VOZ PASSIVA. 70

03-09-2016 14:30

Em 20 de Junho de 1980, António Telmo proferiu, na Sala dos Espelhos do Palácio Foz, a célebre conferência “O Segredo d’Os Lusíadas”. Integrada nas comemorações oficiais do IV Centenário da morte de Camões, resultou de um convite de Afonso Botelho, seu amigo e condiscípulo no magistério de Álvaro Ribeiro e José Marinho. Botelho era então o Director de Serviços Literários da Direcção-Geral da Divulgação, numa época em que António Braz Teixeira era Secretário de Estado da Presidência do Conselho de Ministros. A título de curiosidade, refira-se que Telmo recebeu, de honorários, 6.000 escudos pela realização da conferência, que viria primeiramente a ser publicada no livro Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, editado pela Secretaria de Estado da Comunicação Social. Mais tarde seria recolhida em Filosofia e Kabbalah, de 1989, constando hoje, também, de Luís de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, III Volume das Obras Completas de António Telmo, que foi lançado em 20 de Junho de 2015, em Estremoz, trinta e cinco depois da realização da conferência camonina de Lisboa.

A apresentação do conferencista coube a Afonso Botelho. Dela nos ficou o respectivo texto, igualmente foi dado à estampa em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas. 

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Apresentação do Sr. Dr. António Telmo pelo Sr. Dr. Afonso Botelho, Director de Serviços Literários[1]

Afonso Botelho

 

Na modesta proporção que um brevíssimo espaço de tempo nos consentiu, juntámos nesta exposição em torno de um mesmo tema, alguns géneros artísticos, vários gostos e épocas, diversas culturas nacionais.

Quem quiser pode, com esta matéria, fazer diferentes leituras do retrato de Camões, desde que não rejeite o estímulo que ela constitui para a imaginação. Porque, conforme o sentido da legenda de uma estampa, ali exposta, a imagem dá-nos apenas o que teria sido o corpo do poeta, enquanto a sua nobilíssima obra o revela à imaginação. O que se torna visível na diversidade destes retratos, mais não é do que uma ajuda para que encontremos, o que em todos, e em nós próprios, está como invisível.

Não foi, assim, nosso propósito acentuar a multiplicidade e consequente indefinição das imagens plásticas, mas, pelo contrário, apresentar, na sua variação e diferença, degraus de um conhecimento ascendente para o uno. E confirmámos esse intento, acompanhando a exposição iconográfica com outras interpretações, ordenadas no mesmo sentido – do visível para o invisível. Eis porque, nas duas primeiras conferências, se foi configurando o poeta, por intermédio dos sinais concretos que deixou nas letras e na admiração de homens ilustres, tanto como nos indícios que os inventários familiares registavam, nos períodos essenciais da história, em que a aristocracia do sangue tende a identificar-se com a aristocracia do espírito. Eis porque, também hoje, vos proporcionámos a aproximação de uma leitura de Camões que nos inicie no que até agora, mais do que invisível, se tenha guardado secreto.

Ainda no sentido da legenda a que aludimos, nos anima o desejo de conhecer o maior segredo de Camões, que não é certamente uma mensagem transmitida de emissor a receptor, na modalidade mecanicista que hoje se adopta para ensinar a língua pátria, mas a que estará velada na «nobilíssima obra». Por isso pedimos ao autor da História Secreta de Portugal que nos dissesse qual o segredo d’Os Lusíadas.

Seria impertinente este pedido, se António Telmo não se tivesse proposto realizar uma história secreta de Portugal e se não a tivesse realizado como a realizou, lendo o interior do exterior do ser, segundo «rigorosa aplicação da lei da analogia».

Um dos capítulos desta obra crucial (do calvário da Pátria Portuguesa) abre-nos o caminho para o saber esotérico d’Os Lusíadas.

A ruptura entre este saber e aquele que converge nas instituições de ensino, nas igrejas do culto e do oculto, e nas forças organizadas da cultura, obrigar-nos-á a um arriscado salto de qualidade, mas o conferencista de hoje, à claridade íntima de iniciado, associa os dons do magistério, em que é, aliás, exímio. Diríamos noutra linguagem, que ele se ilumina na tradição do pensamento português, que aflorou, nos começos do século, no movimento da Renascença Portuguesa, que foi ensinado na Faculdade de Letras do Porto, por Leonardo, e, que de discipulato em discipulato, não mais deixará de criar escolas de filosofia.

Até no pequeno percurso, que esta exposição iconográfica nos oferece, é fácil reconhecer a degradação dos princípios e o afastamento dos arquétipos, na sucessão dos retratos de Camões.

Enquanto o desenho das estampas mais antigas preserva ainda, não direi a riqueza mas, pelo menos, o rigor da simbólica e, nas composições românticas, se eleva de novo a realidade à altura dos grandes ideais, as obras em que se firma o realismo valem tão-só pela factura artística. Caso extremo desta pobreza de símbolos é, sem dúvida, a aguarela assinalada por el-rei D. Carlos, que figura o Príncipe dos Poetas como um velho reformado da corte, suporte de cores de um grande aguarelista, manequim de vestuário da época. A realeza estava já distante do segredo d’Os Lusíadas, como a cultura dos seus detractores o estava também. A realeza havia perdido os fundamentos primordiais do real, os homens cultos de então mal sabiam o que haviam de fazer com ele.

Veja-se o que se passa com os dois Bordalo Pinheiro, talentosos artistas que dominam uma geração. Em face d’Os Lusíadas, ainda é o caricaturista, de arte menor, que melhor exprime a grandeza e qualidade espiritual do Poema – coloca o Zé-Povinho inclinando-se para a superioridade d’Os Lusíadas, apesar dos esforços dos gnomos políticos do tempo para que ele opte pela maior valia da Carta Constitucional. O povo não lera o Poema mas era e é capaz de jurar sobre ele, como jura sobre a Bíblia, mesmo que não a tenha lido na imagem dada por Lopes Ribeiro ao introduzir aqui o filme Camões. Em contrapartida, o grande Columbano, nas alegorias inspiradas na épica camoniana, contradiz-se esteticamente, porque o símbolo não procura o simbolizado e o real das figuras vicia o irreal. São mulheres, em vez de seres mitológicos o que Columbano pinta, são modelos de «atelier», mas não modelos da História de um Povo.

Culturalmente, será já este século um recomeçar, sob o signo dos mais transcendentes poetas que Portugal teve, depois de Camões. Ou, com a lucidez dos filósofos, poderá também ser a visão serena da própria ruptura.

Tudo indica, porém, que o corpo da Pátria sofrerá ainda, por longa espera, os efeitos das doutrinas que lhe ocuparam a alma.

Enquanto o idealismo crítico subjugar o modo de ser colectivo, invertendo o sentido do real, obrigando-nos a pensar por equivocidade, como se fosse por analogia, quem poderá ler os sinais do outro Portugal que somos, dos outros Lusíadas que são?! Quem poderá imaginar o outro retrato de Camões, o outro dos múltiplos que é possível juntar e expor?!

Vamos ouvindo com toda a atenção quem nos possa segredar algo sobre o que mais nos importa. Tenhamos, contudo, a certeza que esse alguém será, como António Telmo é, discípulo e mestre numa escola secreta de pensamento português.



[1] Publicado em Retrato de Camões e o Segredo d’Os Lusíadas, Lisboa, Secretaria de Estado da Comunicação Social – Direcção-Geral da Divulgação, pp. 61-65.