UNIVERSO TÉLMICO. 34
Agostinho da Silva, o marrano do Divino
Pedro Martins
Agradeço à organização deste colóquio o convite que me foi dirigido e saúdo o propósito de se repensar Agostinho da Silva e o seu legado crítica e criativamente. Faço votos de que este desígnio se cumpra. Infelizmente, isso nem sempre tem sucedido nos últimos anos. Quem, pela voz de José Kertchy Navarro, previne que são seus discípulos, se alguns tem, os que estão contra si, prefere, por certo, arrostar a discordância do seu interlocutor a presenciar o espectáculo, lúgubre e ridículo, para o qual, lucidamente, nos adverte António Cândido Franco na biografia que dele escreveu, e que sempre se repete quando topamos «um agostinhozinho, a papaguear de alto a lição do mestre».
A esta luz, pode ser entendido o devocionismo totémico, ainda amplamente vigente, que sobre Agostinho recai. A fixidez sincrónica de uma imagem moldada pela anciania, com o esquecimento da velha máxima de Goethe de que não se anda só para chegar, mas para viver o caminho; a tendência nefasta, daquela tão tributária, ao endeusamento do santarrão oracular, patenteada nas frases soltas, desgarradas, descontextualizadas, a esmo desfiadas, para o pasmo insofrido dos fãs, pela praga cibernética, na razão inversa da presença de Agostinho nas livrarias, agora que parece confinado às feiras de fins de edição e às páginas de uma ou outra selecta; enfim a sugestão de uma autarcia ilimitada, com omissiva abstracção, na formação de um pensamento que, radicado na Escola Portuense, atravessou com fulgor o século XX português – eis factores que contribuíram para desfigurar, desvirtuar, desvirilizar a saga proposta. Agostinho merece mais. Merece, sobretudo, melhor.
O tema que vos trago é “Agostinho da Silva, o Marrano do Divino”. Ao desenvolvê-lo, retomo tópicos do ensaio homónimo com que abri o livro Um António Telmo: Marranismo, Kabbalah e Maçonaria, e acrescento dados novos, lançados na sessão comemorativa do 110.º aniversário do pensador, que o projecto António Telmo. Vida e Obra promoveu no sábado passado, dia da efeméride, na Biblioteca Municipal José Saramago, no Feijó.
Marrano, para abreviarmos razões, é aquele que se converte a outra religião. É o cristão-novo, fruto de uma conversão forçada, como entre nós o foram as do início do século XVI, num estado de terror que perdurou até ao século XVIII, se bem que ainda hoje assistamos, incrédulos mas vigilantes, a tíbias manifestações saudosas dos tempos “gloriosos” do Senhor D. João III e do Cardeal D. Henrique, talvez mesmo entre aqueles que se reclamam do movimento da Filosofia Portuguesa. O anacronismo encerra uma vantagem: é sinal seguro de que esta realidade, felizmente extinta no plano político com o Marquês de Pombal, deixou fundas sequelas nas consciências feridas por séculos de recalcamento, repercutindo-se no curso das gerações até aos nossos dias.
Assim se deverá entender a tese de António Telmo, primeiramente aludida em 1987 em “As Tradições Heterodoxas da Filosofia Portuguesa” e expressamente enunciada, duas décadas depois, no prefácio ao livro Barros Basto – A Miragem Marrana, de Alexandre Teixeira Mendes, onde assume o seu marranismo e nos apresenta Agostinho da Silva como um marrano de estirpe superior, entre outros que fizeram a glória da Escola Portuense.
Vários escritos de Telmo permitem reconstituir uma tipologia do marranismo. Em síntese, falaremos dos que degeneraram no fanatismo, caso dos materialistas católicos cujo recalcamento se transmuta em ódio à religião antiga. Importa lembrar que muitos inquisidores eram de origem judaica. Temos depois os materialistas ateus, como resultado de um esquecimento, de uma prática automática, sem crença, dos novos ritos. E aqui importa lembrar o quadro bíblico do Bezerro de Ouro e a propensão genética do judaísmo à materialidade. Temos ainda a hipocrisia dos judeus secretos, preservando às ocultas, com astúcia, dissimulação e diplomacia, a prática do rito antigo. E se, na visão de Telmo, mais e diversos resultados são possíveis, o caso de Agostinho da Silva, cristalizado no culto popular do Divino Espírito Santo, aí está para o confirmar.
Há o problema da sua ascendência judaica, ainda por averiguar. Mas também uma evidência: o judaísmo é uma realidade cultual, cultural e civilizacional. Não é uma realidade étnica. O que é um judeu? É o aderente ou o praticante da religião do Antigo Testamento. Mas a seguir ao culto, como ensina Álvaro Ribeiro, vem a cultura. E o que, na lição de Moisés Espírito Santo, caracteriza a cultura judaica é o sentido da liberdade, uma forte autonomia individual, a criatividade e a inovação teológica, filosófica, científica e económica (lembremos Moisés, Jesus, Adam Smith, Marx, Freud, Einstein, as muitas dezenas de prémios Nobel). Somarei a errância do andarilho e o gosto do trabalho. Por muito que nos diga que o homem não nasceu para trabalhar, foi Agostinho da Silva um infatigável obreiro, arguindo a debilidade prática de Pessoa e do seu grupinho e transmutando sabiamente o trabalho em jogo, pela mediação da arte. Com Amos Oz e Fania Oz-Salzberger, acrescentarei a loquacidade, a confiança, o humor, a irreverência e a fortaleza.
Mas onde Agostinho, o judeu, se nos desenha melhor, é na literatura sapiencial do Antigo Testamento, onde se lê: “Prossegue a tua vocação”. Esse mesmo Agostinho para quem o principal dever que cada um tem para consigo próprio é o de ser aquilo que é. Bem pode ele, ao debruçar-se sobre Álvaro de Campos – e é bom que nos habituemos aos recalcamentos de Agostinho –, duvidar da ascendência judaica do heterónimo, como se lhe fosse lícito saber mais das criaturas do que o próprio criador; mas é no algarvio de Tavira que, como num espelho, reconhece a decisiva importância daquele preceito, cuja observância merecera a caução de Mestre Caeiro.
De um rascunho de carta de António Telmo para Agostinho da Silva, datada de Granada, 26 de Agosto de 1968, que não sabemos se chegou a seguir para a 59.ª Avenida de Nova Iorque, mas cujo teor vale por si, passo a ler o seguinte:
Meu caro Amigo
Recebi a sua carta. Muito obrigado por ter enviado o primeiro dinheiro. E por tudo o resto.
O Moura também escreveu e diz, entre outras coisas de somenos importância, que o Santiago vai deixar o Centro e transitar para Letras e acrescenta: “Temos de defender o Conceição Silva!” Longe como estou e com notícias dispersas, apercebo-me por conjecturas do que se vai passando nos bastidores. Pelo que a mim diz respeito, naquilo em que posso ser vítima do ódio viperino desses nossos amigos brasileiros, não estou para me incomodar muito com isso. Se, como diz, o Santiago, a Fundação morre à nascença, lá me arranjarei por Portugal. Como, não sei. Mas soube-o eu alguma vez em análogas circunstâncias da minha vida? Agora o seu caso é diferente. Você está no covil dos lobos e ouve ranger os dentes da inveja, o que é bem pior do que escutar muito longe o uivo faminto. Daqui, até se tem pena dos lobos esfomeados de glória e de dinheiro… e de viagens. Parece que o Moura também ouviu uns zunszuns sobre a sua partida para Portugal da boca da hiena, a mulher do lobo. O melhor seria pegar na nossa costela judaica e usá-la como uma picareta para cavar qualquer loja, de vinhos ou de fazendas ou de coisa que o valha, na W3 e deitar um pouco de veneno no copo dos fregueses que a gente sabe. A elas vender-se-ia nylon bem transparente para se rebolarem pelas “calles” de Brasília.
António Telmo sabe mais do que revela, quando afirma o marranismo do compadre. Poderemos, todavia, esquecer o que ele nos diz nesta carta incómoda e procurar mostrar, a partir do que Agostinho deixou escrito, como, na sua obra, se processa o recalcamento. Em Um António Telmo, propus uma sintomatologia, pela qual distingo:
- o recalcamento omissivo: quando a realidade judaica não está presente no discurso, não sendo por isso objecto de representação e de nomeação, bem que logicamente o devesse ser;
- o recalcamento permutativo: quando essa realidade está presente no discurso, e é por isso objecto de representação, embora com outra designação; e
- o recalcamento activo: quando está presente no discurso e é reconhecida – isto é, designada – como tal, para ser contestada.
Telmo vê em Agostinho o marrano superior, capaz de realizar a síntese entre dois credos antagónicos: o judaísmo e o cristianismo. E se para o primeiro a kabbalah e a Maçonaria são vias conciliatórias, quanto ao segundo é no culto do Divino que devemos procurar o segredo da harmonia.
Do francês André Benzimra, provavelmente o maior pensador maçónico vivo, adoptamos a caracterização arquetípica dos credos abraâmicos segundo um princípio electivo. Se as três tradições são completas, cada uma delas privilegia, no culto que presta, um aspecto diferente do mundo divino.
No caso do judaísmo, é Elohim, o aspecto criador da Divindade, o atributo a que preferencialmente se endereça o rito. Melhor dizendo, os Elohim, que nos primeiros versículos do Génesis proclamam a bondade da Criação. No caso do cristianismo, o atributo privilegiado é El Elyon, o Altíssimo, aspecto da Divindade hostil à criação, assumindo características de destruição. Por isso, o Anjo da Morte é o seu valete.
O judaísmo é a religião da manifestação, da produção, da multiplicação. Religião da Terra, a sua principal tarefa é a santificação do corpo, por contraste com o cristianismo, religião do Céu, cuja missão primeira é a da elevação da alma. Ao Islão, culto do Ein Sof, do Deus abscôndito, caberá despertar o espírito.
Assim se compreende que a vida seja para o judeu o maior dos bens, o mais sagrado; e que a única felicidade concebível seja aquela que se pode construir neste mundo. Por isso, a redenção lhe surge como um facto histórico a cumprir-se na Terra, devendo as obras prevalecer sobre a fé.
No período que antecede a partida de Agostinho para o Brasil encontramos n’A Vida de Moisés, de 1938, uma curiosa marcação. Ali nos esclarece, logo no começo, o motivo da inveja que se abatia sobre os judeus, que «eram, de facto, mais inteligentes e activos do que os egípcios».
Inteligência e inquietação, lembrava António Telmo, constituíam os dois indícios de judaísmo sondados pelo faro inquisitorial. Reafirmados até à exaustão em Glossas ou Considerações, inteligência e vontade – e sem esta não se quebra a quietude – serão os pilares da ideação agostiniana na fase seareira.
Nunca como nestes anos esteve Agostinho tão próximo do judaísmo. Ainda que de um modo subconsciente. “Quanto a Deus”, das Considerações, faz ecoar a dualidade cabalística das sephiroth Geburah, o Rigor, e Hesed, a Misericórdia; e “Sobre o êxtase”, do Diário de Alcestes, é um hino à vida terrena e à divina criação, onde o culto dos Elohim claramente repele El Elyon. Mas é em O Cristianismo, de 1942, que esta aproximação mais se pronuncia.
Ali se frisa, na leitura crítica historicista que, por rigorosa, permanece actual, a prevalência da imanência sobre a transcendência; ali se proclamam a bondade da criação e a santidade do corpo. «Jesus acha – escreve Agostinho – que o homem não tem ao seu dispor outra «linguagem de Deus» que não seja a do mundo». E noutro passo: «não há nos Evangelhos um único preceito de ascetismo que envolva violência do espírito sobre o corpo».
Ali se afirma a prevalência das obras sobre a fé, e por isso mesmo se acentua a historicidade da redenção. Faltou a Agostinho concluir – ou, pelo menos, declarar – que, após o desastre de Jerusalém, só com a transferência da ideia do Reino da Terra para os Céus, só com a afirmação, pelos apóstolos, de uma ida ao Reino, e não já de uma vinda do Reino, é que verdadeiramente se cria uma nova religião. Até lá, até esse outro desastre de Jerusalém que ele não levou em conta, e que foi o da repressão de Roma sobre a revolta judaica de 66-70, conduzindo à destruição do segundo Templo e ao fim da primitiva comunidade judeo-cristã reunida em torno de Tiago, Pedro e João, o que há é um ramo, uma tendência ou uma seita do judaísmo, que não se afasta da Sinagoga e que com Paulo, esse sim o verdadeiro criador do cristianismo, irá manter divergências em torno de questões bem mais significativas do que possam parecer aos nossos olhos já muito cristianizados. Como ensina Benzimra:
A ideia cristã de uma circuncisão do coração que poderia substituir com vantagem a da carne é incompreensível e escandalosa para o judeu. A aliança com Deus de nada vale se não for gravada no corpo, no lugar de maior prazer carnal, no lugar anunciado onde se anuncia a multiplicação das criaturas terrestres.
O quartel brasileiro de Agostinho, agora um católico romano, é marcado pelo recalcamento activo. O capítulo V de Reflexão é breviário de antijudaísmo teológico. O pensador mostra conhecer a fundo a polémica contra o judaísmo na Idade Média e faz trincheira com os teólogos cristãos, com seus tratados, diálogos e testimonia, dossiers temáticos compostos de citações do Antigo Testamento, destinadas a mostrar que as diferentes fases da vida de Jesus, a vinda do Messias que por ele se teria cumprido e os dogmas essenciais da fé cristã estavam anunciados na Bíblia hebraica.
Custa ver o Agostinho desta fase contrapondo ipsis verbis «portugueses» a «judeus» e «mouros». O nosso pensador irá ainda escrever, em 1964, em “Ecúmena”, que todas as religiões são aceitáveis, mas só o cristianismo é verdadeiro, por ser o único «que põe o Espírito como Deus», proposição insustentável face ao depurado culto judaico ou ao extremo monoteísmo maometano.
Não se interroga Agostinho, e pena foi, sobre o que verifica na Reflexão: o facto de os judeus não levantarem oposição alguma a assistir reverentemente ao Culto do Espírito Santo. Na sua derradeira entrevista de imprensa, que em Agosto de 1993 me concedeu, e que ainda este ano será publicada em livro, na íntegra, com as partes inéditas, no âmbito do Gabinete de Estudos Agostinho da Silva, recentemente criado pelo Projecto António Telmo. Vida e Obra em parceria com o Centro Cultural Raio de Luz, observa Agostinho que «não há propriamente, nem no que se vê no Brasil, nem na Califórnia, nem na documentação portuguesa, o culto de Deus na festa do Espírito Santo; há o culto do Divino, o culto da obra de Deus».
Eis Agostinho de novo às portas do judaísmo. Após os estudos irrefutados de Moisés Espírito Santo sobre o cripto-judaísmo do culto do Divino, só no plano da recriação mítica, que é onde, bem ao gosto de Pessoa, deveremos, afinal, situar a mensagem profética de Agostinho, se poderá aceitar a redução com que afeiçoa a história aos seus desígnios. O culto é anterior a Dinis e Isabel, e só tardiamente, em âmbito geográfico circunscrito, será a criança nele coroada. Sabemos, por António Quadros, como as coroas utilizadas nas festas do Penedo, em Sintra, se mostravam grandes demais, em meados do século passado, para os meninos Imperadores… Fica ainda por saber se esta criança não será uma insinuação cripto-judaica de Metraton, o Anjo da face da mística judaica, o pequeno Jeová, irmão gémeo da Shekinah, nome hebraico do Espírito Santo, que é frequentemente apresentado sob os traços de um adolescente, para assim se significar um Deus ainda na infância.
Não me deterei na inversão simbólica em que Agostinho recai ao divinizar a criança. Apresso-me a deixar-vos algumas notas sobre a sintomatologia marrana na sua obra, após o regresso a Portugal.
Impressiona o recalcamento omissivo a que, desde Educação de Portugal, de 1970, iremos assistir. Por mais que neste livro o seu ecumenismo se revele já sem peias, no que aliás acompanha o firme propósito enunciado, um ano antes, por Álvaro Ribeiro no final desse seu livro secretamente judaico que é A Literatura de José Régio, nas passagens – e não são poucas – em que Agostinho assenta a sua prospectiva ecuménica no messianismo da religião portuguesa do Espírito, o judaísmo é quase sempre esquecido. Tal a regra, comprovável em passos das páginas 26, 27, 31 e 59 da edição (a 3.ª, de 1996) que utilizei. A excepção aparece na página 50. E o caso torna-se mais notório quando, noutros lugares do livro, a tradição mosaica é trazida à colação, tanto de um prisma histórico como em termos de pura actualidade.
Textos relevantes dos anos subsequentes, como Goa: Cadernos Teológicos e Nota a Cinco Fascículos, ambos de 1971, e Proposição, de 1974, mostram Agostinho reincidente na omissão do judaísmo, mesmo quando abre a porta ao taoísmo, ao xintoísmo, ao animismo, ao ateísmo e ao marxismo.
Porventura por esses anos, em Pensamento à Solta, irá escrever:
Um dia serás do Espírito Santo e continuarás cristão como sendo cristão continuaste a ser pagão: divino e humano te vejo e quero.
É óbvio que tem aqui em mente a teoria das Três Idades de Joaquim de Flora. No entanto, onde se esperaria que escrevesse judeu – por referência à Idade do Pai e ao Antigo Testamento – vamos encontrar a palavra pagão. Uma vez mais, Agostinho recalca – por permutação. O recalcamento é análogo ao que Teixeira de Pascoaes revelou no Marános e que, décadas depois, já tardiamente, continua a revelar no Santo Agostinho, quando ali escreve por este modo: «Sim, a Mitologia é que é o Velho Testamento, pois o corpo está para a alma como está Moisés para o Apóstolo, e o: Crescei e multiplicai-vos para o: Sede perfeitos como o vosso Pai Celeste.» Sublinho a similar caracterização, arquetípica e funcional, dos dois credos, o judaico e o cristão, em Teixeira de Pascoaes e em André Benzimra…
Por expressa, a permutação torna-se evidente para Pascoaes, e por isso o recalcamento se desvanece. A consciência faz enfim valer os seus direitos. Não assim no caso de Agostinho. A prova real de que a religião mosaica ali permanece em falta está em “Superação do Protestantismo”, onde se caracteriza a Idade Antiga, a do catolicismo mosaico, «sob o ponto de vista religioso e moral pelos hebreus» e «sob o ponto de vista cívico e prático pelos romanos».
Tocamos o ponto nevrálgico. Na condição de se libertar o que foi represado pelo recalcamento e, por conseguinte, de se ler judeu onde Agostinho escreve pagão, o aspecto mais vincadamente marrano deste pensamento está onde se afirma: sendo cristão continuaste a ser pagão.
Segundo António Telmo, o marrano superior sente como verdadeiras as duas religiões em que se debate numa tensão dialéctica. Ora, só se pode continuar a ser pagão – isto é, judeu – se continuarmos a sentir o judaísmo como verdadeiro. Como só se poderá continuar a ser cristão, apesar da conversão final à religião do Espírito Santo, se se tiver também continuado a sentir o cristianismo como uma parte da verdade religiosa, aquela que corresponde ao aspecto ou nome divino que os cristãos cultuam electivamente. Agostinho sente o drama e dá-lhe expressão. Drama tremendo este, que mora no íntimo recôndito e por vezes lhe aflora as palavras. Aqui, por via de um movimento silogístico, de que Telmo também nos fala, parece superada a tensão dialética, pela emergência da síntese paraclética que resolve a oposição entre a tese, judaica, e a antítese, cristã. A resolução é provisória, por pouco firme, ou até insegura; mas vislumbra-se que terá sido alcançada. Noutra reflexão de Pensamento à Solta, Agostinho escreverá:
Com todo o respeito pela corajosa persistência judaica e toda a vergonha que a humanidade lhes fez, toda a tragédia vem de que, traindo-se ao melhor de si próprios, se não converteram a Cristo; desprezando o Filho a seu Pai ofenderam; espero que se convertam agora ao Espírito Santo. Joaquim de Flora me acompanha nos votos.
Só na aparência reencontramos aqui o escritor de Reflexão. À margem do que nele persiste da polémica medieval cristã contra os judeus, Agostinho faz votos de que estes tomem assento à mesa do banquete ecuménico. Mas já não requer que renunciem à sua identidade original, isto é, que deixem de ser o que são. Parece agora conceder-lhes paridade com os demais credos, isentando-os, assim, de passarem pela fase intermédia de conversão ao cristianismo.
Termino com um terceiro pensamento à solta. Não é aquele em que o filósofo nos diz: «Não sou do ortodoxo nem do heterodoxo; cada um deles só exprime metade da vida; sou do paradoxo que a contém no total.» Esse, que para o caso até caberia, podereis encontrá-lo, repetido ad nauseam, na Internet. Antes proporei o seguinte, onde, judaicamente, reencontro o primado da vida. E se em nada do que vos disse estou seguro de que por inteiro tenha acertado, resta-me a convicta consolação de ter procurado satisfazer o desejo de Agostinho, quando afirma: «Na realidade não estou interessado em coisa alguma; sim, porém, em viver».