VERDES ANOS. 25

11-06-2017 17:05

A poesia do alfabeto[1]

 

Quando, aqui há alguns anos, no «Boletim da Língua Portuguesa», alguém escreveu que os caracteres do alfabeto não representavam originalmente fonemas, mas sim princípios metafísicos, logo se procurou ridicularizar tão admirável como fundamentada teoria. Claro que é difícil compreender como um princípio, e logo metafísico, possa ser representado por uma letrazinha; muito mais fácil é admitir que as letras sejam sinais convencionais designativos dos vários fonemas da voz humana. Com efeito, tem sido esta a hipótese aceite e propagada como ciência indiscutível. Dela derivará não só a redução dos caracteres alfabéticos (caso do Y e do W, eliminados praticamente por constituírem duplos fonéticos do I e do V), como também a simplificação e uniformização da ortografia.

Cada pessoa tende para escrever as palavras à sua maneira, e não se diga que só as pessoas incultas; todos se lamentam da série de reformas que tornou difícil recordar sempre a ortografia exacta, o que é afinal uma desculpa. Quando se escreve uma palavra, estabelece-se, uma vez que, por qualquer motivo, o automatismo da escrita é interrompido, uma hesitação: será um S ou um Ç? Consciente ou inconscientemente nasce uma relação com algo, sugerido pela figura das letras: uma imagem, um movimento, o princípio duma ideia. Assim, Teixeira de Pascoaes defendia que o movimento descendente da lágrima está sugerido no Y, que, portanto, deveria continuar a pertencer à ortografia daquela palavra. Compreende-se, porém, que o Estado, ao ter por fim a unidade política, torne obrigatórias para todo o povo português as regras de ortografia, mas uma vez admitido que o espírito estabelece sempre relação das letras com determinadas formas mentais, dever-se-ia fundamentar as regras de ortografia em princípios mais altos e válidos. O recurso ao étimo, sempre que há hesitação na maneira de escrever uma palavra, queremos dizer, a possibilidade desse recurso constitui uma superioridade ao actual código ortográfico em relação com o anterior. É justo mencionar, neste momento, o nome do maior latinista português da actualidade, sr. dr. Rebelo Gonçalves.         

Deve observar-se que não há, nem seria possível haver, correspondência exacta, isto é, termo a termo, entre os fonemas e os caracteres escritos. O número daqueles é indefinido, ao passo que o destes é, como se sabe, bem definido. Os foneticistas, embora reivindicando a vantagem «científica» de multiplicar os sinais gráficos, não se atrevem a propor a sua adopção social, porque isso iria contradizer a exigência de simplicidade que, por outro lado, defendem. Tal multiplicação refere-se especialmente às vogais, dado que elas representam, dentro da língua falada, a continuidade sonora. As consoantes, na medida em que actuam como resistências, como pontos de suspensão no curso da voz humana (elas só soam com as vogais para constituir o primeiro elemento da palavra), são susceptíveis duma medida exacta, determinando-se num número fixo de caracteres alfabéticos. Se, em vez de falar-se em sílabas tónicas e sílabas átonas, se falasse em sílabas masculinas ou activas e sílabas femininas ou passivas, seria possível compreender que a medida e a rima são necessárias, isto é, não cessam nunca, e que, portanto, tem sido completamente fútil a discussão estabelecida à volta do assunto por modernistas e passadistas.

Pretendemos assim dizer que não só é absurdo subordinar a ortografia à fonética, como reduzir os fonemas ao seu aspecto fisiológico. Observa o filólogo Eduardo Sapir que são órgãos com funções naturais diferentes a ser utilizados como órgãos de fonação, o que vem demonstrar o carácter secundário do fonema como produção fisiológica dentro da linguagem. Havia outra coisa antes. À teoria da formação das línguas, tais como hoje existem, pelo progresso e evolução, contrapõe-se assim a explicação delas como resultado de uma queda. Outros investigadores que chegaram também à conclusão de que a comunicação visual precede a comunicação sonora, mas que querem manter a teoria evolucionista, vêem no homem primitivo qualquer coisa como um surdo-mudo, que, não sendo capaz de falar, faria gestos aflitivos, agitaria mãos e braços, até fazer-se compreender dos seus semelhantes. Com efeito, seria útil investigar se existe alguma afinidade entre as figuras das letras, nos vários alfabetos, e certos gestos rituais, mas isso seria muito diferente de procurar penetrar a origem remota da linguagem através daqueles seres infelizes que expressam num defeito físico uma anormalidade psíquica.

Parece ser indiscutível a existência em todos os povos de uma ciência ligada a cada alfabeto, na Judeia, na Arábia ou na Grécia. Certos versos de Dante parecem aludir a qualquer coisa desse género dentro do alfabeto latino. (Veja-se, principalmente, «Paraíso», XVIII, 84-100). Neste alfabeto, mais talvez do que em qualquer outro, as figuras das letras são de uma simplicidade geométrica perfeita. A sua formação terá, de qualquer modo, obedecido aos princípios da geometria? Se assim é, a significação superior a que vimos aludindo assenta numa ciência rigorosa, mas convém não esquecer a frase de Platão, segundo a qual Deus geometriza para além do seu aparente conteúdo teológico. As letras seriam formas marcando os momentos fundamentais do processo que conduz a imagem simbólica do ponto para a esfera, por intermédio da cruz.

Tal hipótese, a de que todo o simbolismo figurativo tem como fundamento os princípios da geometria, só seria admissível, porém, se concebêssemos a geometria como a ciência da medição dum espaço qualitativo. Então, toda a natureza se transfiguraria e os pontos cardiais, os ventos, os astros e as constelações seriam, inversamente, concebidos como letras em movimento, animadas de significação interior, e a frase do poeta «Ó natureza, a única Bíblia verdadeira és tu!», tornar-se-ia compreensível para cá do superlativismo produzido pela emoção. Dir-se-á que voltaríamos a cair no romantismo e, com ele, a sobrevalorizar a interpretação popular da natureza prante a «cultura científica». Em nossa opinião o romantismo, ao atribuir poderes criativos e inventivos ao povo, cometeu um erro enorme que só viria a ajudar a crítica posterior a toda a ciência que subordina a categoria de qualidade à categoria de quantidade. O povo não inventa, nem cria; conserva. Se inventasse ou criasse, nunca as influências da cultura moderna modificariam, como modificam, esses quadros mentais. É verdade que constitui uma força de resistência a toda a acção externa, mas não é, de modo nenhum, uma força actuante. Contrariamente ao que pensam certos psicólogos românticos, sobretudo Jung, as chamadas tradições populares não têm origem no «subconsciente colectivo»; este existe, é certo, mas apenas como meio de reflexão, e até de refracção, de luzes que nele penetram «de fora», como o espírito teorizado por Aristóteles.             

Chegou a altura de perguntarmos ou de me perguntar o leitor: «O combate ao analfabetismo justifica-se ou não se justifica?»

Depois de tudo quanto foi dito, seria absurdo afirmar que não. Mesmo que se entenda esse combate como um meio de integrar todos os homens nos quadros sociais vigentes, deve observar-se que é inteiramente justo dar a esses todos uma arma que só pertencia a alguns. No entanto, analfabeto não é só aquele que não aprendeu a traduzir em fonemas os caracteres escritos; é, sobretudo, quem não sabe relacionar esses caracteres com os princípios metafísicos que eles representam. Bem sabemos que essa relacionação se tornou cada vez mais difícil, na medida em que se foi adaptando a escrita ao fim prático de transcrição de fonemas. Todavia, é sempre possível reintegrar as formas, pelas quais a escrita se processa, na sua natureza primitiva, e quem sabe se, fora do uso corrente da linguagem e para além dele, tal não acontece efectivamente para alguns que ainda não desistiram de encontrar a «palavra perdida»?

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, Lisboa, 20 de Setembro de 1962, p. 7.