VERDES ANOS. 24

10-06-2017 11:19

O estilo da Renascença Portuguesa[1]

 

Por falta de estudos estilísticos da literatura para a filosofia, não foi há mais tempo reconhecida a decisiva acção do escritor Guerra Junqueiro no movimento evolutivo da língua portuguesa. Separar a filosofia da poesia e da literatura em geral é o que acontece sempre que se caracteriza por analítica a expressão filosófica. Quanto é difícil distinguir sabem todos os que somente sabem quanto é difícil distinguir. Não é, porém, contrapondo, analisando nem amputando que se distingue. A distinção é sempre de compostos.

Assim, a filosofia não é distinta da poesia por ter a menos os sentimentos nem por ter a mais a razão analítica. Também ela se revela em livros escritos com sentimento. Uma alma também mora e lateja invisível no filósofo, que, como o poeta, sofre, ama e rejubila.

Há estilos de filosofar, como há estilos de poetar. Se o belo é o esplendor do verdadeiro, não há verdade que não resplandeça. É a poesia sem a filosofia uma peregrina sem companheira e sem guia, que em breve se perde no deserto das paixões que qualquer sociologia domina e disciplina. Verifica-se, porém, que sempre os filósofos estão atentos às vozes dos poetas, enquanto que estes nem sempre querem ouvir as palavras dos filósofos. Mau sinal é quando aquele que se diz poeta não quer ouvir nem ver o que outrem ouviu ou viu do mesmo mistério que a ambos obsidia.

Um estudo dos livros dos portugueses que, depois de Guerra Junqueiro, meditaram os problemas da terra, em visão teocêntrica, mostraria o alto poder transformador dum estilo, porquanto foi decisivo para o desenvolvimento da nossa filosofia.

Dele deriva, em primeiro lugar, o movimento estilístico da Renascença Portuguesa. Até aos renascentistas – que não devem ser confundidos os escritores do reinado de D. Manuel I, os escritores da nossa idade antiga –, a prosa portuguesa exprimira-se quase sempre em descrições e narrações. Decerto que outras formas estilísticas emergem aqui e ali, e mesmo na descrição e narração é possível ver características singulares. Mas o que pela primeira vez surge na história da nossa literatura é uma forma de escrever, um novo estilo, de cuja criação resultou poder ver-se na Língua uma via de conhecimento.

Editou-se «A Águia», revista cujo nome é um símbolo cristão, no tempo em que o positivismo parecia estar senhor definitivamente da cultura portuguesa, completando um processo que vinha lentamente operando desde alguns anos atrás. Adversário das vocações e dos estilos, que significam a liberdade pessoal do escritor, na relação da alma com o génio, segredo que os Portugueses voltaram a saber depois da tradução de «Eros e Psiché», o positivismo dominava as páginas dos livros, das revistas e dos jornais, propagando um estilo somente característico por ser a negação de todos os estilos.

Caracterizou-o Sampaio Bruno no «Brasil Mental», livro em que impugna demoradamente a doutrina. Quando um escritor não escreve com as palavras, mas somente com palavras por ter de escrever com alguma coisa, é inevitável que toda a significação se solidifica num certo número de lugares-comuns de expressão invariáveis quando uma vez formulados.

Quem escreve com as palavras é concomitantemente pensador, porque as palavras que se não relacionam com os verbos carecem de significações originais. Reversivelmente, onde há original pensamento, logo surge um estilo original. No seu jeito impessoal de escrever, os positivistas têm o estilo de toda a gente e de ninguém. Quem lê um lê todos.

Diversa está a alma do leitor perante uma página de Junqueiro, Pascoais ou Leonardo Coimbra. Ao lê-la sente o sopro do génio invisível, o sopro da imaginação alada. É certo que também aqui pode truncar, desarticular, desmembrar as palavras, segundo o jeito da estilística de Saussure ou Bally. Mas é-lhe impossível desagregar a alma que compõe e forma cada um daqueles idiomas. A referência das palavras a um pensamento passado, que a estrutura em frases feitas, foi levada ao extremo pelos escritores positivistas. É-nos, pois, lícito interpretar a reforma estilística dos renascentistas como uma superação das formas de dizer próprias da paleografia, se neles virmos dominar a palavra dramática ou a palavra profética. As palavras são ditas para serem ouvidas, soam no silêncio infinito como um verbo de amor, unem na selva dolorosa os companheiros perdidos e dispersos. É a palavra dramática, repleta de infinita presença, rasgando, em clarões, a solidão tenebrosa e sem termo. Assim soa a voz humana em Leonardo Coimbra. Mas a Língua concentra e transmite uma visão poética intraduzível, uma ciência original do cosmos. Diz de um saber perdido, mas, quanto diz, é vestígio cheio de significação, em que podemos exercer a inteligência. Foi, sobretudo, Teixeira de Pascoais quem insistiu neste aspecto da Língua. Não é outro o sentido do seu combate à reforma ortográfica de 1911.

Não é difícil surpreender em qualquer destes escritores a viva presença do estilo de Guerra Junqueiro. A característica geral é dada pela relação das palavras com o infinito do verbo.

Divergindo, porém, em tendência contrária à volatilização das palavras que se tornam demasiado aéreas ou aladas, outro colaborador de «A Águia» aparece destinado a exercer estilisticamente uma influência talvez menos profunda mas decerto mais vasta. Tem sido, por vezes, discutida a oposição de Fernando Pessoa a Teixeira de Pascoais, o que deriva, certamente, muito mais da sugestão produzida por dois estilos tão diversos do que duma distinção de teorias. Por várias ou inversas que sejam, não escondem a afinidade com a filosofia messiânica de Sampaio Bruno. Foi pelo estilo que o autor da «Ode Marítima» influiu naqueles que não seguem a sua doutrinação. Os filósofos, únicos a pensar o seu pensamento, encontrariam nele os fundamentos duma prosa dúctil ao exercício da actividade reflexiva, pela introdução do negativo no discurso. Fernando Pessoa é um pensador da multiplicidade, que não refere à unidade que não procura nem crê, e que vê desdobrar-se num jogo de teses e antíteses, por vezes expressas paradoxalmente, por vezes suscitando a ironia. Influenciado pelos alemães, por Hegel, que admira na «Moderna Poesia Portuguesa», refere o múltiplo, mas as antíteses parecem predominar como as sombras dum augusto mistério. Assim se explica a sua actualidade na época existencialista. O pensador dialéctico deve, porém, entender-se pelo fundador do «Orpheu», revista que marca, em Fernando Pessoa, o regresso ou retrocesso à Grécia mediterrânea e órfica, depois de abandonar o simbolismo dantesco de «A Águia».

Não há hoje, em Portugal, corrente literária que não repercuta, mal ou bem, a influência dos «renascentistas». Graças a eles pode hoje existir o pensador que escreva com esperança nas palavras, nelas futurando o pensamento. No advento da prosa silogística, da prosa em que o pensador caminha por tríades, alterando e alternando a terra com o céu, o verbo infinito com o substantivo finito, sabemos que Sampaio Bruno foi a lâmpada que viu. Ele iniciou o caminho de provação, o caminho de dor e de amor, da nossa filosofia.

Assim se abriu para nós a via difícil da personalidade, impedida até então pelo positivismo e por outras formas em que se disfarça o infatigável espírito adversário das línguas.

 

António Telmo



[1] Diário de Notícias, 20 de Maio de 1955.