DOS LIVROS. 66

03-06-2020 19:39

Columbano Bordalo Pinheiro, O Velho do Restelo

Museu Militar de Lisboa

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O Velho do Restelo

 

Este velho «de aspecto venerando», «com um saber só de experiências feito» que segue e possui uma «justa Lei», não é somente, como tantas vezes se tem repetido, a voz do bom senso, expressão do espírito conservador. Talvez se deva mais uma vez, aqui, acompanhar Fiama que o vê como a personalização do Velho Testamento.

Isto, todavia, não é o mais importante. As três estrofes finais do Canto IV, contendo as últimas imprecações do Velho dão muito que pensar. Ele invoca a sua Lei, a Lei justa, para condenar o Titanismo, dando como exemplos que se não devem seguir o de Prometeu roubando o fogo do céu para o meter no coração do homem. Fogo de altos desejos que move o coração onde arde. Faéton, que roubou o carro alto do pai (Apolo, o Sol) e Ícaro procurando atingir o Céu voando para fora do labirinto da vida são segundo o terceiro exemplo do que não se deve fazer, cometimentos que vêm na esteira do pecado original de Adão seduzido por Eva, seduzida pela serpente, a colher o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal.

Altos e nefandos são, segundo o Velho, tais cometimentos. Paradoxalmente, altos e nefandos.

Todavia, a Nova Lei que veio ou virá substituir a Velha Lei, é a da Graça e traz em si o amor, o movimento para o Amor.

As imprecações do Adamastor coincidem com as do Velho.

 

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                  LUSÍADAS

    (CANTO IV)

CII

«Oh! Maldito o primeiro que, no mundo,

Nas ondas vela pôs em seco lenho!

Dino da eterna pena do Profundo,

Se é justa a justa Lei que sigo e tenho!

Nunca juízo algum, alto e profundo,

Nem cítara sonora ou vivo engenho

Te dê por isso fama nem memória,

Mas contigo se acabe o nome e glória!

CIII

Trouxe o filho de Jápeto do Céu

O fogo que ajuntou ao peito humano,

Fogo que o mundo em armas acendeu,

Em mortes, em desonras (grande engano!).

Quanto milhor nos fora, Prometeu,

E quanto pera o mundo menos dano,

Que a tua estátua ilustre não tivera

Fogo de altos desejos que a movera!

CIV

Não cometera o moço miserando

O carro alto do pai, nem o ar vazio

O grande arquitector co filho, dando,

Um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.

Nenhum cometimento alto e nefando,

Por fogo, ferro, água, calma e frio,

Deixa intentado a humana geração.

Mísera sorte! Estranha condição!»

 

António Telmo

 

(Publicado em Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas seguido de Páginas Autobiográficas, 2015)