VERDES ANOS. 22

09-06-2017 23:49

Futuro do romance português[1]

 

Houve sempre quem apresentasse a tese do essencial lirismo da tradição poética portuguesa, desde Oliveira Martins a Gaspar Simões. Quando Sampaio Bruno afirma que nunca tivemos teatro, nem romance, nem filosofia põe em alarme o leitor que, menos perspicaz, não perscrutar o silogismo oculto. Efectivamente, o nosso teatro, desde a Castro de António Ferreira, uma imitação dos gregos, ao Frei Luís de Sousa, uma imitação dos franceses; o nosso romance, desde os Lusíadas, uma imitação da Eneida, aos livros de Eça de Queiroz, imitações de Flaubert; a nossa filosofia, predominantemente escolástica, desde as obras de Pedro Hispano aos ensaios de Amorim Viana e António Sérgio, – não podiam ser senão o que foram, dada a nossa inibição em exprimir o que nos é original.

Sampaio Bruno interroga, por isso, as causas da nossa inibição, para, ao mesmo tempo que combate Oliveira Martins e a sua tese de que essa inibição é racial, oriunda do nosso fundo céltico, sonhador, melancólico, resignado e esperançoso, afirmar, paradoxalmente em relação ao aparente contexto dos seus livros, que tais causas não se devem confundir com as influências de ordem religiosa. E isto porquê? Porque fomos sempre substancialmente católicos, se a substancialidade dum povo reside na massa colectiva da nação. Quanto ao escol, pelos seus melhores representantes, aceita toda a dogmática católica: o trinitarismo, o Deus criador, a queda do homem, a regeneração pelo verbo. Assim, enquanto Oliveira Martins vê um fundo constante de etnicidade, caracterizada pelo lirismo, reagindo, por vezes, contra a opressão exterior, Sampaio Bruno vê, pelo contrário, nas nossas formas de expressão literária, política e religiosa o sinal duma dependência – um acidente, não uma substância. Eis porque, entre nós, o problema religioso, como o explicou Orlando Vitorino no Diário Popular, (21-3-57), não se deve nem pode pôr em termos de teísmo e ateísmo, mas de ortodoxia e heterodoxia. O Encoberto não será, portanto, para Sampaio Bruno, um ser que metafisicamente nos é exterior, projecção ideal do nosso lirismo céltico, mas todo o mistério interior dum povo, que a história enovela e envolve e a filosofia desenvolve e revela.

Esta demorada referência a Sampaio Bruno, o pensador nascido em 57 do século passado, serve-nos de introito à reflexão que vamos fazer sobre a possibilidade dum romance português e as suas relações com o lirismo. O lirismo é a poesia dos sentimentos, da angústia, do temor, do pavor, da alegria, etc. Os sentimentos, contrariamente ao que ensinam as psicologias de sinal atomista, são existência. Como demonstrou Henrique Bergson é uma construção intelectualista, isto é, de paradigma geométrico, a noção dum eu fixo e imóvel sob a mobilidade de sentimentos que se compõem entre si. Cada sentimento surge como um ponto que, gradualmente, vai aumentando, até avassalar e apoderar-se de todo o nosso ser. Assim nasce o que se designa por paixão, que é uma forma de exprimir a indefinida potenciação do sentimento. Sentir, sofrer, tornar-se passivo são vários graus, etimologicamente encadeados, para os quais o poeta procura a expressão verbal. O lirismo atinge a sua forma suprema quando o poeta se entusiasma com a própria paixão, como é o caso de Guerra Junqueiro e Teixeira de Pascoais, mas então torna-se discutível se não estamos já no domínio épico. O romance surge quando é menos a expressão do que a motivação verbal aquilo que o artista visa descobrir e realizar, em relação aos sentimentos. Quer isto dizer que tal género literário tem como conteúdo o homem em sociedade, – no amor, no trabalho, na vida familiar – mas também quer dizer que, sendo sobretudo interior a motivação verbal, o romance se aproxima da filosofia, cuja forma é o pensamento. É lícito, por isso, esperar com alvoroço o aparecimento do romance português, de que existem apenas leves avisos nalguns livros de Camilo, Domingos Monteiro e José Régio. Verifica-se, em Portugal, que, se a dramaturgia é, na generalidade, cultivada pelos poetas líricos, como é o caso, por exemplo, do último escritor citado, os novelistas mais notáveis, são aqueles que seguem o materialismo sociológico, como Alves Redol, Ferreira de Castro, Fernando Namora, etc. E como se sabe, o materialismo sociológico é uma derivação da filosofia de Hegel.

O interessante, porém, é que tal doutrina hegelista, ao postular a irredutibilidade dos contrários, uma vez transferida para o plano dos sentimentos, aparece em correspondência com o lirismo. Perante a novelística da Alemanha, país de músicos e de técnicos, convém lembrar e afirmar a superioridade da novela francesa, com Huysmans, André Gide, Camus, François Mauriac, e, sobretudo, da novela inglesa, em que sobreleva o talento artístico inigualável de Somerset Maugham. Estes países, já disseram, porém, a sua última palavra em filosofia. No seu livro, O Romance e os seus Problemas», a pág. 202, Adolfo Casais Monteiro defende tese análoga à nossa, ao fazer depender o romance da filosofia.

Três revistas literárias, a «Águia», o «Orfeu» e a «Presença», que representam impuramente as três tradições portuguesas, – cristã, hebraica e islâmica, – dominaram sucessivamente o nosso panorama cultural nos últimos 40 anos. Das três foi a «Presença» aquela que mais romancistas produziu: Branquinho da Fonseca, Gaspar Simões., etc. A «Presença» foi, porém, uma revista contrária a qualquer doutrinação filosófica, e a isso se deve atribuir a frustração dos seus romancistas. Os seus vários colaboradores dividiram-se entre o lirismo e a crítica literária.

A crítica literária é, com efeito, a prosa azeda do doce lirismo. Estes dois fenómenos da literatura costumam ser interpretados pelos psicólogos a partir da vontade de afirmação, do desejo invencível de gritar «presença», que caracteriza o adolescente. O adolescente ergue a voz para se fazer ouvir, afirma-se negando, mas, como a negação é um acto da vontade e não da inteligência, nos verbos que constituem o logismo do que diz está sempre ,..de acordo com aquilo a que julga opor-se. Há, por isso, sempre sociedades de velhos que estimulam o espírito adolescente, acolhem e acarinham as suas revistas literárias, fomentam reuniões em que seja livre a discussão dos problemas. Esta palavra problema tem sobre a mentalidade jovem uma grande influência. Todos os adolescentes querem resolver problemas, literários, políticos, morais, psicológicos, religiosos. Mas quem os apresenta guarda sempre uma solução, que, previamente e ao longo de toda a discussão, funciona como doutrina condutora. Assim, a independência do adolescente é puramente fictícia e ilusória: ele é fundamentalmente um ser gregário. Assim cai o descrédito sobre uma geração de literatos.

Tal descrédito é um bom prenúncio do aparecimento do verdadeiro romance português. Na medida em que as novas gerações se começam a compenetrar de que «a literatura é expressão do sobrenatural», segundo a fórmula de Teixeira Rego, começam também a entender que na viagem ou na iniciação está o arquétipo do romance.

Efectivamente, no panorama actual da literatura nota-se que o romance aparece com pobreza de matéria sociológica e assim se disse já que não é possível escrever romances nas condições actuais da sociedade portuguesa. A sociologia católica de um Francisco Costa, a sociologia burguesa de um Paço d'Arcos, ou a sociologia rural de um Fernando Namora, não nos podem dar mais do que a sedução da virgem que cai na triste condição de gravidez, a dissolução do contrato conjugal pelo adultério do homem e da mulher, e enfim a luta social entre explorados e exploradores. Esta temática, que é de todos os povos de civilização ocidental, enfada e aborrece o leitor português. Lembramo-nos das críticas de Huysmans a todas as formas de romance sociológico.

Se, pelo contrário, os nossos escritores passarem a estudar o problema da personalidade e as ciências que constituem a antropologia, nomeadamente a grafologia, a fisiognomia e a psicologia, é de esperar que formem do romance um conceito mais artístico, segundo o qual a evolução da humanidade se opera aos nossos olhos de harmonia com a doutrina expressa da reintegração dos seres nos seus princípios e nas suas virtudes. A projecção da filosofia na literatura, a que estamos assistindo, bem contra vontade de literatos mais ou menos académicos, é sinal de esperança no aparecimento do verdadeiro romance português.

 

António Telmo



[1] 57, ano I, n.º 1, Lisboa, Maio de 1957, p. 9 e p. 15.