DOS LIVROS. 73

07-04-2024 16:18

Entrevista à revista LER,

conduzida por Francisco José Viegas

 

            Hoje podemos dizer que chegou a um ponto em que tem uma obra regular, com alguma insistência em pontos fundamentais. Comecemos pelo princípio. Como é que se aproximou dos assuntos do esoterismo?

             Bom, eu tenho um interesse por esses temas desde que me conheço, desde muito pequenino…

            Mas quando é que reparou que se interessava realmente por estas coisas, quais foram as suas primeiras leituras?

            Eu vivia em Arruda dos Vinhos, e na biblioteca municipal havia uns livros. Um dia, tinha eu dez anos, apanhei um que se chamava Ciências Ocultas, e o que me maravilhou nele foi que, entre muitas coisas que lá havia e que eu não percebia, se dizia uma coisa espantosa: que nas nuvens se podia ler o destino. Isto impressionou-me muito, e eu passei a ir para o campo, deitar-me de barriga para o ar a ver passar as nuvens e a ver se era capaz de ler o meu destino. Nunca fui capaz, mas aquela beleza das nuvens impressionou-me e ficou a fazer parte de mim. É aí que nasce tudo, é nesse impulso que começa a minha tendência para esses temas.

            Mas isso foi aos dez anos. Depois, teve uma aprendizagem…

            Sim, conheci pessoas. O primeiro que conheci versado nesses assuntos foi o Álvaro Ribeiro, e foi por ele que entrei para o chamado movimento da Filosofia Portuguesa. E o Álvaro Ribeiro é que me ia abrindo o caminho para a cabala, o esoterismo, tudo em conversas confidenciais… A partir daí interessei-me muito. Depois comecei a ler sobre isto e conheci outras pessoas, como o Agostinho da Silva, com quem privei tanto cá como em Brasília (a minha filha até é afilhada dele)… Acho que o Álvaro Ribeiro era um homem das ciências místicas. Eram afins, mas não bem a mesma coisa.

            E quando começou a ler estes temas, lia o quê?

            Naquela altura, nos meus vinte anos, as livrarias não tinham literatura esotérica. Uma vez apareceram, na Sá da Costa, uns livros de ciências esotéricas, que, aliás, foram logo apreendidos no dia seguinte. Eu só tive tempo de comprar um… E lembro-me que um dia apareceu A Teodiceia da Cabala, de Warrain[1] (que eu cito na minha Gramática Secreta). Era um livro grande, bonito, que continha a sabedoria do mundo, como eu o sentia. Eu ia com um amigo, quando o vi, e disse-lhe “Que pena não ter dinheiro.” Quando saímos da livraria, ele tirou o livro debaixo do casaco e deu-mo. Não sei se podem escrever isto, trata-se de um furto na Sá da Costa, mas é por aí que começam os meus estudos de cabala, tudo começou com esse livro.

            Os estudos que fazia tinham alguma coisa a ver com estas matérias?

            Não. Eu andava na faculdade de Letras, em Clássicas, e nada disto era ensinado, claro – tinha um grande desinteresse por aquilo que me ensinavam e nem ia às aulas, pagava até aos contínuos para me tirarem as faltas… A universidade não teve influência nenhuma em mim. Hoje, a universidade está diferente, já se abriu a este mundo do mistério, mas naquela altura era completamente positivista. Só encontrei o que desejava em homens como o José Marinho, que não tinham nada a ver com a universidade.

            Talvez também com o Leonardo Coimbra…

            Sim, mas esse não o conheci. Ele era de facto um inspirador daquilo tudo.

            Disse que as conversas que teve com Álvaro Ribeiro eram em tom confidencial. A “filosofia portuguesa” não comportava questões esotéricas?

            O Álvaro Ribeiro era uma pessoa muito secreta. Toda a obra dele tem um entendimento superficial que pode levar a pensamentos hostis, no sentido de uma orientação conservadora e reaccionária. E, por outro lado, há nele muito material que está cifrado, que não se vê: é preciso ler bem para entender o que está por baixo e perceber que ele era um revolucionário. Muito mais, por exemplo, do que o Agostinho da Silva. O Álvaro Ribeiro foi anarquista, foi marxista, depois fundou o Movimento de Renovação Democrática. Nesse tempo havia uma grande hostilidade em relação ao esoterismo, e era preciso cifrar tudo para que o leitor pudesse descobrir sozinho. Sobretudo depois do 25 de Abril, as coisas mudaram muito.

            Qual era a sua relação com as tertúlias políticas de Lisboa?

            Nunca participei nos meios políticos. Fui convidado, mas não aceitei e tive problemas.

            Como?

            Quando vim do Brasil, usava barba. E o ministério do Veiga Simão pediu-me para ir fundar a escola do Redondo. E eu vim. Nesse tempo ainda se fundavam escolas – agora abrem-se escolas. E quem ia fundar uma escola tinha, também, de escolher os professores, etc.. Quando lá cheguei, apareceram-me os políticos da terra a impor os professores, mas eu não deixei. Entre os que escolhi, pelo menos dois eram contra a situação, o que, aliado às minhas barbas, fez com que isto chegasse ao Governador-Civil e, depois, ao ministério. Lá fui eu a Lisboa. O director-geral perguntou-me: “Você é a favor da situação?” E eu disse: “Não, sou contra.” E ele perguntou-me o mesmo que vocês agora: “Mas pertence a alguma coisa?” E eu disse que não. “Então volte lá para o Redondo, que tem o nosso apoio”, respondeu-me ele. A partir daí não tive mais problemas.

            Tinha ido para o Brasil quando?

            Teria perto de quarenta anos, foi antes de vir para o Redondo.

            Foi aí, nesses três anos, que esteve mais perto do Agostinho da Silva.

            Sim, e depois também cá, em Lisboa. Eu era professor de Latim e de Literatura Portuguesa no Centro de Estudos de Literatura Portuguesa[2] fundado pelo Agostinho da Silva. Mas antes de ir para lá aconteceu-me um episódio que posso contar, muito curioso. Eu estava em Lisboa sem trabalhar, e um amigo meu apareceu e disse-me para eu ir com ele àquele astrólogo, o Hórus. Eu não queria, disse que não estava interessado nessas coisas da astrologia. Bom, ele lá me levou, pagou-me a consulta e então aconteceu esta coisa extraordinária: pegou-me na mão, perguntou a hora e data de nascimento e disse: “Isto é uma coisa impressionante, você é o único homem que pode derrubar o Salazar.” E adiantou: “Mas não o faça, não o faça.” Isto era em Agosto, e ele disse que no próximo mês de Fevereiro eu ia para o Brasil e que no dia um de Outubro iria conhecer aquela que viria a ser a minha mulher. Disse também que tudo o que eu quisesse conseguia da vida, e era verdade. Foi verdade. Conheci a minha mulher no dia um de Outubro e fui para o Brasil no mês de Fevereiro. O que tem graça é que eu tinha bilhete para trinta e um de Janeiro, mas uma pequena avaria no avião atrasou o voo e só saí de cá em Fevereiro.

            Como é que reagiu quando o homem lhe disse isso?

            Ri-me, como é natural. Contei à família, aos amigos, e nem sequer via como é que podia ir para o Brasil. Logo a seguir abriram as aulas, e eu, na reunião de professores, conheci a minha mulher. Era o dia primeiro de Outubro… nessa altura as aulas começavam a um de Outubro. Chegando ao Natal, recebi um telefonema do António Quadros a dizer que tinha falado com o Agostinho da Silva e que queriam que eu fosse para lá. Olhe, o chão até me caiu debaixo dos pés. Ele perguntou-me se eu não queria ir. E como o Hórus me tinha dito para dizer que sim a tudo, lá respondi: “Claro que sim.” E fui em Fevereiro, como estava marcado. Foram tempos espantosos, graças aos momentos que passei com o Agostinho da Silva.

            Tais como?

            Havia uma aldeia perto de Brasília que se chamava Taguatinga e que tinha um clube, o Clube de Taguatinga. E esse clube era de um contínuo do Centro de Estudos Portugueses, o Teodoro, um senhor negro muito divertido. Fomos lá, e o clube consistia em quatro paredes de madeira, sem tecto e com uns bancos corridos de onde se viam as árvores gigantescas que estavam lá fora. Nós todas as semanas íamos lá fazer umas palestras, e toda a gente da terra assistia àquilo. O Teodoro levantava-se e apresentava-nos assim: “O senhor professor Agostinho da Silva vai falar sobre São Jorge.” Ou: “O senhor professor António Telmo vai falar sobre Dom Sebastião.” E nós, que não levávamos nada preparado, chegávamos lá e falávamos, e aquela gente ouvia-nos religiosamente. Outro episódio curioso: havia um senhor do Alentejo que era latifundiário da Vidigueira, mas muito de esquerda, muito dado às esquerdas. Um dia arruinou-se, e a situação aqui ficou muito complicada para ele, ainda por cima sendo de esquerda no Alentejo de então e no Portugal da altura. Bom: escreveu-me a pedir um lugar – eu falei com o Agostinho da Silva e ele disse que sim, que fosse, que se lhe conseguia alguma coisa. Arranjámos uma viagem paga e tudo. Antes, ele perguntou pela casa, porque ia com a mulher e os filhos. Nós arranjámos, no serrado, um chalé, que eram quatro paredes e um telhado de madeira… Eu é que disse que era um chalé, mas aquilo era uma casa gigantesca, sem divisões e, portanto, com condições muito rudimentares, sobretudo para quem vinha de um latifúndio, de um monte. Imaginámos que podíamos dividir aquilo em compartimentos, mas mandei-lhe dizer que havia um chalé bom para ele. Respondeu-me que a mulher tinha ficado muito feliz com a boa notícia, e claro que eu e o Agostinho nos rimos bastante por causa disso. O homem chegou lá e só queria ver o chalé. Quando os levei lá, ele ficou completamente surpreendido, vendo que aquilo não era, não diria inadequado, mas pouco parecido com um chalé. Ele, um revolucionário, estava no papel de um burguês, a queixar-se das condições… Foi dormir para um hotel e arranjou uma bela duma casa, por intermédio do reitor da universidade. Tudo se resolveu, como se resolvia sempre. Há também a história do bispo João Ferreira, que depois deixou a igreja, ele era franciscano. Falou com o Agostinho da Silva e preparou-se para ir para lá fundar uma faculdade de Teologia, que não era mais do que uma construção inacabada no meio do Atlântico. Em cima tinha umas divisões, e eu e o Agostinho passeávamos por lá e ele imaginava: ali fica um cristão, ali um budista, ali um islamita, e sonhava-se com uma teologia universal. O bispo, finalmente, chegou, acabadinho de fazer uma operação à vesícula, com uma dieta rigorosa. Nós soubemos disso e levámo-lo a comer uma feijoada à brasileira. O homem ficou curado, essa é que é essa, e lá ficou à espera do seu lugar até que perguntou quando é que se fundava mesmo a universidade. E o Agostinho da Silva respondeu-lhe: “Olhe, vá para o serrado, sente-se em cima de uma pedra, pense em Deus e está fundada a universidade de Teologia.” Um dia, ele veio ter comigo e disse: “Isto é muito bonito mas eu não tenho que comer.” O Agostinho da Silva, entretanto, fugiu para a Baía, e tive de ser eu a resolver o problema, pondo-o na universidade, falando com o reitor, contando-lhe as dificuldades do senhor que acabou por ficar a ensinar literatura portuguesa. Depois, encontrei o Agostinho da Silva que, entretanto, tinha voltado da Baía e que ia a fugir de mim. Mas eu disse para ele não fugir, que o homem já estava instalado. E ele responde: “Não me diga! Então vamos tomar um café com ele…”

            O que é que unia todas essas loucuras umas às outras?

            O prazer da vida, a certeza de que isto não era para se levar muito a sério. O sentido da liberdade, da liberdade interior, dando largas à nossa vida…

            Regressa do Brasil e vai para onde?

            Fui para Granada. E aqui há outra história muito interessante, que ainda não foi contada. O Agostinho da Silva tinha um sonho, que era o domínio do mundo por Portugal. Consistia esse sonho em pôr um português em cada lugar do mundo, e, por isso, tinha um em Macau, outro no Japão, outro na Índia… Bastava ele conhecer alguém que mostrasse interesse que ele perguntava: “Para onde é que quer ir?” Se respondesse quero ir para a Pérsia, era capaz de ir mesmo para a Pérsia.

            Mas como é que se pagavam essas embaixadas?

            Tinha uns capitalistas que lhe tratavam disso. Um deles era o Vinhas. Quando eu vim do Brasil, perguntou-me: “Então, você vai mesmo para aquela pasmaceira do Chiado? Não quer ir pôr um padrão num lado qualquer do mundo?” E eu disse “Quero.” “Para onde?”. Espanha, respondi eu. Fiquei de escolher a cidade e escolhi Toledo, e ele disse: “Óptimo, boa escolha. Toledo é mesmo para si.” E falou-me de Toledo, um discurso belíssimo sobre Toledo. No dia seguinte, cheguei ao pé dele e disse que Toledo, afinal, não me convinha, que preferia era Córdoba. Ele respondeu: “Essa é que é boa para si.” E fala-me de Córdoba. Fui mudando, até que sugeri Granada, e a descrição que ele me fez agradou-me muito mais. Quando cheguei a Lisboa fui falar com um capitalista, de cujo nome não me lembro agora. Ele recebeu-me atrás de uma secretária, como um capitalista a sério. Disse que eu podia partir no dia seguinte e que todos os meses iria receber um cheque no valor de uma quantia enorme, muito boa. Fui, e todos os meses recebia o cheque. Não fazia nada em Granada, lia, andava por aqui e ali, ia a umas conferências, a umas bibliotecas e quase só isso. Até que escrevi ao Agostinho da Silva a perguntar o que é que estava ali a fazer. Ele responde-me: “Você está aí e pensa. Pensando, Portugal domina isso tudo.” Eu lá fiquei, um ano. E depois, ao fim de um ano, escrevi-lhe a dizer que já não queria lá ficar mais, que estava um bocado cansado daquela vida. Ele lá me escreve: “Óptimo, tem toda a razão. Venha.” Isto, para conhecer o Agostinho, é importante.

            Mas nunca se interrogou sobre o que estaria por detrás disso?

            Sabe, aqueles capitalistas eram homens que tinham pelo Agostinho da Silva uma admiração espantosa, e aquilo para eles era muito pouco dinheiro. Nunca investiguei quais eram as relações políticas desses homens quer com o regime, quer com o Agostinho da Silva. Mas tinham por ele muita admiração.

            Quais eram os outros representantes de Agostinho da Silva?

            Quando eu fui falar com esse senhor, estava lá uma rapariga mulata, que me disse o nome mas que eu esqueci. Estávamos lá à espera, eu olhei para ela e perguntei: “Então para onde é que vai?” E ela, que ia para Malta. Havia para aí umas dez ou doze pessoas espalhadas pelo mundo.

            Mas havia aí plano. O que é que pensava disso?

            Era só isto, ter portugueses espalhados pelo mundo. Eu concordava, era assim que via o nacionalismo místico. Sabe que isto, pela política, era muito difícil. Era melhor assim.

            Viviam na pele de uma espécie de embaixadores secretos de Portugal, de espiões?

            Era uma presença. Desde que pensássemos.

            Nunca teve de fazer nenhum relatório sobre o que se passava em Granada?

            Nunca fiz relatório nenhum, nada. Só pensava. Lia muito. Andava pelos sítios.

            Finalmente, veio para Portugal.

            Pois, vim para Tomar. Vim cheio de dinheiro, que tinha poupado das mesadas mensais. Estava em Tomar e vi uma casa com uns escritos e disse à minha mulher: “Vamos morar para aqui.” Ficámos lá seis meses. Depois fui para Sesimbra, e depois é que fui convidado para o Redondo. Apareceu-me lá o Agostinho da Silva, olhou para mim e disse: “Então agora está em Sesimbra, hã? Ó homem, você tem de arranjar um modo de vida…” Fui para o Redondo.

            Por esta altura, já tinha começado a escrever…

            Quando vim para Estremoz, tinha apenas um livro, que era o Arte Poética, escrito aos trinta e seis anos. A Arte Poética passou completamente despercebida… A História Secreta de Portugal só surgiu depois do 25 de Abril, porque se passam fenómenos estranhos durante os períodos revolucionários e há uma maior abertura a outras ideias. A História Secreta foi escrita durante a revolução, sempre ali na mesma mesa do café… [n.d.r.: Café Águias d’Ouro, em Estremoz]

            O que o levou a escrever a História Secreta de Portugal?

            Eu acho que o escritor não programa… Eu não tenho cor politica, nunca foi uma coisa que me interessasse muito. Embora, evidentemente, tenha as minhas posições, as minhas indignações. Também me indigno… Mas nesse meu livro o objectivo era o de ajudar os portugueses a criar um nacionalismo místico, que fosse como um suporte de tudo quanto se passa. E acho que isso está a aparecer.

            Mas escrever sobre o nacionalismo naquela altura não podia ser considerado como uma recuperação dos ideais conservadores do Estado Novo?

            Mas o livro até é a favor do 25 de Abril. O Estado Novo não tem nada a ver com os Dom Afonso Henriques nem com os Jerónimos… Aliás, a própria politica de esquerda foi muito favorável, o livro agradou a toda a gente. O Assis Pacheco, por exemplo, escreveu um bom artigo sobre o livro.

            Acha, então, que há “um desígnio português”?

            Pois, esse é o tema do meu último livro. Eu acho que sim.

            Nesse sentido, o que lhe sugere a ideia do Quinto Império?

            Não serão, de certeza, o império americano nem o russo. É um novo estádio da Humanidade, onde as pessoas serão mais inteligentes, mais livres, mais amigas umas das outras, mais criadoras…

            Não quer definir isso de uma maneira mais concreta?

            É um bocado difícil, mas vamos lá ver. A história de Portugal é como uma roda, com os seus raios. Um raio representa a era dos reis, outro a dos sacerdotes, o outro do clero, e o outro da plebe. O quinto império é o centro da roda, e o quinto tem de começar por cada um de nós. Deixamos de ter uma vida descentrada, temos de passar a dançar à volta de um centro – esse centro é um centro secreto, é onde está Deus. Se cada homem fizer isso, nasce o nacionalismo místico. E isso não tem nada a ver com qualquer ideia de ditadura, é um lugar onde todos nos entenderemos.

            Mas para isso teremos de passar uma fase de decomposição…

            Que é a que existe actualmente. Os Portugueses formam uma entidade, mas temos de andar à luta até ao fim, sobreviver aos conflitos, a coisas horríveis como a Inquisição, mas por fim tudo isto será integrado num centro e transfigurado. Cada português poderá então ser, ele mesmo, o Quinto Império.

            Isso não conduz a uma concepção dos Portugueses como um povo superior? Isso é perigoso…

            Pois, eu acho que devemos pensar assim. Embora a gente saiba que não é assim, devemos pensar dessa maneira, porque de outro modo estamos a pensar que os outros é que são superiores e ficamos debaixo deles.

            É por isso que reage desfavoravelmente à integração de Portugal na União Europeia?

            Não sou eu que reajo. É um dado exacto, no horóscopo que Fernando Pessoa fez de Portugal.

            Sim, mas identificado em 1986 como uma grande ameaça à independência do País. Comunga dessa opinião?

            E quem sou eu para julgar a opinião dos astros? Mas se quer a minha opinião, fora do horóscopo, eu acho que é fatal o que se está a passar – já somos uma província da Europa, somos um país de turismo e pouco mais.

            É um risco para a independência?

            Sim, eu acho que Portugal acaba. Acaba enquanto entidade política, mas mantém-se o nacionalismo místico dentro de cada um – tal como a diáspora judaica, que mantém a pátria dentro de cada judeu. E repare que os judeus nunca deixaram de se sentir superiores, nem nunca perderam as suas tradições.

            Mas ao povo judeu está subjacente uma religião, uma prática, uma tradição, os seus livros místicos…

            O filósofo judeu Maimónides escreveu um livro com o objectivo de dar uma nova unidade ao povo judaico, o Guia dos Perplexos. E cada judeu que vai hoje a Israel leva consigo o Guia dos Perplexos. E o Zohar, evidentemente. E é também esse o papel de um Agostinho da Silva, responsável por uma doutrinação que mantenha os portugueses unidos para sempre…

            E essa previsão de que Portugal finda enquanto entidade política acaba por radicar na tal ideia de Agostinho da Silva, de espalhar os portugueses pelo Mundo…

            Claro, é isso mesmo.

            Qual é a sua relação com as filosofias e as letras judaicas?

            Eu acho que Portugal, quando nasceu, queria ser no mundo o mesmo que o velho Israel não tinha conseguido ser. É por isso que a nossa bandeira era azul e branca. Todos os sábios e reis que conviveram com eles queriam fazer de Portugal o Portugal-Israel. Repare, o Rei Dom Manuel pede ao Papa para que o Arcanjo São Miguel seja reconhecido como o Anjo de Portugal, São Miguel é também o Arcanjo de Israel. Quando se deu a expulsão dos judeus, muitos escreveram que tinham perdido a sua pátria. Isto tem um enorme valor.

            Mas há três dimensões nessa sua interpretação. Pode ter sido uma intenção declarada, pode ter sido coincidência e pode ter sido uma conspiração absoluta. Nesse sentido, toda a sua obra aponta para uma teoria da conspiração que sobrevive em função de alguém que orienta o nosso desígnio numa linha pré-determinada…

            O que há, é uma intenção. Parece-me natural que exista um fio condutor em tudo isto.

            Quer dizer que, desde a batalha de São Mamede, há uma intenção histórica que se transmite de pai para filho, ou é uma entidade que gere tudo isto?

            A minha tese é a seguinte: Portugal é uma organização iniciática. De resto, Fernando Pessoa dizia que existia uma ordem Templária, activa mas completamente encoberta, de quem ninguém sabia nada senão ele. E disse também que ela se havia de revelar proximamente. Mas ninguém sabe o que é essa ordem. Essa ordem é Portugal.

            Isso não será apenas uma criação poética?

            Não é, não. Eu percebo onde é que querem chegar. Querem também ter a certeza disso, não é? Se há uma coisa que eu procuro mostrar nos meus livros, é que Camões, o Manuelino, a língua portuguesa, tudo isto constitui a expressão de uma sabedoria intencional que é a de uma organização iniciática, à qual pertencia o próprio Camões. Tudo isto foi já revelado pelo Sampaio Bruno.

            E qual é que é o seu papel nessa organização iniciática?

            Sou um médium literário. Penso, sonho, imagino e interpreto coisas que coincidem com essa intenção. Eu penso que, com o Manuelino, a organização se calou. Fala-se muito na retirada do Graal para o reino do Preste João. Fala-se também na retirada dos Rosacruzes. Mas quando se deu a destruição da Ordem dos Templários em França, Dom Dinis transformou-a na Ordem de Cristo. E os Rosacruzes, que eram uma reunião de espíritos, estavam em Portugal, e isso está ainda hoje expresso em símbolos. Depois, o Dom Afonso V teve o pressentimento disso e passou a estudar a Cabala. Portugal foi escolhido, não sabemos por que razão – talvez por razões ligadas à geometria sagrada… –, como o país para realizar isso. Só que, a determinada altura, viram que não conseguiam. Ou, por outra, viram que tinham de abandonar o País a si próprio até à completa decomposição, para depois surgir uma coisa nova. Isto porque tem de haver sempre aquilo que os alquimistas chamam a obra ao negro, que existe também nas estações, onde a seguir ao Inverno vem a Primavera. Tem de se descer até ao fundo do abismo…

            Estamos no Inverno?

            Não, nós agora estamos no Outono, que é a época da decomposição.

            Pode então dizer-se que precisamos de morrer para ressuscitar?

            Exactamente. Não há pessimismo neste último livro, há apenas realismo. Há pessoas que já reagiram ao livro dizendo: “Isto é uma desgraça, Portugal vai bater no fundo, o que é que vamos fazer…” Mas isto não acaba hoje nem amanhã, tudo continua. A pressa que temos é sempre o erro de todos os revolucionários.

            Essa frase é politicamente lapidar.

            Pois.

            Quais são os escritores que estiveram atentos a estes fenómenos?

            O maior de todos é o Sampaio Bruno, mas também o Teixeira de Pascoaes, o Agostinho da Silva, o Álvaro Ribeiro, o José Marinho… mas até um Herberto Hélder, uma Fiama Hasse Pais Brandão – que estão um bocadinho mais à margem, mas que são uma inspiração…

            Já falou na roda, que o centro dessa roda é Deus. Quer isso dizer que devemos voltar a nossa vida para Deus?

            Pois, devemos tentar. Sabe, eu acho que não há ateístas. Há os crentes declarados, há os ateus (que o não são) e há os antiteístas (que são os mais teístas, porque andam sempre a bater em Deus). A minha ideia de divino é perfeitamente compatível com a do conceito judaico-cristão.

            E Deus é a grande coincidência ou o grande conspirador?

            Isso são perguntas… não posso responder.

            Mas repare que é possível dizer, a partir das suas palavras, que Deus é o grande conspirador… Partindo do princípio de que há um desígnio.

            Altos são os desígnios do Senhor…

 

(Publicado em Viagem a Granada seguida de Poesia, 2016)

 



[1] N. do O. – No texto das edições anteriores, erradamente: A Filosofia da Cabala, de Warran. Trata-se, na verdade, de La Théodicée de la Kabbale, de Francis Warrain.

[2] N. do O. – Em rigor, Centro de Brasileiro de Estudos Portugueses.