DISPERSOS. 13

24-08-2015 09:27

A conversão[1]

 

A conversão de Leonardo Coimbra ao catolicismo é interpretável e tem sido interpretada pela parábola do Filho Pródigo, mas alcança-se, na altura, todo o sentido da parábola? Deve a conversão ser entendida como o abandono do erro e o retomar do caminho direito? Ou como uma iluminação?

Tudo quanto o filósofo pensou, escreveu e disse, enquanto andou por fora e bem longe, é para desprezar ou só alguma coisa? Que livros devemos ter por legendas, isto é, dignos de serem lidos?

Ou dizemos que apenas a vontade errava, mas no pensamento Leonardo Coimbra foi sempre católico e só no fim se comoveu a vontade? Neste caso, terá para nós um interesse meramente exemplar.

O que é a parábola do Filho Pródigo?

Imaginemos que a Maçonaria foi o Egipto de Leonardo Coimbra. Diremos então que essa tão discutida instituição, tão intimamente ligada às ciências materialistas, mas também às ciências ocultas, com seu sonho republicano de liberdade política e religiosa, foi a terra negra onde se entenebreceu a luz do seu espírito e se degradou a energia do seu pensamento?

A parábola do Filho Pródigo poderá representar, nos termos de Leonardo Coimbra, a entropia, pela qual a energia se degrada e perde até ao aniquilamento da Criação. Mas, no seu pensamento, a vida é já o movimento contrário ao da entropia. Quando o éon perdido dos onze (fuga de José para o Egipto) ou, o duplo extraviado ou extravagante da parábola, ou o Filho de Deus descido e encarnado na terra regressa, não haverá um «aumento de ser» ou tudo fica como dantes na «inutilidade de um mundo feito»?

Nos termos iniciais: A conversão de Leonardo Coimbra não veio trazer nada de novo ao catolicismo?

Esta interpretação pela parábola do Filho Pródigo do regresso de Leonardo Coimbra à religião de infância pode receber a forma desta pergunta: O que andou fazendo entretanto o emigrante e porquê?

Porquê a erradia circulação das energias?

Havemos de continuar a pôr em termos de bem e de mal as oposições que necessariamente se dão com o movimento criacionista da energia espiritual? Nem no mundo da família é um mal a oposição do filho ao pai, do filho que parte e se separa à procura de uma vida diferente, nem no mundo natural as aves emigrantes são menos belas, menos fortes, menos audaciosas do que as aves sedentárias.

Todos sabemos da importância que Leonardo Coimbra dava à «experiência», isto é, ao viver em perigo ou em esperança. Assim, escreveu:

«O desprezo da experiência produz contemporaneamente a morte da ciência e da moral integral ou religião. Quando o homem cristaliza, em dogmas repousados, as grandes experiências cósmicas, resulta uma invasão do pensamento pensado e a estagnação da actividade científica ou religiosa. São os períodos de formalismo excessivo e, consequentemente, de um desatinado egoísmo de seita. A mística, romântica erupção do cósmico através do individual, é um prenúncio de libertadora atenção à realidade, como mostra a história da Idade Média e a sua condenação pelo Dogma».

É ainda preciso perguntar pela razão da sua «extravagância»?

Em escritos e discursos fez a apologia da Maçonaria; militou pela República contra jesuítas e reaccionários; opôs-se ao ensino eclesiástico. Explica-se assim a surpresa de amigos e discípulos, quando tiveram notícia da sua conversão. Todavia, se pensarmos que, na realidade, lutava por uma Igreja renovada ou restituída, muito semelhante à que hoje vemos desenhar-se na mente do actual Papa, teremos maior interesse em saber como sempre foi católico do que em verificar que foi anti-católico.

À luz do «criacionismo», a parábola do Filho Pródigo toma, pois, outro sentido. Não é legítimo ver à mesma luz a tentativa de uma Igreja Lusitana, de Teixeira de Pascoais, a Condição e Destino do Pensamento Português, de José Marinho e o movimento de Filosofia Portuguesa, de Álvaro Ribeiro?

Neste sentido, não houve conversão de Leonardo Coimbra. Ou, por outras palavras, a conversão foi a sua última experiência que antecedeu o seu verdadeiro regresso nove dias depois.

Se a religião é a moral integral, a filosofia é, pelo pensamento em que é e se move, «a única oração eficaz». Na verdade escreveu que «o pensamento filosófico é a única oração eficaz». Esta frase pode, evidentemente, receber a interpretação de que não há oração eficaz fora do pensamento filosófico.

Escreveu também: «O pensamento tem em si a sua própria garantia».

Somente a própria garantia?

Já vimos que não. Vimos que o pensamento não é só para pensar. Quando é bem consciente de si, a sua verdadeira e íntima natureza é o amor. Move porque é o amor. Todos toleram a filosofia quando está ao serviço da Religião ou do Estado. Não admitem que, por si só, possa servir Deus ou a Terra.

É a partir daqui que podemos compreender a hostilidade para com Leonardo Coimbra e para com a filosofia portuguesa, e, em geral, para com todos os filósofos, desde Sócrates a Álvaro Ribeiro. É uma hostilidade que vem da direita e da esquerda e que tem sempre um cómico ao serviço. A filosofia, porque é sincera, humilde, corajosa e verdadeira constitui um alarme para a tranquilidade instável estabelecida sobre um determinado conjunto de interesses. Há nela qualquer coisa como a rebeldia dos Anjos. Mas a rebeldia dos Anjos não é, sob outra forma, a parábola do Filho Pródigo? Porque é que o anjo rebelde não há-de um dia regressar, pelo seu retorno reintegrando todas as parcelas de luz dispersas?

É este um dos sentidos mais fundos da filosofia de Sampaio Bruno. Os comparativistas hão-de reconhecer um dia em Leonardo Coimbra toda a herança de Bruno. O conceito de entropia, que vai buscar aparentemente à ciência, é, no mundo da matéria, a ideia da queda que Bruno situa no mistério insondável de Deus. Há uma perda constante de energia, que a vida biológica ininterruptamente recupera e que a vida espiritual inverte num perpétuo «aumento de ser». Tal é, no «criacionismo», o movimento pelo qual se ligam os três mundos que constituem o universo.

E a missão do homem?

Onde Sampaio Bruno responde que é «ajudar a evolução da natureza», Leonardo Coimbra hesita, contradiz-se, retoma humildade e coragem para perguntar:

«É o homem capaz de criar energias?»

Duas concepções se opõem no espírito do filósofo: uma segundo a qual o mundo criado por Deus é um grande autómato, girando sobre si próprio, por tal forma agenciado nas partes e no todo que sempre em si conservará a mesma quantidade de movimento; outra que imagina o mundo como uma corrente da plenitude do todo para o abismo do Nada. A primeira deriva dos filósofos matemáticos, como Descartes e Leibniz; a segunda inspira-se dos modernos físicos e identifica-se como um dos aspectos da filosofia de Bruno. Se o homem tem por missão colaborar na ordem do mundo enquanto elemento dessa ordem, destruindo a liberdade, «essa missão é bem estúpida e ignara»; Leonardo Coimbra não quer perder tempo com uma doutrina conservadora que é o oposto da ideia criacionista; outro oposto dessa ideia é o facto inegável de «que o homem assiste ao envelhecimento próprio e alheio, quase impotente, e é levado na corrente da degradação física para a morte do planeta e dos mundos».

A missão do homem poderá ser, pois, a de criar energia, a de ser capaz de se assumir como um centro poderoso: «O homem seria Deus porque criava ser, visto que aumentava ou diminuía a realidade».

A que corrente de pensamento alude aqui Leonardo Coimbra? Conjecturamos que ao martinismo que deve ter conhecido através de Sampaio Bruno e que parece tê-lo seduzido de passagem. A conjectura nasce das implicações contidas nas seguintes linhas: «Neste desejo humano (de criar energia), há o orgulho de anjo rebelde, há um movimento para a Unidade de que o homem seria o foco e a razão única».

Aos mesmos responde, reflectindo, com as noções ocultistas de evolução e involução: «De resto, é a evolução integral e perfeita? é desacompanhada duma involução superior que a justifique?

É tão trágica a descida das energias, a corrida para um equilíbrio físico?

Não é antes um sinal bem evidente da divindade, dum poder de criação que renova os mundos, ou, por uma superior ordenação, acode à queda física?»

No último parágrafo está condensado todo o «criacionismo». Mas, então, qual é o papel do homem?

A sombra da primeira concepção, que fora arredada por estúpida e ignara, levanta-se de novo, não obstante a imagem da cadeia tenha, para nossa felicidade e do próprio pensador, sido substituída pela da escada da visão de Jacob por onde os anjos descem e sobem. É, todavia, necessário ressalvar a liberdade do homem.

A nossa missão, diz-nos, é ver, meditar e compreender. É o pensamento. Se, por uma superior analogia, pudermos repetir em nós «o Universo resplendente de acção criadora e presença divina» erguendo-se «sobre o Universo visto em fatalidade» teremos encontrado o único sentido possível da nossa liberdade.

Nas páginas que vimos reflectindo d'A Alegria, a Dor e a Graça (194-197), o problema da liberdade humana procura uma solução também no modo de «experiência» que utilizarmos. Leonardo Coimbra escreve a palavra Experiência em itálico e com inicial maiúscula. A quem se dirige, quando diz compreender «muito bem a necessidade da Experiência? A que modo ou tipo de experiência se refere, quando logo opõe que ela «só é uma longa e meditativa conversa com o Ser»? Porque, dos dois adjectivos, só sublinha o segundo?

Não é certamente à experiência científica. Refere-se, sem dúvida, a um modo de experiência mediante o qual o homem possa criar energias. Não é, certamente, à experiência científica, porque nunca se trata aí de criar energias, mas de conduzi-las. Há um outro passo do mesmo livro onde a mesma pergunta é posta de outro modo, mas com incidência no mesmo problema: «É o homem capaz de criar imagens?» De criar, isto é, de pô-las viventes e bem objectivadas, fora de nós.

Não haverá aqui, de novo, alusão ao «martinismo», operativo no domínio da magia e da teurgia?

Se assim é, compreende-se que Leonardo Coimbra oponha a tal operatividade, que se propõe criar imagens e energias, a sugestão de uma experiência que seja só uma longa e meditativa conversa com o Ser. Todavia, o módulo experiencial, num e noutro caso, deve ser o mesmo.

São as seguintes as palavras terminais de A Razão Experimental:

«De olhos cerrados, em íntima meditação, deixemos a alma apontar seu rumo».

Tal modo de meditação é, em si, a experiência do «grande sentido oculto do Universo», na qual podemos confiar porque «basta uma hora de meditação para conhecermos que somos um espírito».

Para tanto, duas virtudes são, pelo menos indispensáveis: coragem e humildade. Porquê coragem?

Não foi por falta de coragem que pôs de parte magia e teurgia, mas por humildade:

«O que há de propício no estranho é a sua parte de essência, que nós podemos penetrar pelo movimento, ou amor, mas que não poderemos aniquilar ainda que bem diabólico seja o desejo».

Mas a experiência é sempre um risco ainda quando seja «a socialização do nosso ser ou liberdade com os outros seres». Deve-mos acrescentar aqui «visíveis e invisíveis».

Eis, pois, dado um dos aspectos da visão ocultista de Leonardo Coimbra. Quem se aproximar da sua obra sem a noção de analogia poderá, evidentemente, descobrir muito no domínio do seu pensamento exterior, mas o essencial, aquilo que se revela pelo encontro do pensamento com a experiência ficará inteiramente por conhecer.

Leonardo Coimbra, isto é, o movimento da sua filosofia não deve ser apenas interpretado, mas interiormente repetido, por forma a que, enquanto nele meditamos, se transforme numa perfeita ressonância que é, já fora de Leonardo Coimbra, a nossa própria visão.

 

António Telmo



[1]Leonardo Coimbra, Filósofo do Real e do Ideal, Lisboa, 1985, pp. 203-209.