VOZ PASSIVA. 69

04-05-2016 11:48

89 ANOS DEPOIS: ANTÓNIO TELMO, SEMPRE!

Penso logo poesisto

No aniversário de António Telmo

Risoleta C. Pinto Pedro

 

Não é como poeta que é mais conhecido. O problema é que nem o pensador o é, como seria bom para nós que fosse. Significaria isso que sabíamos preservar e honrar o nosso mais valoroso património a nível de pensamento.

Mas é dia de festa, deixemo-nos de lamentações. Embora seja dia de festa e de lamentação. Festa porque ele nasceu, lamentação porque ele partiu. O paradoxal equilíbrio universal…

Regressemos aos poemas, aqueles que ainda hoje estão a germinar do espólio.

António Telmo, na mais honrosa tradição nacional, é um filósofo poeta. Talvez não pudesse ser filósofo se não fosse poeta. O contrário talvez já não seja verdade.

Manifesta-se a veia em tudo o que escreve. Não precisamos de a procurar nos poemas. Ela está por onde lhe corre a escrita, que é por onde lhe escorre o pensamento. O pensamento escorre como se não coubesse no corpo.

Às vezes encontramo-lo a escrever um texto de reflexão que interrompe subitamente para deixar desabrochar a flor do poema. É comovente assistir a este processo gravado na página a testemunhar o acontecimento de há tantos anos atrás. A criação que a si mesma se interrompe para… criar. Do pensamento ao poema.

Outras vezes o poema ergue-se na página isolado e silencioso no seu íntimo dialogar. Como este:

“Soltam-se puros no ‘espaço perfeito’

A ave e o sino e o vento informe

Não são quem os produz, mas seu efeito.

Sou eu que acordo o som que neles dorme.

 

Esqueço-me de mim nas horas que se seguem.

Tomei a sério o que me julgo ser

Múltiplos fantasmas me perseguem

Com o ar de quem aqui está a viver.

 

Não lhes digo para que me não neguem

E me tenham por um doido de varrer

Como proceder para que de mim se desapeguem

E a sua sombra não impeça o conhecer?”

(Inédito) António Telmo

 

Nem vale a pena falar sobre os aspectos mais materiais do poema, a irrepreensível elegância da forma. Independentemente de qualquer preocupação de regularidade métrica, que não o obceca, a musicalidade ao correr das palavras aliada ao rigor das imagens.

Aqui, como sempre, a busca do oculto, palavra que uso no sentido não esotérico, mas absolutamente literal, aquilo que não se vê, o que se esconde por trás do que é visível:

‘Não são quem os produz, mas seu efeito.’

Ele, como Pessoa, sabe:

O que para Pessoa é o ‘É em nós que é tudo’ é para Telmo ‘Sou eu que acordo o som que nele dorme.‘

Ambos conscientes da multidão que, num caso o habita (heterónimos), noutro caso o persegue (‘Múltiplos fantasmas me perseguem’). A lúcida e muitas vezes dolorosa consciência da multiplicidade.

E a fantasmática fantasia (assumo a redundância), sobre a qual se constrói a vida:

 ‘Tomei a sério o que me julgo ser’.

E no entanto, como se sabe (e como nos sabe) quando se desnuda do que não É!...

Mas neste drama coexiste, quase imperceptível e por isso tão poderoso, o humor, a esconder a quase troça que apenas se adivinha. E assim retira, aos ‘fantasmas’, o poder que não têm: “Não lhes digo para que me não neguem”.

Talvez seja este subtilíssimo sorriso a poderosa arma a evitar a tragédia cuja ameaça quase se adivinha:

“Como proceder para que de mim se desapeguem

E a sua sombra não impeça o conhecer?”

Estando a ameaça em forma de pergunta, ela é habilmente antecedida pela resposta (“Não lhes digo”) que é um antídoto poeticamente administrado em forma homeopática, altamente diluída, de quase oculto sorriso. Apenas para quem conseguir descortiná-lo. Uma espécie de Graal sob o nosso nariz, disfarçado de levíssima ironia. Em taça de poesia.

Feliz aniversário a todos nós por este Irmão Maior a viver agora em lugar onde os aniversários devem causar subtis sorrisos e terna amorosa condescendência por aqueles que ainda não podem compreender.

 

2 de Maio de 2016