EDITORIAL. 33

02-05-2025 00:00

Nada será como dantes

Uma revista de divulgação cultural de grande circulação, subordinada à temática “Portugalidade - Identidade, cultura e alma lusa”, publicou recentemente três artigos de António Telmo sem que a prévia autorização dos herdeiros houvesse sido obtida para o efeito. Este facto, ou o procedimento que o produziu, não pode deixar de evocar a situação tenebrosa que, há mais de uma década, se abateu sobre o universo télmico e que motivou a criação do Projecto António Telmo. Vida e Obra. Merece, de resto, ser ponderado em conjunto com as opções editoriais do número em apreço daquela revista.

Trazer para a sua capa o Padrão dos Descobrimentos de Cottinelli Telmo encerra todo um programa. Independentemente da valia artística do monumento, e do seu direito de cidade, ninguém, por certo, desconhecerá que o padrão foi um expoente da Exposição do Mundo Português e vale como símbolo do Estado Novo. Tenha, pois, muito bom proveito quem assim pretenda ilustrar a portugalidade e a alma lusa.

Só António Telmo não cabe nos labirintos do mago das Finanças, esse “menino mimado do Vaticano”, como justamente chamou a Salazar o seu biógrafo Yves Léonard. Contanto haja boa-fé, bastará uma quarta classe das antigas, daquelas de que tantos, saudosos, ainda se ufanam, para perceber o que quis Telmo significar ao verberar na História Secreta de Portugal a “paródia mnésica” do salazarismo.

Ler, como se lê algures naquela revista, que Agostinho da Silva foi incomodado pelo Estado Novo, releva, por certo, de uma outra incomodidade que só a passagem pelo divã de Freud poderá mitigar. Afinal de contas, foi só passar pelo catre da enxovia do Aljube, pernoita chique a valer e então muito na moda, e seguir de rota batida para os trópicos de Vera Cruz num exílio assaz voluntário. E vivam a liberdade de Hayek e os privilégios exclusivos à CUF de Alfredo da Silva! No meio disto tudo, alguém, por certo, há-de escapar...  

Ficamos ainda a saber, a pretexto dos malefícios do positivismo, que a Seara Nova, com as suas costas largas (tão largas que nela coube, por muitos anos e por direito próprio, um Sant’Anna Dionísio a defender Leonardo Coimbra e a publicar os seus próprios livros), hostilizou Pascoaes, Pessoa e Régio. Essa mesma Seara de quem Telmo, porém, pôde belamente escrever que «era uma promessa de pão, uma messe, uma missa, uma mensagem dirigida à acção imediata, esteada em razões susceptíveis de serem ensinadas onde houvesse mente de homem». No mesmo texto em que apostrofa «aqueles traidores que teimam em ver a luz nas labaredas da Inquisição».

Tanto a Seara hostilizou Pascoaes que, pasme-se, deu chancela à segunda edição do Regresso ao Paraíso e publicou as cartas que o vate escreveu a Suzanne Jeusse, tradutora francesa do longo poema mítico de 1912. Para início de hostilidade, não está mal.

De Pessoa, publicou a Seara postumamente, em 1937, o fabuloso poema anti-salazarista intitulado “Liberdade”, aquele que nos fala do prazer de não cumprir um dever, de ter um livro para ler e não o fazer. Neste caso, não foram propriamente livros, mas, na ordem das muitas dezenas, senão centenas, os números da Seara Nova que ficaram por ler. Só assim se explica não ter havido do plumitivo a percepção de que José Régio, anos a fio, foi figura de proa da Seara e só a abandonou num gesto de solidariedade – imagine-se! – com António Sérgio.

Que o devocionismo fanático ou o antissemitismo de acendalha possam sugerir a plenitude de uma actividade filosófica é aleijão para Rilhafoles cuidar. A Escola Portuense, esteada em Sampaio Bruno, é uma tradição filosófica politicamente liberal e de livres-pensadores religiosos, que respeita todos os credos, de qualquer natureza, nos limites da civilização.

Mas todos os limites são passados quando assistimos à ofensa da memória de Jaime Cortesão, que – escreveu recentemente alguém num livro de homenagem a António Quadros – só não aderiu ao Estado Novo porque, além de carregar a mácula ontológica da judeidade, seria vaidoso e cobarde.

Nada será como dantes.