INÉDITOS. 64

30-09-2016 21:52

Do segredo[1]

 

Não deixa de ser cómico que chegue aos anos finais da minha vida, depois de ter percorrido um longo périplo cheio de perspectivas extraordinárias, e me encontre exactamente na mesma situação dos anos em que comecei a pensar. Parece que, ao desviar-me da orientação inicial, que, em breve, direi qual tenha sido, nada adiantei. É, em certo sentido, como se tivesse perdido o tempo de vida. Noutro sentido, porém, regresso mais senhor. Vejo que a minha alma esteve à espera de mim meio século naquele lugar inamovível que é o lugar da tradição, do passado e da sabedoria antiquíssima e que, apesar de ser muito solicitada durante a minha ausência, não quis unir-se a outro espírito.

Essa orientação inicial era a do estudo e aprofundamento dos mistérios da religião em que fui educado, a religião católica. Como muitos outros no meu caso, verifiquei a impossibilidade de seguir um clero que dava suficientes sinais de corrupção e de degradação para que nele pudéssemos confiar. Em vez de um sacerdócio, capaz de nos conduzir ao Santo dos Santos de uma misteriosa sabedoria, julgava encontrar vulgares professores de moral, dominados pelos vários complexos que Freud denuncia, que traziam para a prática religiosa a obsessão do sexo, procurando impedir que em cada um de nós, o impulso natural do amor tivesse consciência da sua essência sobrenatural. Quando os interrogava sobre os mistérios do Génesis, do Verbo e do Apocalipse deparava com um frio desinteresse que me gelava. Na verdade, a autoridade eclesiástica opunha à minha ardente indagação uma barreira, por saber muito bem talvez o perigo que há em tentar franquear certos limites.

Deixei de frequentar a Igreja muito cedo, aos catorze anos. Esta é a idade em que, segundo a convicção comum, se perde a inocência original e se fica sujeito, com o eclodir carnal do sexo, às tentações do espírito do mal. Segundo outra concepção, que é a da Kabala e que forma a base das doutrinas de Freud, o espírito imundo habita sozinho o homem desde o nascimento até à puberdade. Só com a conversão da libido num poder criador natural o rapaz se torna capaz de pureza. Desce sobre ele o Anjo das Alturas. Aos catorze anos pode enfim estudar a Bíblia. O amor natural é o próprio princípio do conhecimento sobrenatural. Também a Igreja Católica que prolonga e completa a Igreja judaica consagra o matrimónio, considera-o um sacramento ou um mistério, não amaldiçoa o amor sexual.

Dos catorze aos vinte e um anos, primeiro por notícias vindas de longe, depois directamente, tive a felicidade de receber o ensino do filósofo ocultista conhecido no mundo literário pelo nome de Álvaro Ribeiro. A Arte de Filosofar, preparada pelos três livros que a precederam, é já uma meditação clara dos mistérios da religião católica. Não podia ter encontrado melhor guia para a minha ânsia de saber. Dizia-se que ele possuía o conhecimento de terríveis segredos aprendidos na maçonaria. À volta dos homens de génio forma-se sempre uma aura de pavor que torna mais prestigiosa a luz que trazem consigo. Os mais íntimos dificilmente podem chegar a decidir se tratam com um santo ou com um demónio. Este duplo aspecto dos homens superiores, que acompanha tudo quanto participa do divino, explica a atracção e a repulsa que exercem sobre os seus contemporâneos. Assim se exprime no pequeno como no grande a essência do sagrado.

Na verdade Álvaro Ribeiro era apenas um investigador de filosofia. Tinha passado pelas lojas maçónicas onde não há segredo nenhum senão o que consiste em dizer-se que há um que nunca ninguém soube qual fosse. Um grupo de homens está reunido em nome de um segredo que nenhum deles sabe qual seja, que não existe, mas que todos supõem que existe. Sem isso não se sentiriam estimulados a investigar e a ciência seria uma palavra vã. Há um conto de Barbey d’Aurevilly, Um Jantar de Ateus, em que o único sacerdote que participa no convívio, na intervenção oratória que lhe coube, declara que vai revelar o segredo da Igreja. Todos seguem cheios de expectativa e emoção crescentes as palavras do seu discurso, que por fim atinge a catástrofe: “Meus senhores, o segredo da Igreja é este: a Igreja não acredita em Deus.” A Igreja sabe que Deus não existe, mas é através dela que adoramos Deus. Deus existe porque o adoramos. Essa é, segundo Barbey d’Aurevilly, a missão da Igreja. E, ao fim e ao cabo, só Deus sabe se vivemos ou não uma ilusão. Do mesmo modo, a natureza do segredo é a sua não existência, porque se existisse já não era segredo.  

 

António Telmo

 


[1] Título da responsabilidade do editor.