DOS LIVROS. 02
De um caderno de apontamentos. 01
A ideia de que a electrónica funciona hoje como o sistema nervoso da humanidade traz outra: a de que há um cérebro capaz de mexer todos os cordelinhos. O seu aparelho ósseo-muscular foi montado durante o século XIX e tem vindo a ser constantemente aperfeiçoado. Poderíamos estender a analogia a todos os órgãos. É, porém, analogia? Não estamos perante um facto?
Isto quanto ao macrocosmos designado como humanidade. No microcosmos, cada indivíduo é igualmente tratado como uma máquina, cada vez mais subordinada ao sistema geral, na medida em que a máquina vier a ser integrada na rede geral dos computadores. Para a medicina, por enquanto, é um arranjo de peças, substituídas por outras retiradas por outros indivíduos, vivos ou mortos. Aqui, o ideal perseguido é a substituição completa no mesmo ser de todas as peças. Já se tenta implantar braços e pernas de cadáveres nos amputados. A alma passeará um corpo morto, animará um cadáver.
O que parece, porém, que representaria o triunfo da explicação mecanicista da vida e da concepção de um mundo sem espírito deverá ser interpretado como o triunfo daquilo que é negado: a individuação. O homem continuará a ser o mesmo nos seus recessos profundos, a vida nele não cessará apesar da implantação da morte. Não é menos um horror, mas, uma vez mais, a única, primeira e última realidade é o ser essencial de cada homem. Nas operações, permanece para além da anestesia, dotado de um poder comparável ao da ressurreição. A anestesia tem por fim evitar a dor, o protesto do ser durante a transplantação.
Esta palavra transplantação avisa-nos, porém, de que o homem é concebido como um mecanismo vegetal. É o que se verifica pela clonagem, pela qual se realiza o que, nas plantas, é a propagação por estaca.
No Yoga, hoje tão propagado simultaneamente com outros prodígios, o homem é reduzido à sua condição vegetal pela prática da imobilização do tronco, suportada na raiz pelo plano do ânus e das pernas compostas em nó, e pela evacuação do pensamento consciente de si. Aqui, a anestesia do animal produz a estesia da planta, esse vago sentir obscuro e indeterminado que, na natureza, é uma espécie de remota consciência da inteligência que, nos recessos da terra, busca a luz e a flor.
António Telmo
(Publicado em Viagem a Granada, 2005)