CORRESPONDÊNCIA. 17

14-07-2014 09:36

UMA CARTA INÉDITA DE ANTÓNIO QUADROS PARA ANTÓNIO TELMO (NO 91.º ANIVERSÁRIO DO AUTOR DE PORTUGAL, RAZÃO E MISTÉRIO)

Transcrição de Pedro Martins

Cascais

8.7.87

 

Meu caro António Telmo:

  

(…).

O ano de 1986 foi sobretudo de batalha intelectual comigo próprio: para completar a organização das Obras em Prosa de F. Pessoa para a Europa-América; para completar e entregar a tempo o vol. II de Portugal, Razão e Mistério; para preparar o curso sobre Filosofia Portuguesa que dei no Rio de Janeiro…

À chegada, já sabe, os meus problemas cardíacos. Só há pouco terminei a longa série de análises complicadas no Hospital de St.ª Cruz (coronariografia, isótopos, etc., etc.), pois suspeitavam de algo mais grave do que afinal parece que tenho. Foi pois posta de lado a cirurgia, mas terei que tomar sempre uns 5 ou 6 remédios, fazer regime constantemente e reduzir o “stress” da minha vida, no que o IADE tem a parte maior, hoje com cerca de 100 professores e cerca de 1.000 alunos. (…). Mas… meti-me nisto e já não poderei sair tão facilmente, pois sinto a responsabilidade perante as pessoas que trabalham no IADE, os alunos, etc. É qualquer coisa da ordem do dever, mas que distrai do que seria essencial: pensar, reflectir.

E é do que sinto mais falta. Decerto, o meu trabalho intelectual ressente-se deste misto de falta de tempo e de pressa, pois me pesa muito não saber se ainda terei os anos suficientes para completar a obra, que imodestamente julgo poder realizar dentro das minhas possibilidades e faculdades, obra esta que afinal, depois destes anos todos, povoados de tanta inutilidade, ainda vai no princípio, nas primeiras frases…

Assim, o ano de 1987 foi mais marcado pela luta pela saúde, o que graças a Deus, e de momento, parece já quase controlado, embora ainda chegue ao fim do dia bastante cansado, sobretudo quando o passo todo em Lisboa. Entretanto, tenho escrito alguns textos e ensaios, como a comunicação que em Agosto vou fazer à Áustria, no Alpbach European Forum (“Do Império do Espírito Santo ao Mito do Quinto Império”), como outra que fiz na Universidade Católica sobre a Justiça e a Paz ou o longo texto sobre a Filosofia Portuguesa no século XX para a revista Democracia e Liberdade (para o qual você também colaborou e que, segundo diz o Pinharanda, deve sair em Setembro); e também fui falar de temas semelhantes à Escola Superior de Belas Artes, à Universidade Nova, à Sociedade Histórica da Independência de Portugal e ao Instituto D. João de Castro, sempre a convite de estudantes e gente moça (excepto no último caso), o que mostra o interesse que os temas portugueses voltam a despertar na juventude. Mas tudo isto é… viver dos rendimentos, de certo modo repetir os temas já tratados! Nalguns destes lugares tenho coincidido com o Agostinho da Silva, com o desgosto de verificar que está cada vez mais acérrimo na sua campanha contra a filosofia portuguesa. Portugal não tem filósofos (apenas o Spinoza) e aliás não tem importância, porque o que importa é a Sabedoria (e isso o povo português tem-na com seus mitos e crenças) e a matemática ou pragmática!

Não é preciso filosofar, o que é preciso é agir, para o que basta o fundamento de uma sophia por assim dizer inerente ao nosso povo, com a graça do Espírito Santo a soprar no nosso sentido, etc. Em tudo isto, muitos compromissos com a política do momento, com o socialismo, com o terceiromundismo, com os nomes em voga, Soares, Saramago, etc. É muito esquisito mas não me arrependo de lhe ter dedicado o livro, pois tenho que ser justo: foi ele que me inspirou o seu tema central, além de que há nele um fogo na oratória, que leva muita gente nova para fora dos enquadramentos positivistas ou comunistas, abrindo-lhes portas.

No entanto, não o sigo, longe disso, pois sou acima de tudo discípulo de Leonardo Coimbra e de Álvaro Ribeiro, estando pois do lado das suas teses e procurando defendê-las e expandi-las.

Receei na verdade que você, ou não tivesse recebido o livro, ou nada me quisesse dizer a seu respeito por o achar demasiado cristão, ou católico.

Aliás, você foi direito a um dos tópicos mais controversos, uma pedra de toque, a questão dos Jesuítas. Na realidade, julgo ser um livre-pensador, só que não quero perder a ligação directa, vivencial, a uma Igreja pontifícia. A ponte com o sobrenatural pode decerto dispensar a Igreja, como sucede com os místicos e os gnósticos, mas, não me sentindo ou não sendo agraciado com tais faculdades, ao menos situo-me na ponte entre o hoje existencial e o eterno divino, representado na herança de Cristo Jesus a Pedro e aos Pontífices. Contudo, é ainda mais funda (embora dificilmente expressável) a minha ligação também pontifícia, à Igreja de João e do Espírito Santo, o que me defende de cair no clericalismo e no dogmatismo. Há aqui um acto de humildade, como penso que terá sido o de Leonardo, na sua conversão pública. A metanóia era muito, muito anterior. Mas, com a sua conversão pública, não quis ele diminuir o ego e juntar-se ao povo que não tem acesso a outras pontes, senão a ponte por Pedro?

No fundo, este meu segundo volume foi (ao menos para mim) um livro luminoso.

Que vai ser o terceiro (que ainda não comecei a escrever), se é no terceiro que tenho de defrontar os problemas da Contra-Reforma e depois do Iluminismo? Julgo que vai ser um livro labiríntico, de luz-sombra ou de sombra-luz, mas mais sombrio do que aquele.

Pensei muito em si, quando, espectacularmente, marquei as datas de 1321-1521 para o projecto áureo. Claro, isto foi um pouco de provocação, pois as vidas não se podem datar com tanta precisão. O fim do ciclo é a morte de D. Manuel (como eu marquei) ou a época infamante em que D. Manuel, por ambição, cede aos Reis Católicos, obriga à conversão artificial dos Judeus, à figura do Cristão Novo, à expulsão dos Judeus Velhos, como no seu conceito, caro António?

Pois apesar de tudo forço na figura de D. Manuel, não só porque acho que ele quis sobretudo enganar os espanhóis, para obter o trono das Espanhas, mas também porque ele era da Ordem de Cristo e lhe devemos a Arte Manuelina e Gil Vicente. Mas fi-lo em dúvida íntima!        

Que significa, aqui, passar da Ordem de Cristo à Companhia de Jesus? Eis um tema em que tenho de lutar corpo a corpo. Eu não faço propriamente distinção entre os Jesuítas espanhóis e os portugueses. Os portugueses da primeira vaga, da geração de Loyola, foram de facto iguais aos espanhóis.

Põe-se-me no entanto a dúvida quanto aos das vagas seguintes. É que, com o período filipino, eles descobriram-se portugueses – e daí Vieira, a quem F. Pessoa chamou Mestre da ordem dos Templários! Estiveram na luta pela restauração, colaboraram na expansão, lutaram contra holandeses e ingleses, e, na luta contra Pombal, de que lado deveremos estar? Aí eles defenderam o tomismo e o aristotelismo contra a filosofia das luzes e a reforma de Verney.     

Como vê, são temas para os quais estou desperto e para os quais não tenho de momento solução pronta. Vai ser um dos pontos mais difíceis do vol. III. Uma coisa é certa: serei tão objectivo e livre-pensador quanto possível. D. João III e a Inquisição são imperdoáveis. Os Jesuítas… a questão é ambígua e controversa. Preciso de estudar melhor o problema, pelo que a sua ajuda seria preciosa. Como vê você os problemas que levantei? Mas a minha conclusão final será sempre criacionista. A regeneração passa, depois da fase dos mitos, pela fase do criacionismo filosófico, por uma filosofia teleológica, segundo o magistério dos nossos mestres.

Bom, esta carta já vai demasiado longa. Que está você a fazer neste momento? Estou certo de que tem muitas coisas pensadas e escritas, que nos irão surpreender e iluminar, como sempre.

Gostaria muito de ir visitá-lo. Mas vai ser difícil!

Viu o livro do Álvaro, organizado pelo Pinharanda? É esmagador…

 

Saudades à sua mulher e um abraço do seu amigo dedicado,

 

António Quadros

 

P. S. Não me disse nada acerca da minha “leitura” dos Painéis. Que achou? Fiz uma interpretação claramente gibelina: a Casa de Avis a dominar o Alto Clero, a Nobreza e os Condestáveis…

Quanto ao meu horóscopo: n. a 14 de Julho às 7 da manhã – 6,20 h. exactamente, parece que sou um Caranguejo com ascendente de Leão. Fortemente lunar, a verdade é que tenho passado o meu tempo a fazer reflectir a luz solar dos outros (os Portugueses, Álvaro Ribeiro, Marinho, Leonardo, Pessoa, Pascoaes, etc.), do que a emitir uma luz própria. Mas é um papel que hoje assumo com consciência e com alegria. Talvez pudesse fazer mais por exprimir o meu próprio pensamento, e talvez tivesse alguma coisa a dizer, mas vou-o sempre adiando, nas urgências de valorizar a filosofia e a paideia portuguesas, o magistério do Espírito através dos nossos Mestres, etc. Já era imenso se nesse capítulo conseguisse algo. Querer mais do que isto seria estultícia da minha parte. Já me tenho classificado, não como filósofo, mas como filo-filósofo. Aliás, a tarefa de receber o sol de Portugal e do seu espírito ou pensamento é tão enorme que pouca margem deixa (ou o meu inconsciente o escolhe assim) para um mais que provavelmente seria menos.

Por curiosidade, mando-lhe fotocópia do Horóscopo que o Vasco da Gama Rodrigues me levantou aí por 1950. Parece-me bastante acertado, se descontarmos um certo tom de elogio ou de simpatia…

 

Um grande abraço do

                                                                         António