INÉDITOS. 108

02-05-2025 00:00

Ao redor de O Bateleur[1]

 

Contaram-me que os inimigos de Fernando Pessoa, sabendo que ele estava todos os sábados com uns amigos no Café Montanha, davam a essas reuniões o nome de sabatánicas. O que significa, como se vê logo, que as reuniões não só eram aos sábados, como se faziam sob a inspiração de Satã. Os inimigos de Fernando Pessoa envolviam, assim, no mesmo ódio o poeta e o sétimo dia da semana, referindo-os a Satan, para o que tinham, sem dúvida, justas razões pois esse dia é, de facto, o dia de Saturno e o poeta nasceu sob a sua influência:

“Sagra sinistro a alguns o astro baço.”

Mas a verdade é que tais tertúlias eram para o poeta um dos modos, e não o menor, de prestar culto a Deus. Aqueles, como esses inimigos do poeta, que perdem o tempo em conversas dessultórias, onde gastam grosseiramente o divino dom da palavra, são incapazes de imaginar que se possa prestar culto a Deus por um procedimento, superior a todos os ritos, que é o da comunicação dos espíritos pelo pensamento.

À porta de todas as Igrejas onde se pratica a missa negra está gravada esta legenda: “É proibido pensar.” Por isso talvez é que Dante considerou o Inferno o lugar próprio para “aqueles que perderam o dom do intelecto.”

Não devemos surpreender-nos da reacção que nos espíritos inferiorizantes provoca a existência de homens que elevam esse dom a uma superior dignidade. São o excepcional num mundo de mediocridades e são-no na tranquila serenidade do espírito que irrita os violentos porque, ignorando eles completamente o que o pensamento seja, não podem nada contra ele. Podem sim impedir que desses espíritos venha a melhor influência. O processo mais praticado pelos mágicos negros consiste em crismar o “outro” com o nome que os define a eles.

Por isso, quando me contaram aquilo das “reuniões sabatánicas” de Fernando Pessoa, passou-me pela mente o miserável espectáculo de prestigiação, perfeita manifestação de hipocrisia que significaria muito pouco se não estivesse ao serviço de um bem mais inquietante processo de saturnificação da imagem do poeta.

Não há dúvidas quanto ao primeiro ponto, pelo qual se caracteriza a glorificação do poeta como uma perfeita hipocrisia. Tudo quanto defendem hoje aqueles que organizaram as comemorações está combatido nos escritos do poeta-filósofo. Pode pôr-se em dúvida se terá sido monárquico ou republicano, mas inegável é que foi, e de modo bem activo, anti-socialista, anti-comunista, anti-sindicatos, anti-ensino universitário, anti-maçonaria azul, anti-modernista. Foi, se nos colocarmos no ponto de vista dos inferiores, um reaccionário completo. Escreveram-no muitas vezes na face agitada e mais ingénua, mais brutal e menos hipócrita muitos dos que agora o comemoram.

O processo de saturnificação é que é mais difícil de aprender, porque mais dissimulado.

Como o poeta já morreu há muitos anos, temos de pensar que a magia negra só pode ter vindo a pretender duas coisas: uma é a que se disse, dar uma imagem que saturnifique todo aquele que dos seus livros se aproxime e o veja a uma luz que não foi a que o poeta quis transmitir. A segunda é bem mais terrível: pretende atingir o poeta no outro mundo.

Sabe-se que a magia não atinge o espírito, mas a imagem que lhe é suporte. O que é terrível é que pode atingir a imagem vivente servindo-se, é claro, de uma imagem morta e, por isso, manipulável: um retrato, por exemplo.   

O suporte escolhido para movimentação deste duplo fim mágico foi o conhecido retrato pintado por Almada Negreiros.

 

António Telmo



[1] Título da responsabilidade do editor. A organização do texto, mormente no tocante à localização do seu penúltimo parágrafo, é conjectural.