INÉDITOS. 105

16-04-2023 11:27

História Secreta de Portugal, o mais célebre livro de António Telmo, tem ele mesmo uma história que pode igualmente ser considerada secreta, no sentido de que somente o estudo do espólio do filósofo permitirá esclarecer – pelo menos em parte – o correspondente processo de gestação e de desenvolvimento da obra. Em O Horóscopo de Portugal e escritos afins (Volume VII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Junho de 2017), haviam já sido dados à estampa alguns escritos inéditos contemporâneos da História Secreta e que revelavam afinidades com a sua ideação; em História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios (Volume VIII das Obras Completas de António Telmo, publicado pela Zéfiro em Dezembro de 2017) foi a vez de se publicar uma grande parte dos materiais de uma primitiva versão da História Secreta, então ainda com o título História Oculta de Portugal. De natureza fragmentária e organização conjuntural, do conjunto então dado a lume só se deixou de fora os escritos que escassa diferença patenteavam com as versões definitivas, consagradas no livro de 1977, bem assim como um outro – “A inveja como agente da degenerescência espiritual” – revelando uma versão levemente diferente, e de resto inacabada, da que veio a ser escolhida.   

O conjunto de textos que agora se dá à estampa – que quase esgota o conteúdo de um dos proverbiais cadernos manuscritos de Telmo, em cuja capa o filósofo, à guisa de indicação, escreveu: “Serve / A “inveja” e os leonardinos” – vem alargar o nosso conhecimento do processo criativo da História Secreta de Portugal. Será publicado no próximo número (o 32) da revista NOVA ÁGUIA, a sair no próximo Outono.

Destinavam-se todos esses textos a um capítulo da obra – intitulado “Os leonardinos” – que a sua versão final, como se sabe, não viria a contemplar. Enquanto a História Oculta de Portugal, pelas referências que se surpreendem no seu texto introdutório, nos remete para o palco das eleições presidenciais portuguesas de 1976, realizadas no mês de Junho, um dos textos agora publicados faz menção à coincidência de Portugal e Espanha terem primeiros-ministros homónimos: Mário Soares e Adolfo Suárez, respectivamente. Esse texto não deverá, assim, ter sido escrito antes de Julho de 1976. Deste ponto de vista, representará possivelmente um estádio mais avançado da elaboração da obra. Com efeito, se entre os materiais da História Oculta se encontra um plano do livro, aliás manuscrito por Orlando Vitorino, que não vai além da 2.ª Parte – Os Sacerdotes (uma clara antecipação do que, na História Secreta, virá a ser o ciclo do clero), do caderno sobre os leonardinos resulta um novo plano da obra, tendencialmente completo e já bem mais próximo do que virá a ser o ser o seu índice final:    

 

«Introdução

Em seu trono entre o brilho das esferas

 

Ciclo dos Reis

 

I

Santa Maria de Belém

Volve a nós teu rosto sério,

Princesa do Santo Graal!

 

II

A Iniciação de Nicolau Coelho

Na Cruz morta e fatal

A Rosa do Encoberto.

 

[III]

O Barco

 

IV

A Fonte dos Gamos  

Em baixo, onde a terra é, o pastor gela, e a flauta

Cai-lhe, e em êxtase vê, à luz de mil trovões,

O céu abrir o abismo à alma do Argonauta.

 

V

A Poesia de Amor de D. Dinis  

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo

 

 

Ciclo dos Sacerdotes

 

VI

Luís de Camões

                        Abria em flor o Longe, e o Sul sidério

Splendia sobre as naus da iniciação.

 

 VII

António Vieira

 

           

Ciclo do Povo

 

VIII

O Brasão (Guerra Junqueiro)

 

IX

Fernando Pessoa

A Europa jaz, posta nos cotovelos…

 

X

Teixeira de Pascoaes

 

XI

Os leonardinos

Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.

Senhor, falta cumprir-se Portugal!

 

XII

O Fim

O mostrengo que está no fim do mar

Na noite de breu ergueu-se a [voar]»

 

A intenção de adoptar para a epígrafe de cada um dos capítulos do livro versos de Mensagem, de Fernando Pessoa, anunciada no texto sobre o poeta que integrava a História Oculta de Portugal (cf. História Oculta de Portugal precedida de No Meio do Caminho da Vida e Os Meus Prefácios, p. 253) releva aqui um grau de concretização deveras apreciável. O diálogo do “caderno dos leonardinos” com a História Oculta e com os textos afins da História Secreta é, de resto, bastante assinalável e fecundo. Assim, o escrito intitulado “Homens sem sono” e incluído em O Horóscopo de Portugal e escritos afins conhece interessantes desenvolvimentos numa das presumíveis variantes de “Os leonardinos”. Também o sentimento de inveja (com a sua etimologia e a sua psicologia) ou a ideia de uma inversão dos pólos, já abordados nos materiais da História Oculta, conhecem nesse caderno reformulações não isentas de diferença ou novidade. Por muito que Telmo, em “Os leonardinos”, se distancie do profetismo, a sua proposição de que a revolução de 25 de Abril de 1974, por enfim ter dado curso ao socialismo em Portugal, seria, segundo uma rigorosa lei histórica que o filósofo enuncia, o prenúncio do fim desta corrente mental na Europa e no resto do mundo, não deixará de impressionar o leitor ciente ou recordado do que, no final da década seguinte, sucedeu na Europa Central e de Leste…     

 

Os leonardinos

 

Se a saudade é o sentimento que nos caracteriza como povo criador, parece ser a inveja o factor mais evidente da nossa degenerescência mental. António Vieira, que foi uma das suas nobres vítimas, considerava-a o vício nacional. A inveja não é um vício, mas a energia torva da vontade. Assim, em francês, o étimo latino evoluiu para envie, que significa desejo ou vontade, mas onde se perdeu ou se não ganhou, como em português aconteceu, a relação da palavra com o sentido da vista. Popularmente, a inveja é o mau olhado. Invejar é não querer ver ou não poder ver, por se nos tornar insuportavelmente dolorosa a evidência do valor alheio.

A inveja encobre-se. É um sentimento “pálido”, como escreveu Virgílio. Não se manifesta violentamente como o ódio. Disfarça-se. Reclui-se na intimidade sofredora e, se o invejoso não chega a adquirir uma nítida má consciência de si, é porque actua sempre em nome da justiça, de valores pseudo-cristãos como a igualdade, proclamando que não está certo que uns sejam mais do que outros, opondo-se até à existência do outro, só porque este é uma diferença, defendendo a vida grupal em massas e legiões e partidos, construindo

 o socialismo no mundo, como ainda há bem pouco tempo observou o Bispo do Porto.

O seu encobrimento vai até ao ponto de simular uma admiração sincera, de simular para si próprio também, em relação a certos valores inegáveis, mas obedece, na escolha desses valores, a uma tónica secreta que tem por fim esconder aos seus olhos e aos olhos de toda a gente o valor que verdadeiramente gostaria que não existisse. Assim, se eu posso ocasionalmente admirar um Heidegger, longe na Alemanha, ou um Duns Scoto, longe no tempo, não suporto que o meu vizinho, o meu próximo, o meu compatriota, seja um filósofo de prestígio. Pela inveja se explica assim a subserviência dos portugueses para com os estrangeiros e para com os mortos.

“Quem ao pé do invejoso morou, nem ele medra nem o invejoso medrou”. A inveja, que é coisa da vista, só actua a uma certa distância. Deus foi morto em Cristo, porque em Cristo se tornou visível. O invejoso não suporta a evidência do outro: desvia o olhar. Mas para olhar e lançar a energia torva da vontade precisa de ter a vítima próxima, distinta, circunscrita. Só há um processo de fugir ao olhar mortífero: a fuga.

Sampaio Bruno escreveu um dia que era um exilado na sua Pátria. Nela viveu tanto quanto pôde como um “encoberto”.

Mas o homem verdadeiramente distinto, insuportavelmente visível, foi Leonardo Coimbra. O que espanta, neste espírito, é que ele foi imediatamente espírito. Não se lhe conhece mestre visível, e talvez por isso mesmo fundou e criou uma escola de filosofia, que haveria de assumir, neste fim de ciclo, em que a inveja parece ter consumado a sua obra, a missão de tornar evidente o que, até então, estava oculto e oculto marcou os homens e a sua história. A filosofia de um povo só aparece no termo da vida desse povo: “a ave de Minerva só voa ao anoitecer”.

Nem Leonardo Coimbra, nem os seus discípulos, com excepção talvez de Agostinho da Silva, se caracterizam pela profecia. Não confiam a demonstração da verdade à História. Dizer que a História ou o tempo de tudo decidem, ou na forma inferior que consiste em classificar uma doutrina da falsa porque não é actual e está ultrapassada pela experiência pela experiência dos homens e do seu espírito, ou na forma superior, a de Bruno, por exemplo, que vê no tempo o próprio Espírito Santo, pode ser um dos caminhos de progresso especulativo, mas fecha as portas a qualquer tentativa individual de exercer a liberdade do pensamento ou de livremente aderir ao que foi pensado pelo espírito vivente, de uma vez para sempre, em qualquer ano da vida do mundo. A história modificará a face do homem; todavia, ele continua, “por mais que a ciência a inútil gleba lavre”, e “a religião viva o sonho do seu culto”, a ser um mistério para si próprio, o mundo e a própria ciência e a própria religião continuam a ser um mistério, de tal modo que o silogismo poético de Fernando Pessoa deveria ter antes esta conclusão: procura e crê porque tudo é oculto.

Caminho de progresso especulativo sim, mas nunca uma artimanha do “espírito que nega”, da inveja para dissuadir o homem, enquanto indivíduo, de pensar. É incrível como há tanta gente que se deixou convencer de que vivemos num mundo sem mistério e que a solução dos nossos problemas depende do tempo ou da evolução da ciência, como se alguma coisa se soubesse do germinar da semente ou do eclodir da ideia que não reclame sempre de novo a actividade “criacionista” do pensamento. Se eu tenho a intelecção das coisas “em potência” é no sentido de que essa potência passará a acto em qualquer momento do tempo. Não se compreende uma ciência definitivamente encerrada em letras ou números, sem que eu, enquanto sujeito de intelecção, eu e mais ninguém por mim, possa movimentá-las em ideias e restituí-las ao espírito. A letra em si nada significa. É o espírito, tornado activo e vivente, que lhe dá sentido.

Todavia, só o espanto e outros demónios análogos da inspiração teorética podem suscitar em mim a vida do pensamento, isto é, desencadear em actos livremente elaborados a potência de ser, aparentemente morta que tenho em mim. Por isso, a inveja, o espírito que nega procura, por todos os modos, evitar que os homens se espantem, admirem e venerem o que lhes é superior. Há formas da alma que provocam a descida do espírito, mas que, por sua vez, só se produzem ou pela acção mecânica dos vários alucinogénios ou pela reflexão superiormente orientada por um mestre exterior ou interior! Homens tem havido que têm orientado a reflexão dos outros homens no sentido de criar um estado de alma onde se espelha um mundo sem mistério ou segredo, para ser vencido, na sua cenobita inviolabilidade pétrea, pela vontade ou pela astúcia. É que, uma vez petrificado o mundo pela nossa maneira de o olhar, logo ele surge como uma enorme, imensa massa impenetrável, indiferente no seu majestático movimento sem alma à nossa vontade de o possuir. Assim o diabo cai na própria ratoeira que armou.

Leonardo Coimbra escreveu, num comentário ao Regresso ao Paraíso de Pascoaes, que «os demónios fiéis a Satanás procuram corromper as almas adormecendo-as no esquecimento da sua origem divina». A psicologia actual começou por negar com Augusto Comte[1] a possibilidade de autognose, mas desenvolveu-se no mesmo sentido negativo até ao ponto de o homem se conceber como um ser destituído de vida interior. A autognose de impossível passou a ser considerada sem objecto e, portanto, como uma actividade vazia. O “conhece-te a ti mesmo” perdeu o sentido que lhe atribuíam Sócrates e Platão e tantos outros para quem a alma é de origem divina. Dentro de mim, encontrarei apenas fosforescências e reflexos que exprimem as reacções, mais ou menos profundas, às forças sociais que sobre mim actuam. Sou um elemento mínimo de um grande grupo, traumatizado por falta de inserção na sociedade, essa entidade mística dos tempos modernos.

Compreende-se que os leonardinos se tenham ligado aos poetas e que, tenham defendido contra todos, que a poesia, na forma superior que lhe transmite um Pessoa, um Régio ou um Pascoaes, não é só uma vivência típica de certos seres com sestro, mas uma forma real de investigação da verdade. Repudiaram, por isso, a crítica literária que estuda os poetas e não a poesia, vendo em cada um apenas um estilo de sentir ou de imaginar, sem efectiva participação no conhecimento objectivo do mundo e do homem. É a custo que empregamos a palavra objectivo, de que já conhecemos a impropriedade em língua portuguesa, mas se há o que é e também o que parece, por objectivo significamos o que é, isto é, a verdade.

Claro que, sendo assim, a classificação dos poetas por escolas, épocas, correntes, que tem por fim anular o peso objectivo da poesia sobre o seu entendimento das coisas subordinando-a à história, não mereceu dos leonardinos a mínima atenção. Tanto faz que Pascoaes seja ou não romântico. E Pessoa o que é, esse poeta tetrafronte, que desafia o tempo e o espaço? E José Régio e o seu conhecimento dantesco dos infernos da alma? Eles interrogam o mesmo mistério que nós. Ouçamos o que dizem e como respondem às perguntas que fazemos. Só isso importa.

É evidente que tudo está em saber interrogar. Ensinar a interrogar é a primeira missão de uma escola de filosofia. Sabe-se a pressa que os homens têm em encontrar respostas para tudo, antes mesmo de terem sabido fazer as perguntas. Isso resulta, em grande parte, do medo de ser sozinho, sem um ponto firme que lhes dê a ilusão do estar. Em geral, a língua que aprendemos por termos nascido num país, constitui já de si um sistema automático de respostas. Nunca saberemos, todavia, o que significam as suas respostas se não soubermos quem perguntou e qual o verdadeiro fim da pergunta. Julgamos ter uma teoria e somos tidos por ela. Eis por que Sócrates, nos Diálogos de Platão, conduz o adolescente pelo método dialéctico até à aporia inevitável que abala os fundamentos, ilusoriamente firmes, das convicções do interlocutor. Cria-se um momento de perplexidade, de espanto e até de medo. O espírito, apanhado de surpresa no vazio de si próprio, reage automaticamente, negando-se a prosseguir. Mas já não há refúgio possível para ele, se assumir seriamente a própria negatividade. Refugia-se aonde, se tudo ruiu?

E é então que Sócrates inicia o segundo momento da iniciação. Pode tomar um de dois caminhos: ou conta um mito, que mais tarde virá a interrogar, mito que sugere estar a solução da aporia numa visão transcendente; ou faz o elogio da filosofia, da coragem de filosofar como de um pleno que não deixará de correr para o vazio de uma ignorância que conscientemente se assume. E o diálogo prossegue de dificuldade em dificuldade até à epoptia final.

Este método socrático é também o leonardino. É um método iniciático, que permitiu a formação de uma verdadeira escola de filosofia. Claro que ele tem como maiores adversários os cartesianos, cujo método, por semelhante que lhe pareça, é precisamente o seu inverso. A dúvida de Descartes não corresponde à perplexidade de Platão e, muito menos, à ignorância de Sócrates. Descartes duvida, divide-se em dois, um dos quais se afirma a partir do cogito, logo como um ponto firme, inabalável, sobre o qual irá constituir-se o edifício francês das ideias lúcidas e distintas. Tudo o mais é sombra, inexistência, quimera.

A perplexidade platónica surge do sentimento de insuficiência que de si tem o espírito perante a diversidade dos próprios caminhos no mundo imenso das ideias; Descartes conclui desta diversidade a sua irrealidade e é, pelo contrário, na autosuficiência do espírito que põe o núcleo firme da realidade. Quem duvida, acaba sempre por afirmar uma das duas coisas e tentará anular a segunda pela vontade. O problema central dos platónicos era, pelo contrário, o das relações do uno com o múltiplo, entendidas de tal modo que toda a pluralidade ficasse garantida pela presença formatriz da ideia. É o que realiza Aristóteles.

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Nos dias que correm, ser-se platónico ou aristotélico constitui um absurdo ou um contrasenso histórico tão nítidos que a filosofia portuguesa aparece como uma manifestação de heroísmo quixotesco aos olhos daqueles para quem o destino da Pátria se decidirá no palco da economia.

Do que não há dúvida, porém, e aqui está a grande razão quixotesca dos leonardinos, é que a definição da Pátria por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

 

Os leonardinos constituem uma escola de tradição platónico-aristotélica. Afirmam, como se sabe, a existência de uma filosofia portuguesa, que arranca desta tradição e assume a sua forma específica pela língua em que os indivíduos a pensam. Não só afirmam essa existência como a superioridade.

Não se poderia esperar senão o repúdio geral desta ideia pela aparente tolerância que vê nos poetas e nos filósofos uns lunáticos que só por si respondem e não respondem pelo mundo. A inveja cria esta imagem para tornar inoperante a influência que mais teme. Não se ignora o que aconteceu a Sócrates, a Platão, a Giordano Bruno, a Leibniz, a António Vieira, a Camões, a Sampaio Bruno, a Fernando Pessoa, a Leonardo Coimbra, a José Marinho. A inveja perseguiu-os até ao túmulo e, muitas vezes, cavou-lhes o próprio túmulo.

Os leonardinos representam o único acto heróico neste crepúsculo da Pátria, o único risco. Tudo o mais, em breve, será cinza.

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição platónico-aristotélica. Afirmam a existência e até a superioridade da filosofia portuguesa, fazendo coro com os nossos grandes poetas. Só que a estes não competia defender o valor da filosofia, mas da Pátria, que um deles significativamente identificou com a língua. Para os leonardinos só há Pátria se houver filosofia, pois lhes parece que a sua definição por qualquer dos três internacionalismos equivale à sua negação.

É uma situação claramente quixotesca. Nas condições mentais do fim do ciclo, a ideia de uma filosofia portuguesa tinha de ser fatalmente repudiada e até ridicularizada. Isto aconteceu sobretudo durante o socialismo positivista de Salazar, incapaz como todos os socialismos, de aceitar reconhecer e expressar a liberdade do pensamento. Vir dizer ao “povo mais anti-filosófico do planeta”, e ainda por cima quando atingiu um ponto de extrema degenerescência mental, vir dizer que há uma filosofia portuguesa constitui um acto de heroísmo quixotesco. Todavia, como D. Quixote tinha as suas razões, os leonardinos também têm as suas.

Pondere-se, por exemplo, este facto simples: de um lado uma língua, a portuguesa, que é o próprio pensamento na complexidade imensa das suas articulações secretas; do outro um povo que ainda não deixou de falar e que, enquanto memória, lhe está ligado em substância. Mas o plano subtil onde se exerce o acto comum de pensar define-se pela mediocridade das ideias, pela incapacidade de ligar duas ideias e muito menos de deduzir uma terceira. Como é isto possível?

O mesmo fenómeno foi verificado pelos linguistas americanos (um Sapir, um Boas, um Lee-Whorf) que têm estudado as línguas ameríndias. Povos completamente estupidificados falam idiomas que são complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível?

A hipótese de Sapir é que nenhuma relação substancial existe entre a língua e o povo. Então, quem pensa na língua?

 

Os leonardinos constituem uma escola da tradição aristotélica. Afirmam a existência, fundada em Platão e Aristóteles, na língua e no génio individual, de uma filosofia portuguesa. Ao dizerem-na superior, só estão com eles os poetas da Mensagem, do Maranus e de El-Rei D. Sebastião e poucos mais, que acreditaram na missão transcendente da Pátria.  

O ponto decisivo é a língua. Para Fernando Pessoa “a Pátria é a língua portuguesa”. Acontece, porém, que uma língua é um fenómeno subconsciente. Tudo se passa, quando falamos, como se um gramático interior soubesse o que nós ignoramos. Nos três planos linguísticos – o fonético, o morfológico e o sintáctico – actuam sempre os mesmos padrões gerativos a todo o esforço da linguística moderna, – de Sapir a Chomsky, passando por Lee-Whorf –, tem assistido em determinar esses padrões[2] [sic] para cada língua estudada. Assim Lee-Whorf encontrou a fórmula de formação fonética dos monossílabos ingleses e pôde depois escrever: «No plano fonológico, os fenómenos essenciais são regidos por modelos que não são produzidos pela consciência individual. Acontece o mesmo nos planos superiores da língua que designamos por “expressão do pensamento”.»

As investigações deste linguista, na sequência das de Sapir, mostraram que povos num estado extremo de degradação mental – o caso dos povos ameríndios – possuem línguas que constituem complicadíssimos sistemas de compreensão do mundo. Como é isto possível? De qualquer modo, mesmo que se conclua do facto, como o fez Sapir, que raça e língua são entre si independentes, a verdade é que há quem fale a língua, há quem a fale através de um povo, num determinado momento histórico e se, no curso da vida desse povo, os indivíduos que o compõem vão sendo atraídos para formas de vida grupal inferiores, nas quais se afundam mais e mais, há sempre a possibilidade, enquanto existir a língua, de os levar a assumir conscientemente as formas de conhecimento do mundo que a língua guarda nos seus planos superiores.

Pretendem os leonardinos, através da proposição de uma filosofia portuguesa, levar o povo a esse conhecimento, esperando assim poder inverter o movimento do ciclo ou dar, no momento em que a roda pare, o impulso de uma ideia que faz tudo começar de novo?

É evidente que tudo se modificaria em Portugal se os seus pensadores começassem a ser lidos por aqueles que detêm o poder político e se a maçonaria dominante se repensasse nos seus valores originários, projectando-se exteriormente “em formas superiores de vida política”, conforme as palavras de Eanes, mantendo a fórmula socialista embora, mas em consonância com o lema profético de Eanes Bandarra:

 

Rei e povo governarão.

 

Moisés possuía genealogia real, mas ignorava-a. Édipo, criado por pastores, só quando assumiu o poder em Tebas, soube ter morto o pai Laos e casado com a rainha sua mãe. Cristo, da casa de David, nasceu numa cabana. O arquétipo toma forma histórica no momento de crise dos povos e até da humanidade.

Impressiona nesta revolução do 25 de Abril a multiplicação de sinais e de opiniões carregadas de significado mítico, de que os indivíduos não têm consciência, mas que são lançados no domínio público, como se uma mente invisível comandasse os acontecimentos. Desculpe-se a audácia poética da interpretação:

Os cravos identificam-se com as chagas.

“Homens sem sono” é a expressão clássica de designação maçónica e iniciática dos “vigilantes”.

As alusões frequentíssimas nos jornais ao “encoberto”.

[A ideia,] tão ridicularizada, mas profundamente séria, de construir um socialismo à portuguesa.

A anunciação por parte de certos políticos de uma Nova Era, iniciada com o 25 de Abril.

A simbólica do terceiro mundo do célebre poema de Pessoa.

O nítido sentido de inversão de Gomes da Costa para Costa Gomes.

A coincidência de haver um primeiro-ministro em Portugal chamado Soares e em Espanha chamado Suarez.

O facto de Cunhal (a pedra sobre a qual se constrói o templo) ser entre o povo o Cavalo Branco.

A série de nomes medievais que se tornam dominantes: Eanes, Veloso, Sebastião.

 

Não desconhecemos que esta visão poética assume aspectos ridículos ou até cómicos, como, por exemplo, a de identificar a iniciados homens que, na sua maioria, se revelaram de uma mediocridade assustadora. Todavia, se tivermos de reconhecer que o 25 de Abril pôs termo a um ciclo histórico, de dominação do polo norte, fazendo parar a roda e pondo-a a girar ao contrário, o que agora nos parece ridículo toma o aspecto de um conjunto de sinais, que há que ter em conta, independentemente dos homens que lhe estão ligados. Uma lei histórica, mais evidente no domínio da cultura, rigorosa, é a de que quando uma corrente mental chega a este extremo ocidental está prestes a perder-se e a extinguir-se na Europa e no resto do mundo. Assim aconteceu com o movimento medieval dos trovadores, com o gótico na arquitectura, com os valores do Renascimento, com a Reforma, com o iluminismo, com o fascismo, etc… O 25 de Abril que apareceu sob o signo do socialismo marca também a extinção desta corrente política no mundo.    

 

 

António Telmo  



[1] Nota do editor - No original manuscrito: “Compte”.

[2] N. do E. – É de admitir que António Telmo tivesse pretendido escrever: “tem-se assistido ao determinar desses padrões etc.”.