DISPERSOS. 15

15-10-2016 00:03

Dionisio[1]

 

Dans la nuit qui tombe, la nuit s’élève,

Les enfants dorment, à cette heure, dans ses lits,

Et les mères qui la lueur embellit

Baisent les enfants avec ses lèvres.

 

Ah! mon dieu, je suis enfant aussi!.

Et qui sait si mes jours ne seront brèves

C’est pourquoi je lève les mains, endolori

À toi demandant sa vie jusqu’à les tenebres.

 

Et puis, o mon dieu, après la mort

N’y a-t-il pas une espèce de sort

Qui me fait vivre une autre vie ?

 

Ah ! Si est ainsi, ó dieu, donnez-moi

Qui cette chérie même y soit

Et qui je sois le même enfant endormi.

 

Sesimbra, 10 de Outubro de 1946

 

António Provença

 

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(Tradução portuguesa de Risoleta C. Pinto Pedro)

 

Dionísio

 

A noite que cai é a mesma que se eleva,

À hora em que as crianças dormem nos seus leitos,

E as mães que o luar embeleza

Depõem nas crianças, com os lábios, beijos.

 

Ah! Meu Deus, também eu sou menino!

E quem sabe se meus dias não serão breves;

Por isso as mãos elevo, dolorido

A ti suplicando a sua vida até às trevas.

 

E depois, ó Deus meu, após a morte

Não haverá uma espécie de sorte

Que me faça viver uma outra vida?

 

Ah! Ó meu Deus, concedei-me se assim for

Que esta amada aí me siga

E eu seja a mesma criança adormecida.

 

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Comentário

Risoleta C. Pinto Pedro

“DIONÍSIO”

in Búzio, Sesimbra, 1946

 

Alguns erros começam por se revelar, ao olhar de quem conheça a língua francesa, erros esses derivados da prematura idade em que foi escrito este poema: aos 19 anos de um jovem que fez quase toda a escolaridade em estudo autónomo, apenas com apoio paterno. É assim de assinalar, e não deixa mesmo de ser notável, a elegância sintáctica e rítmica, essa sim já denotando, para além de leituras assimiladas, alguma prematuridade poética.

 As incorrecções linguísticas verificam-se ao nível da morfologia e da escolha do léxico com repercussões semânticas. Mas não causam beliscadura, nem à estética nem ao sentido, antes acrescendo o poema de ocultos sentidos que muito interessariam a uma psicologia das profundezas.

Este tema da noite e da família adormecida vai repetir-se num poema mais tardio “A família é de noite quando se dorme”, onde volta a aparecer a alusão ao sono das crianças: «há crianças a dormir», como se o sentido da família, a união ou a sua pacificação fosse mais fácil de reconhecer à noite.

Já encontramos aqui alguma da temática da poesia posterior, e características da sua arte poética e da obra em geral, tal como da sua vida. É o caso dos opostos que se conciliam «Dans la nuit qui tombe, la nuit s’élève», o paradoxo, que no oriente se traduz no princípio do yin/yang; e a noite como regaço dos mistérios.

Mas aqui está, neste Telmo de 19 anos, aquele outro Telmo que ainda não se despediu do menino: «Ah! mon dieu, je suis enfant aussi!». Nem do regaço da mãe, uma forma de noite. Mãe e noite aqui idolatradas e quase confundidas. Isto não anda muito longe da filosofia oriental na sua forma do I Ching que tanto viria a fasciná-lo: a associação da mãe e do feminino à noite, às trevas e à lua. Bem como a já referida conciliação dos extremos «tombe» e «élève» que nos remetem para a «tábua pitagórica transmitida por Aristóteles» que encontramos logo no início da Gramática Secreta.

Por outro lado, são de uma precocidade quase chocante, quer o pensamento sobre a brevidade da vida: «Et qui sait si mes jours ne seront brèves»; quer a atitude de adoração e prece: «je lève les mains, endolori/À toi demandant sa vie» daquele que irá ao longo do seu percurso conciliar perfeitamente a contemplação mística com a intolerância para com os fanatismos das religiões.

Em termos psicológicos, um desejo quase regressivo de infância, naquilo que esta tem da união com a mãe, certa recusa em crescer, saltando imediatamente para uma outra vida em que volte a ser o menino… da mesma mãe: « Qui cette chérie même y soit/Et qui je sois le même enfant endormi.»

Não é inocente nem alheio ao que conhecemos da sua biografia, o facto de a noite trazer pacificação, amor e beleza às mães junto dos meninos, como se esbatesse a dureza do que mostra o sol e até o signo solar; cito, a este propósito, passagem das Páginas Autobiográficas:

 

«O signo do Touro, onde estava o meu Sol quando nasci, é, como se sabe, oposto ao signo do Escorpião, que, logo por meu azar, preside aos horóscopos de minha mãe e de meu irmão Rui, que Deus tenha as suas almas em paz. Do mesmo lado, a um ou dois graus do Escorpião se encontrava ao nascer o Sol do meu irmão Orlando.»

 

Este poema é um grito surdo, obscuro e elegante saído da prematura e durativa dor do amor.

A propósito do pseudónimo, dado que não é de menosprezar, vejamos o que escreveu Pedro Martins no PAT.VO, a 11-10-2016:

«O poema de Telmo, como se disse já, está datado de 10 de Outubro desse ano de 1946. A pseudonímia patente na assinatura “António Provença” não pode deixar de evocar a poesia trovadoresca e, porventura, a kabbalah, a partir de um dos seus principais focos de irradiação. Neste sentido, o título do poema, “Dionísio”, é susceptível de nos remeter para D. Dinis, até por a data da composição ser o dia imediatamente posterior ao do aniversário do Rei Lavrador. Mas pode muito bem tratar-se, por outro lado, de uma homenagem do jovem poeta a seu pai, António Martinho Diniz Vitorino. Não sabemos.»

 

Outubro de 2016



[1] In Búzio, Ano I, n.º 1, 15 de Outubro de 1946.