INÉDITOS. 75

06-05-2018 18:40

Uma prancha do grau de Aprendiz[1]

 

À partida, para que as minhas palavras fiquem bem claras nesta Loja perfeitamente iluminada, devo dizer que não pretendo com elas ensinar o que quer que seja, pelo que as afirmações que pareça fazer são, na realidade, proposições ou propostas, mais dirigidas a mim próprio do que a quem me queira ouvir.

No dia em que fui recebido na Loja Quinto Império e em sessões ulteriores, vieram do Venerável Mestre e de outros respeitáveis Mestres palavras que destacavam uma sabedoria que me é atribuída, com maior ou menor verdade, só porque sou autor de alguns livros em que procurei dar da língua, da literatura e da história portuguesas uma nova visão à luz do esoterismo. Tal sabedoria, dado que seja lícito designar assim o que é um mero saber teórico, deixei-a lá fora no momento em que me despojei de todos os metais. Ela foi-me restituída, mas para que faça dela um uso diferente do que fazia antes.

E, dentro desse uso, está a atenção que devo prestar ao que se passa na Loja, de modo a tomar perfeita consciência do que é o meu lugar, um lugar situado ao Norte e que devo compreender pelas seguintes palavras de Dante, no primeiro canto do Purgatório: «Ó gentes que habitais o Norte, como lamento a vossa viuvez por não poderdes contemplar as estrelas flamejantes do Cruzeiro do Sul.»

É que o meu saber, se algum tenho e se alguma coisa vale, foi todo adquirido lá fora, no mundo profano, e aqui só terá algum sentido no dia em que o saiba transformar num saber iniciático, o que equivale a uma completa transubstanciação da sua natureza. Tal só é possível ascendendo pelos degraus da escada que conduz ao Templo. Segundo me parece e se me afigura certo, neste lugar onde por entre trevas imagino a luz total, as iniciações que abrem acesso aos superiores graus conferem pelo rito em cada um deles uma qualidade que nenhuma sabedoria profana pode superar, até porque, como disse, a sabedoria que lhe corresponde é de uma natureza inteiramente diferente da que podemos adquirir por caminhos profanos. Se assim não fosse, nada do que aqui se passa teria qualquer sentido.

Isto significa que o saber que alguém tenha adquirido por esses caminhos lá de fora, como é o caso, para dar exemplos, de um professor universitário ou de um cientista laureado, não só nada tem que ver com o que aqui se aprende como constitui até um impedimento, por ser uma falsa luz, à iluminação pela luz verdadeira. Para o conseguir, a alma teve de se adaptar àquelas condições sem as quais não se trepa no mundo exterior social, condições sobretudo de ordem mental, onde se criam vícios do entendimento muitas vezes difíceis de extirpar. Nessa adaptação a alma sofre múltiplas deformações, uma das quais é a convicção de que está mais apta do que outras, menos cultas, de compreender o mundo misterioso em que foi recebido. Ora todos nós sabemos que para esta recepção se foi previamente reduzido à condição de nem nu nem vestido. A iniciação, pelas viagens simbólicas, operou nova redução, que teve por resultado pôr a alma do recipiendário num estado comparável ao da matéria pura e indiferenciada, que a fizesse sensível à influência transcendente da luz. Assim um espelho deve oferecer uma superfície lisa e polida para que nele se forme a imagem que a luz transporta.

Como observou o Venerável Mestre que presidiu no Oriente à minha iniciação, aos graus que se realizam na ordem do ser e às funções que se assumem na ordem do aparecer não é necessário que corresponda na ordem mental qualquer distinção ou privilégio, pois, ensinava ele, aquilo de que se trata é de conservar e de transmitir uma influência espiritual e de tornar presentes os grandes significados pelos quais se manifesta a sabedoria do Grande Arquitecto do Universo. Perante esta presença supranormal o que é que vale o nosso demasiado humano saber? Perante ela não somos todos demasiado humanos?

Eu observo do Norte o “quadrado longo”, que nos situa aqui, distribuindo-nos por graus e funções. Vejo que, no domínio das funções, o Venerável Mestre, o Irmão Secretário, o Irmão Tesoureiro e os dois primeiros Vigilantes, compõem a figura do pentagrama e que o Irmão Orador, pela palavra, e o Irmão Mestre de Cerimónias, pelo movimento do corpo, criam as ligações e as correntes que tornam esse pentagrama um símbolo vivente. Verifico que os Aprendizes estão colocados no Norte, os Companheiros no Sul e os Mestres no Oriente. Os dois Vigilantes, situados a ocidente, fazem, enquanto guardiões, a cobertura da Loja por onde ela poderia estar sujeita às influências profanas e dirigem o trabalho dos obreiros menores.

O indivíduo que assume transitoriamente esta ou aquela função é comparável ao actor que desempenha um papel no teatro. Desde que represente bem esse papel, para o que evidentemente terá de ter certas qualidades excepcionais, nele veremos Hamlet ou o Rei Lear e a carga de significação que estas personagens transportam nada tem que ver com a qualidade do indivíduo que lhes dá forma.

No catecismo para o grau de Aprendiz, não está dito que os três primeiros degraus, que o neófito teve de subir durante a iniciação, correspondem à Poesia, à Música e à Arte do Desenho como as artes que ele deve praticar para se poder libertar das escabrosidades da pedra bruta que arrastou durante a vida enquanto profano. Não está dito, mas julgo ser bom que ele o saiba, sem o que o seu trabalho de desbaste não se pode efectuar eficazmente.

Fazer versos, compor músicas ou tocá-las e desenhar são actividades ao alcance de qualquer profano que tenha aptidão para tal. Também aqui não devemos confundir o que se ensina nas escolas públicas com o que constitui a intimidade dos nossos mistérios. Os exemplos de homens como Teixeira de Pascoaes, Wolfgang Mozart e Albrecht Dürer não devem enganar-nos. Por este ou aquele modo estiveram ligados a uma organização iniciática, sabendo-se para os exemplos citados que essa organização era a Maçonaria. A poesia de Fernando Pessoa não se explica em uma relação análoga e, por isso mesmo, os investigadores que estudam seriamente a sua obra, (…)[2], se interrogam sobre a natureza exacta dessa relação. A ligação a uma organização iniciática permite explicar a universalidade das respectivas obras, mas isso não quer dizer que tenha sido ali que tenham aprendido a fazer versos, a compor músicas e a desenhar ou pintar.

Por Poesia, por Música e por Arte de Desenhar teremos de entender outra coisa, precisamente o que não está ao alcance do profano. Ora, o que é que não está ao alcance do profano? Precisamente o rito, com tudo o que nele se inclui e por ele se anima de uma significação activa na relação do estar com o ser, de estar aqui com o ser no mundo sobrenatural, enigmático e misterioso que é o domínio transcendental do Grande Arquitecto do Universo. Eu digo o rito e não os símbolos, porque estes só são verdadeiramente símbolos quando nele integrados. Por isso mesmo, eles podem ser postos lá fora, aparecerem em livros ou me fotografias onde dificilmente deixarão de ser mais do que letra morta. Poder-se-á objectar que também o rito pode ser transposto para o exterior por alguém que se tenha suficientemente informado de todo o processo que o constitui. Não será um rito, mas uma paródia de rito, porque lhe falta a transmissão da Baraka, fundado no poder que, de cadeia em cadeia, o Venerável Mestre recebe do Grande Arquitecto do Universo. 

 

António Telmo 

  

[1] Nota do editor – Texto encontrado inédito no espólio de António Telmo. O título é da nossa responsabilidade.

[2] Nota do editor – Suprimimos uma brevíssima passagem do texto, no estrito respeito pela reserva da identidade de um maçon que nela é referido.