JÁ NO PRELO: «AGOSTINHO DA SILVA EM SESIMBRA», DE PEDRO MARTINS E ANTÓNIO REIS MARQUES. PRÉ-PUBLICAÇÃO DO PRÓLOGO

02-02-2014 12:55

Uma foto ainda inédita: Agostinho da Silva com a sua afilhada Anahi (filha de António Telmo), em Sesimbra, em Dezembro de 1969 (Arquivo pessoal de Maria Antónia Vitorino).

 

A apresentação, por Miguel Real, do livro Agostinho da Silva em Sesimbra, de Pedro Martins e António Reis Marques, marca o início das TARDES TÉLMICAS 2014, que terá lugar a 3 de Maio, na Biblioteca Municipal de Sesimbra, numa sessão em que também António Telmo será evocado (por António Carlos Carvalho), um dia depois de se assinalar mais um aniversário do seu nascimento. Com prefácio de António Cândido Franco (que se encontra já actualmente numa fase muito avançada da escrita da sua biografia de Agostinho da Silva), a edição deste livro de Martins e Reis Marques é do Centro de Estudos Bocageanos, prevendo-se que o primeiro lançamento, com apresentação a cargo de Rui Lopo, ocorra logo a 5 de Abril, na Casa da Cultura, em Setúbal, ou seja no fim-de-semana imediatamente subsequente ao dia do 20.º aniversário da morte de Agostinho, que se assinala a 3. Hoje entregue ao editor, avançamos agora ao leitor o prólogo que Pedro Martins apôs ao seu estudo.

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PRÓLOGO

 

Lealmente depondo, aqui o confesso: não sou um agostiniano. Na senda de Álvaro Ribeiro, António Quadros ou António Telmo, tenho com Agostinho da Silva demasiados dissídios ideológicos para que com ele me possa identificar essencialmente no plano do pensamento. Um só exemplo: ao contrário de Agostinho, devo dizer que não estou nada convicto do estatuto ditatorial de realeza que confere à criança, esquecendo muito do que nesta creio ser naturalmente evidente: a crueldade, o egocentrismo, a ignorância – e uma condição sofrível, jungida ao fardo inferiorizante do intelecto passivo. Daqui derivam profundas consequências teoréticas, conduzindo, em última instância, a uma certa animadversão que Agostinho da Silva alardeava perante os filósofos e a filosofia, mormente a portuguesa.

 

Como se isto não bastasse, confrange-me ainda certo devocionismo que, desde o final da década de 80, se gerou em torno da sua figura. Muito por mor das aparições televisivas do pensador (eis como a sucumbência da divulgação se volve perigosamente em vulgarização), tornou-se este um fenómeno iconográfico que pede por vezes meças às efígies de uma Amália ou de um Eusébio. Daqui à incensação acrítica do seu legado não foram muitos os passos, aliás curtos e lestos.

 

Por quê, então, decidir-me a escrever sobre Agostinho?

 

A resposta mais evidente poderia bem ser a seguinte: para o criticar. Sucede, porém, que, com respeito ao autor de Reflexão à Margem da Literatura Portuguesa, os tempos mais próximos serão sobretudo de comemoração, não parecendo assim curial que alguém se proponha então evocá-lo pela acentuação enfática da mácula polémica. Num tal contexto de celebração, Agostinho da Silva, muito simplesmente, não merece essa sorte.

 

Na verdade, e a despeito das divergências que são verificáveis, falamos aqui de um dos grandes vultos do século XX português, não podendo quem, como eu, de algum modo se reclama do legado da Escola Portuense, deixar de reconhecer que Agostinho, bem que por caminhos diversos, seguiu no firmamento a mesmíssima estrela. Depois, como escritor, foi ele decerto um dos maiores que tivemos. Ocioso será ainda mencionar-lhe a oratória, genial e lendária; uma coragem cívica exemplar, entretecida sempre da maior dignidade; o peculiar sentido de liberdade que foi o seu, dirigido, por inteiro, ao que em cada um de nós é mais autêntico e mais aventuroso; ou uma bondade sumamente dadivosa, de que neste livro se darão alguns exemplos e testemunhos.

 

O título do presente estudo encerra, de resto, benignamente um princípio de resposta àquela pergunta. Por duas décadas bem contadas, Agostinho da Silva habitou em Sesimbra. Não a título permanente, ou principal; mas decerto o suficiente para que esta terra debruada pelo mar arrábido o possa – como raríssimas outras – chamar, fazer seu. Também – ou sobretudo – num plano eminentemente espiritual, vários sendo os actos, os gestos e os projectos que consagrou à camonina Piscosa e às suas gentes.

 

Deste ponto de vista, uma singular coincidência acresce: Agostinho da Silva foi um dos quatro mestres de António Telmo, ou, nas próprias palavras do autor da História Secreta de Portugal, uma das quatro pessoas que ele toda a vida ouviu e que lhe deram o pão para a boca, sendo as outras três Álvaro Ribeiro, José Marinho e Eudoro de Sousa. Ora, António Telmo, a sua vida, a sua obra, o seu pensamento, o seu legado, tudo isto é impensável sem Sesimbra.

 

Os caminhos de António Telmo e Agostinho da Silva cruzaram-se primeiro em Brasília – e só mais tarde em Portugal. Os regressos de um e outro a solo pátrio não diferiram senão um ano, entre 1968 e 1969. A partir de então, e graças a uma singular conjugação de circunstâncias, não raro os dois filósofos conviveram em Sesimbra (sobretudo – estarei em crer – na década de setenta), chegando aqui a esboçar, senão a encetar, assinalável colaboração.

 

Por intermédio de Telmo, que logo em 1969 lhe apresentou esses seus velhos amigos, viria Agostinho da Silva a conhecer e a travar sólida amizade com dois dos maiores vultos de sempre da cultura sesimbrense: Rafael Monteiro e António Reis Marques. Ao primeiro, que já não está entre nós, é de alguma forma consagrado o mais extenso capítulo deste estudo; o segundo, que me honra com a sua amizade, aceitou o repto, que lhe fiz, para se me juntar nas páginas deste livro, nelas publicando os seus preciosos testemunhos agostinianos, em parte ainda inéditos.

 

É sobretudo – mas não exclusivamente – em redor deste insigne triunvirato que se desenvolve e define o convívio – tome-se aqui o termo no sentido altíssimo que Dante lhe deu no livro homónimo – de Agostinho da Silva em Sesimbra. Acrescentar-lhe-ei João dos Santos, o celebrado médico pedopsiquiatra.

 

Feito de documentos e testemunhos, é este um estudo assumidamente lacunar. Creio, porém, ter ido tão longe quanto me era possível. A este propósito, cabe-me agradecer os contributos e incentivos recebidos de Maria Antónia Braia Vitorino, Anahi Braia Vitorino, António Reis Marques, Margarida Caleiro, Laura Reis Marques, João Aldeia, José Pedro Francisco, António Cândido Franco, António Carlos Carvalho, Daniel Pires, Miguel Real, Renato Epifânio, Rui Lopo e Ruy Ventura. Sem eles, teria sido simplesmente impossível escrever o que agora proponho ao leitor.