DOS LIVROS. 38
De repente tive a ideia de mostrar Natália como uma projecção na alma do filósofo da beleza satânica contudo bem feminina no seu fascínio.
Substituí a apoteose de Natália pela apoteose de Leonardo, unindo-se pelo sacramento do matrimónio e resgatando-se pela sacralização do seu filho, no alto do Marão.
É neste ponto que a minha vida de escritor é de novo assistida pelo sobrenatural.
Era uma segunda-feira. O café onde todas as manhãs costumava ir escrever, ler, pensar fechava neste dia da semana. Dirigi-me por isso para uma esplanada na Mata, que é o nome que em Vila Viçosa dão ao seu belo jardim. Sentei-me e escrevi dum fôlego o novo desenlace da peça, pondo os seus no seu devido lugar.
O extraordinário e ao mesmo tempo encantador foi o que aconteceu quando pus a última linha. Duas felosas verdes vieram pousar à minha direita e à minha esquerda nos espaldares das cadeiras de um e de outro lado da mesa. Entre mim e cada uma das duas avezinhas havia a distância de um braço. Estavam voltadas uma para a outra, mas moviam as cabecinhas fitando-me. Depois desapareceram num voo que foi como um sopro.
A alegria, como nunca a tinha sentido, veio visitar o meu espírito.
(António Telmo, in Páginas Autobiográficas)
António Telmo não disse tudo na “Breve Explicação do que foi escrito atrás” que justapõe aos três actos em que se estrutura a sua peça A Verdade do Amor, editada pela Zéfiro em 2008. Ficamos a sabê-lo pelo excerto sobre Leonardo Coimbra acabado de citar, retirado de Autobiografia e Sobrenatural, uma das muitas novidades que o III Volume das suas Obras Completas, a sair em Junho na Zéfiro, nos vai trazer. O leitor poderá verificar o que lhe dizemos, recordando o final desta peça tão densamente simbólica, em que Álvaro, ali dado pelo mestre como o baluarte da Filosofia Portuguesa, é efectivamente Álvaro Ribeiro. Mesmo que António Telmo não no-lo tivesse revelado, bastaria a nossa atenção para a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que o dramaturgo não deixou de colocar na sua sala de estudo.
[Lilith, por Dante-Gabriel Rossetti]
Final do Terceiro Acto de
A Verdade do Amor
(…)
Aparece Natália fazendo grandes gestos de chamamento para Leonardo e para Álvaro.
LEONARDO
Não atravesses o caminho! É uma miragem.
O CEGO
Volta-se para Natália, tocando e cantando.
Em vinte e cinco de Abril
A princesinha acordou,
Cem anos depois de morta,
Sentou-se toda torta,
Longe do mundo e bem só.
Era um esplendor de cravos
Cem anos depois de cega.
A liberdade não chega
Por causa da cegarrega
Que amolece os mais bravos.
Disse Camões ao seu povo
Mil anos antes de Abril:
Mas que tristeza tão vil!
A liberdade não chega
Tudo é velho, nada é novo
Continua a cegarrega.
Veio o Quim dos Alcatruzes
E ganhou as eleições,
Já se calou o Camões.
Alegram-se as avestruzes
Co’a liberdade que chega
Entre vivas e canções,
Mas não cessa a cegarrega.
Em vinte e cinco de Abril
A princesinha acordou
Cem anos depois de morta.
Esperou três anos mais
Sentada e toda torta
Até que por fim ganhou
E nos fez todos iguais;
O deus dos cegos ganhou
Que nos fez todos iguais.
O deus dos cegos ganhou
Que nos fez todos iguais.
A voz repetitiva perde-se progressivamente. Fica só o som da guitarra.
NATÁLIA
Ó vinte e cinco de Abril,
Venha a orgia, venha a ordália!...
Portugal beija o Brasil,
E Leonardo a Natália.
TODOS
Toca um rock! Toca um rock!
Vamos todos a galope!
O cego levanta-se e a sua guitarra, agora eléctrica, solta sons frenéticos. Começam todos a dançar. Do meio deles sai uma mulher muito branca, magríssima e só com órbitas. Para e dança como que esperando.
ÁLVARO
Mestre, que figura horrorosa é aquela?
LEONARDO
Aqui todo o medo deve desaparecer. Mantém-te calmo e distante, mas não percas nada do espectáculo!
A MORTE
Sou um caso muito sério
Não é só com preservativos
Que resolveis o mistério.
LEONARDO
Tudo isto enoja, mas é só uma miragem.
ÁLVARO
É só uma miragem?
LEONARDO
Uma miragem que, com a ajuda de Deus, vou fazer desaparecer.
Atravessa corajosamente o caminho que os defende daquela gente. E, ao sinal da cruz que traça sobre o peito, segue-se um estrondo que abala toda a cena.
Louvado seja Deus!
Uma doce paz invade toda a paisagem, ainda envolvido na noite. A manhã começa a clarear, mas do lado do Poente. Daí se vai elevando o Sol. Sob o Sol nascente, forma-se a figura de um Templo.
O teatro findou. Álvaro, vou deixar-te só. Arranja companheiros que sigam a nossa estrela. Aquele é o Templo de Salomão, daquele que fez o Cantar dos Cantares. Ali me espera Catarina com o nosso filho. Ele será lavado em águas santas e receberá na língua o sal da terra. Renascerá. Eu e Catarina também, mas pelo supremo sacramento. Sinto que é a partir dali que vou conhecer o mundo misterioso de Deus.
Tu ainda tens de descer, de regressar ao mundo dos homens. Vai e faz o que tens que fazer.
António Telmo
(Publicado em A Verdade do Amor, 2008)