento, são várias as passagens em que, sem que o faça explicita ou deliberadamente, acaba por reconhecer, admitir e admirar … o pensar crítico. Como é o caso da passagem em que fala dos portugueses autores dos primeiros textos sobre a China, como «gente crítica […] gente capaz, e […] gente no fundo da qual há sempre a capacidade de julgar».

Ele próprio é o exemplo vivo do pensamento crítico. Nomeadamente sobre nós mesmos. Sobre cujo tempo lamenta faltar a componente da proeza. E aqui é totalmente coerente com o que defende num texto sobre educação que estudei e sobre que falei recentemente, em que, a propósito de Baden-Powell, exalta o risco e o perigo, e portanto a proeza, como condições necessárias à aprendizagem.

No seu magnífico posfácio, o companheiro de Brasília, João Ferreira, considera esta entrevista «uma peça testamentária» contendo «o fermento principal de todo um discurso elaborado durante uma vida inteira», vendo não apenas nas repostas, mas também nas perguntas, o «discurso essencial arquivado nas principais obras do Mestre», como a ideia de fraternidade e cooperação, uma das preocupações do seu pensamento essencialmente educativo. Liga-se esta ideia à da sua concepção de filosofia, uma «filosofia dinâmica» ou arte de viver. Como não gostava de rótulos, também não queria que lhe chamassem filósofo, mas existe coerência entre a definição que dá de filosofia como «dialéctica da arte de desembaraçar» e a sua própria atitude prática e teórica: «Olhar a vida e pensar sobre ela». No seu caso, «em nome próprio». E ousamos nós, por isto mesmo, aproximá-lo da filosofia portuguesa, que não desconhecendo as filosofias estrangeiras, a elas não se submete, com elas não se emaranha. Como ele, é a filosofia portuguesa «uma filosofia em nome próprio». Desembaraçada.

João Ferreira irá desenvolver, em torno do tema, larga e importante reflexão a que, por merecimento, dedicarei texto à parte. Como A Última Entrevista de Imprensa, talvez por contágio, também eu desdobro e prolongo esta reflexão à margem da Entrevista. A culpa é do insaciável Agostinho, esse doce e alegremente inquieto e feroz colosso.

 

Biblioteca Municipal de Ponte de Sor

25 de Fevereiro

(texto de apresentação do livro A Última Entrevista de Imprensa, Ed. Zéfiro)