UNIVERSO TÉLMICO. 42

21-09-2016 14:18

LIVRO DOS DIÁLOGOS 

1 - O sentimento de um oriental

Pedro Martins

 

Oriental de Lisboa – Diga-se o que se disser, os aviões foram uma grande invenção.

Atlético de Portugal – …???

O. L. – De outro modo, a viagem teria sido longa, difícil, perigosa…

A. P. – Cheia de escolhos…?  

O. L. – Receio bem que sim. Ou cheia de escolhas. Escolhas como escolhos, escolhos como escolhas, tanto faz, escolha você, vem tudo a dar no mesmo.  

A. P. – Mas que viagem, afinal?

O. L. – A única possível. Instantânea como um pudim Alsa. Prêt-à-porter. Ready made. Um flash, um clarão, um photomaton. O deslumbramento de uma iluminação! Já deveria saber que não vou em fitas… Comigo, só retratos, e à la minute.

A. P. – Mas que viagem, afinal?

O. L. – A única possível. Dos píncaros de Itatiaia para as antenas da televisão. Nas asas de um avião.

A. P. – Julgo compreender. Cavalgar o tigre com o pulo do lobo…

O. L. – E o que é que queria? Que fosse o pulo da pulga?! E a solução de ácidos, ali à ilharga, no laboratório? Já imaginou o pobre bicho a contorcer-se, dissolvendo-se num sofrimento atroz?… Eu vi! Vi pelo microscópio… Um horror!

A. P. – Mas, afinal, aquilo de que me está a falar é do naufrágio de uma pulga…

O. L. – Evidentemente. A pulga não sabe nadar. A pulga foi feita para pular.

A. P. – Como o lobo.

O. L. – Como o irmão lobo, se faz favor.

A. P. – Seja. Como o irmão lobo.

O. L. – Nada de nadar. Devemos antes aprender a flutuar.

A. P. – Mas, no caso da pulga, flutuar não foi solução. Foi dissolução.

O. L. – Deixe-se de brincadeiras! Sabe bem que, em se tratando de ácidos, a solução é sempre a dissolução. Devia cultivar a séria gravidade hierática do novo paradigma. As palavras podem ser cruéis…

A. P. – Como a rasoira da foice que sega a seara nova?

O. L. – Está a confundir tudo. Isso é outra coisa. As espigas não são sencientes. E sabe que mais? Começo a ficar cansado do seu verbalismo infrene. Glossas, considerações, conversações. Flatus vocis! Falar é nadar com a voz. Flutuemos no silêncio.

A. P. – Recordo-lhe que a solução é a dissolução.

O. L. – Não seja parvo! Deixe de se armar em Aristóteles! A dissolução é que é a solução!

A. P. – Cesário, que Pessoa tanto admirou, não ia por aí. Pôs Camões a lutar no Sul, salvando um livro a nado, soberbas naus a singrar, que ele não veria jamais…

O. L. – Pois claro, no Sul! Já era de esperar... Cesário era um nambam, um bárbaro do Sul. Um troglodita ou, pelo menos, um trangalhadanças… Um desengonçado. A mais sublime aspiração do ser humano é a de alcançar a verticalidade inerte de um cabide de espaldar. Espaldar, ouviu? Espaldar!!!  Nada de nadar!

A. P. - Mas… e as naus da iniciação de Pessoa, esse Pessoa que Agostinho tanto admirava?! As naus que esplendiam sob o sul sidéreo?

O. L. - Bah! Patranhas!... Isso ainda é o sentimento de um ocidental. O próprio Kertchy Navarro se afogou num pântano. Por alguma razão foi. Receio bem que os nossos queridos poetas tenham ambos ficado a ver navios. Cesário, o realista, por jamais os ver onde irrealmente os poderia ver, Pessoa pela razão contrária. Pobres vítimas da ilusão. A aeronáutica fez entretanto grandes progressos, sabe? Ademais, há o pára-quedas. É outra segurança. E o paraquedismo, com o seu apelo de sublime vertigem, é, em mim, uma vocação inata e irresistível…