UNIVERSO TÉLMICO. 48

12-02-2017 22:54

Moisés

António Carlos Carvalho

Todos sabemos que Agostinho da Silva gostava de contar histórias – eu próprio passei por essa experiência inesquecível na casa dele perto do jardim do Príncipe Real, em Lisboa; foi lá, por exemplo, que ouvi pela primeira vez falar do episódio de Canudos e de António Conselheiro, a última expressão do sebastianismo «ao vivo». Por isso, não é de estranhar que Agostinho tenha escrito biografias – escrever uma biografia é contar a história de uma vida por escrito.

E assim surgiu A Vida de Moisés, publicada pela Seara Nova em 1938 – fixemos esta data, porque esse é também o ano da tristemente famosa «Noite de Cristal», ou noite dos vidros partidos, os vidros das montras de lojas judaicas na Alemanha, anúncio do que viria a seguir, até 1945.

Contar a vida de Moisés em quarenta páginas é uma proeza, convenhamos …

Também sabemos que, mais cedo ou mais tarde, toda a gente acaba por «tropeçar» em Moisés – lembremo-nos que, nos anos 60 do século XX, nos EUA, por exemplo, Moisés era constantemente invocado pelos negros americanos, envolvidos na luta pelos seus direitos cívicos.

A começar pelos artistas: todos conhecemos o Moisés de Rembrandt ou o de Miguel Ângelo. Mas Moisés surge mesmo onde menos se espera – no portal sul do Mosteiro dos Jerónimos, bem explícito com as Tábuas da Lei, ao lado direito do Infante, ou até no portal oeste, «disfarçado» de Menino Jesus, mas deitado numa cesta, não nas palhinhas de uma manjedoura…

Mas voltemos ao Moisés de Miguel Ângelo: sempre que visitava Roma (coisa que fazia frequentemente), Sigmund Freud passava horas a contemplar a estátua de Moisés, totalmente fascinado. E foi esse mesmo Moisés que inspirou Freud a escrever a sua última obra, O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, que teve uma primeira parte publicada em 1937 e a versão final em 1939.

Então percebemos esta coincidência extraordinária: Freud e Agostinho interessaram-se e escreveram ao mesmo tempo sobre a mesma figura: Moisés.

A Vida de Moisés, de Agostinho da Silva, é supostamente uma biografia, mas se o é, é certamente muito estranha, invulgar, algo que nos deixa perplexos. Vejamos: quando escrevemos uma biografia, temos o cuidado óbvio de procurar as informações essenciais: nomes dos pais, dos irmãos, etc. Mas quando lemos esta biografia de Moisés verificamos que Agostinho não nos dá esses nomes – só o do pai, a quem chama Levi (nome da sua tribo) e não Amram, e de Aaron, sem nunca dizer que este é o irmão de Moisés; a mãe, Jokebed, e a irmã, Myriam, nunca têm direito a nome …

António Cândido Franco tem razão: Agostinho era um «narrador de ficção», criava «mundos fictícios» – mesmo à custa de diversas invenções, digo eu.

Exemplos: põe Moisés a trabalhar nas obras, como pedreiro, imagine-se, junto dos seus irmãos judeus, a quem incita à revolta, mesmo depois de matar o capataz egípcio e de ser denunciado por isso; diz que Moisés e Séfora tiveram filhos e filhas – filhos, sim, tiveram, Gershom e Eliezer (mas Agostinho troca-lhes os nomes, chama-lhes José e Levi), mas filhas não, embora invente nomes para elas, Raquel e Maria… A seguir, coloca a visão da sarça ardente no campo, junto ao poço de Madian, e não no alto do monte Horeb… O episódio em que a mão de Moisés fica de repente leprosa e logo a seguir sã (e que acontece durante o diálogo com Deus junto da sarça ardente) é contado por Agostinho como sendo apenas um prodígio feito por Moisés perante os anciãos do povo… Refere que os escravos judeus  no Egipto tinham magistrados (leia-se juízes), coisa que só viria a acontecer na travessia do deserto e por conselho do sogro de Moisés, Jetro… Apresenta os escravos judeus a apropriarem-se do ouro e da prata «dos pagãos», «como vingança dos maus tratos» que tinham recebido dos egípcios, o que é inacreditável e pura invenção – esse ouro e essa prata foram trazidos do Egipto pela enorme multidão de não judeus que os acompanharam para o deserto e depois participaram na cerimónia do bezerro de ouro… De Myriam, vidente da água no deserto, nada é dito… Agostinho inventa também uma animosidade e divergência profunda entre Moisés e Aaron, quando o texto bíblico diz precisamente o contrário… E ainda inventa que Moisés pensava que o povo hebreu era «mau, fácil às solicitações da vida criminosa» (sic), quando o texto bíblico conta que Moisés sempre defendeu o seu povo até mesmo da própria ira de Deus … Etc., etc.

Bom, que pensar de tudo isto?

Como foi referido, Agostinho escreve esta biografia e publica-a em 1938. Ora os anos 20 e 30 foram uma época sobretudo marcada pela ascensão ao poder de homens de mão forte e determinada, digamos assim, em muitos pontos da Europa e do mundo: Mussolini em Itália, Estaline na URSS, Salazar em Portugal, Hitler na Alemanha, Franco em Espanha, Getúlio Vargas no Brasil. Homens, esses, que conduziram as massas para os seus objectivos próprios, contra ventos e marés, sem olhar a meios. Foi o tempo do que na Renascença italiana se chamava os «condottieri». O perfil de Moisés que Agostinho nos apresenta aqui é precisamente o de um homem obstinado, «tenaz nos seus propósitos», exigente, o chefe desejado por todos que os irá libertar da escravidão, «fraco na aparência, poderoso no íntimo, como que animado por uma força divina». Nunca lhe chama profeta e muito menos o maior dos profetas.

A Vida de Moisés tem como epígrafe uma passagem do Deuteronómio, na tradução do padre António Pereira de Figueiredo. Podemos, portanto, deduzir que Agostinho leu esse livro, e provavelmente o do Êxodo, em que se fala de Moisés.

Mas leu-os certamente com os olhos de um «narrador de ficção», que ele era fundamentalmente. E não quero ir mais longe nas minhas deduções…