UNIVERSO TÉLMICO. 43

22-09-2016 09:22

Bocage visto por Agostinho da Silva

Pedro Martins

 

Agostinho da Silva não gostaria muito do século XVIII português. Pelo menos, não parece ter-lhe atribuído papel de relevo, à vista do que se (não) lê em Reflexão à margem da Literatura Portuguesa. O caso não é de somenos, por se tratar de um título axial na sua obra. Publicado em 1957, no Brasil, este livro, dos mais celebrados e representativos do autor, toma o texto literário, submetido ao crivo da filologia, como pretexto para o alto voo especulativo da filosofia. Neste caso, da filosofia da história, em que Portugal e o Brasil, na sua visão profética, ocupam lugar destacado como guias da Humanidade, segundo o providencialismo messiânico que adoptou.

Num salto gigantesco, do capítulo VIII para o capítulo IX da Reflexão, Garrett e Herculano rendem, à boca de cena, o Padre António Vieira. O século das Luzes é simplesmente apagado por Agostinho, que já no começo do livro se escusara abertamente a «tomar parte na polémica que opôs, por exemplo, Verney e a gente do anti-Novo Método». Deste modo, ficamos sem saber, pelo menos em face daquela que, para o nosso fim, seria a mais evidente e privilegiada das suas fontes, o que pensou do século em que Bocage nasceu e, sobretudo, da época em que este viveu.

A omissão é difícil de compreender, por dar a entender que durante esses cem anos, marcados por profundas mudanças na arte, na literatura e na ciência, e que foram também os do aparecimento da Maçonaria especulativa e da eclosão das grandes revoluções, na América e em França, nada de novo, ou de importante, se passou em Portugal.

Tão insólita clareira não nos deve fazer perder de vista a floresta da sua obra. Como se calcula, apesar daquele silêncio, por mais de uma vez se debruçou Agostinho sobre Bocage, fosse em referências pontuais ou de modo exclusivo. Traremos à colação três escritos, aliás muito distintos, onde isso sucede, mas admitimos que a pesquisa não tenha sido exaustiva. Por outro lado, e por pouco que tenha dito sobre o século XVIII, deixou o filósofo, em artigos ocasionais, indicações precisas quanto ao juízo global que sobre ele formava. Consideraremos dois distando entre si quatro décadas. Um respeita à Marquesa de Alorna, o outro a José Anastácio da Cunha. Em ambos os casos, trata-se de contemporâneos de Bocage, florescendo na segunda metade da centúria. Mas Alcipe, a filintista, é também a amiga, a admiradora, a protectora. É por eles que vamos iniciar o nosso percurso, pois a sua análise projecta clareza sobre a colossal estranheza que o apagão das Luzes justamente nos suscitou.

“A propósito de A Marquesa de Alorna” foi publicado n’O Comércio do Porto em 24 de Agosto de 1930. É a apreciação crítica de um livro de Hernâni Cidade, que então saíra a lume. Agostinho da Silva era ainda um jovem de 24 anos, mas já se havia doutorado, no ano anterior, com o “Maior Louvor”, em Filologia Clássica, com uma dissertação sobre o Sentido Histórica das Civilizações Clássicas, na Faculdade de Letras do Porto, onde Cidade era professor. Pese embora o incidente que, anos antes, Agostinho, enquanto aluno, com ele tivera naquela escola, a ponto de mudar do curso de Filologia Românica para o de Filologia Clássica, não há sombra de mácula nesta recensão, muito elogiosa para o futuro biógrafo e editor literário de Bocage. O crítico encarece-lhe a «segurança e honestidade de documentação», «uma real capacidade de compreensão de ideias gerais» e a «elegância» do estilo.

Não foi por acaso que, no início deste escrito de imprensa, Agostinho enalteceu o Ensaio sobre a Crise Mental do Século XVIII do antigo professor, protestando «toda a simpatia e todo o aplauso» ao serviço que vinha «prestando à história da mentalidade portuguesa». Crise, importa lembrar, significa mudança. E o ponto é nevrálgico: dir-se-ia que o filósofo, ao século XVIII português, o sofre tão pouco, que, a dele ter que se ocupar, o que, ao longo de toda a sua obra, parece não querer, só deseja que acabe, e depressa – e com ele o que já vinha de longe: o Antigo Regime, sinónimo de absolutismo e despotismo, palavras sem curso legal num coração indómito. Daí que, analisando a monografia sobre D. Leonor de Almeida, considere «particularmente interessantes as páginas em se alude às suas discussões epistolares com o pai: são bem como as resumiu Hernâni Cidade, a luta entre a Autoridade do século moribundo e a Liberdade individual do «mundo que nasce». E, logo a seguir, concretiza: «A Marquesa mesmo, nas suas contradições, de poesia e de acção, é bem uma figura desse período que marca a passagem do velho para o novo e nem de todo se revoltou contra as coisas tradicionais, nem de todo as defende.»

Na segunda parte da recensão, em que, de modo consequente, começa por valorizar «a reabilitação do romantismo» que Cidade vinha desenvolvendo e por afirmar que «a parte mais segura do livro é aquela em que se estuda o prenúncio do romantismo na obra da Marquesa», o crítico literário abraça a teoria da literatura e, abstraindo-se das páginas sujeitas ao seu juízo, ensaia antagónica distinção entre classicismo e romantismo, tomando partido por este último movimento.

Vale a pena transcrever o longo parágrafo onde caracteriza o classicismo. Por ele se entende melhor a sua aversão – mormente em Reflexão, dado o fundamento literário desta – ao século XVIII português. Diz Agostinho:  

 

Na verdade, o classicismo é, acima de tudo, uma distância; primeiramente, distância, distância entre o movimento de conceber e o momento de executar; para o autor clássico, pensar a sua obra não é realizá-la: as suas musas não lhe lançam na alma um grande fogo de inspiração, o delírio dionisíaco e criador; são divindades correctas e frias que recomendam o dicionário e impõem a sintaxe. E dois problemas se põem, logo de entrada, para o clássico: o de saber se a sua obra, quanto ao fundo, está dentro das regras, se segue perfeitamente os modelos; depois, o de procurar que a forma seja pura. Pura quer dizer destilada; a língua foi-se privando de vocábulos considerados inaceitáveis, de construções que repugnavam ao gosto clássico – ficou de todo livre de sais e impurezas, mas insignificante: foi toda pensamento e excluiu música.   

  

Diversamente – contrasta o filósofo – «para o romântico, criar é logo realizar: só haverá o acto puramente material de fixação do pensamento; o romântico não tem modelo, nem regra, nem público». E, mais à frente, acrescenta: «Com o romântico, a linguagem não é só vocabular e sintética, lógica, é já também som e melodia, estética.»

É a escolha de um homem livre, inconformista, libertário, contestatário, subversivo, impulsivo, repentista, irrequieto, inquieto, inquietante, indisciplinador, sempre aberto ao sopro invencível do imprevisível que via vindo, voando, nas asas da pomba do Paráclito. Tudo isto, note-se bem, a despeito da excelência da sua formação clássica – e não vai sem ironia que Cidade, involuntariamente, acabasse por lhe dar causa.

A deslocação do barroco para o romantismo imediatamente operada em Reflexão torna-se mais compreensível. O século das Luzes estaria longe de entusiasmar Agostinho, sequer de o interessar. Para mais, o romantismo restituía-lhe traços do barroco: o excesso, a inspiração, a religiosidade, a inquietação...

Pensamento sem música, o classicismo, de um prisma filosófico, irá, porém, emboscá-lo por esses anos, mais recuados, em que assina a recensão. Sob o influxo do racionalismo helénico e cartesiano de António Sérgio, é a época da sua colaboração na Seara Nova e da afirmação do paradigma clássico da ordem racional, como se comprova pelos ciclos textuais recolhidos em Glossas, Considerações ou Diário de Alcestes.

 

Quando, em 20 de Maio de 1971 publica “De José Anastácio” no Diário de Notícias, é já bem diverso o seu ideário. Impõe-se, por isso, que aqui se empreenda, com a maior brevidade, um bosquejo retrospectivo.

Logo no início da década de 40, o seareiro que, até então, privilegiara o binómio da Inteligência e da Vontade na arquitectura da sua ideação, tende a subalternizá-las ao querigma fraterno e caritativo da Doutrina Cristã, não por acaso o título do folheto que, em 1943, o conduz ao cárcere do Aljube. No mesmo ano, Agostinho publica Vida de Lamennais, obra da maior importância na formação orgânica do seu pensamento. Ainda não se lhe deu toda a atenção que lhe é devida, pois inspira grandemente o socialismo cristão que, naquela época, é já o do filósofo. Tal como Bocage, Lamennais, esse sacerdote filho da Revolução Francesa que abraça o liberalismo político e clama por justiça social, protagoniza «a passagem do velho para o novo» que o seu biógrafo português surpreendera já na Marquesa de Alorna. Cada qual a seu modo, numa paleta de matizes e contrastes.

O período que em 1944 se abre com a ida de Agostinho para a América do Sul denota, no certeiro dizer de Miguel Real, uma «espiritualização das suas teses», a que não será alheia a sua aproximação ao catolicismo, patente em Reflexão, As Aproximações ou Só Ajustamentos. Essa espiritualização ocorre, também, por força do que poderíamos chamar a nacionalização do seu pensamento. Quase se pode dizer que, no Brasil, Agostinho, exilado voluntário, descobre Portugal, aquele que, na Europa, jamais encontrara. Com Pessoa, sobretudo o de Mensagem, que o entusiasma, logo na década de 40, em São Paulo, Camões e Vieira constituirão o cerne profético do seu cânone. E se a Paraíba lhe revela, surpreendente, a sobrevivência do sebastianismo entre os caboclos do sertão, Santa Catarina e a Baía oferecem-lhe depois o ritual e a simbólica do culto popular do Espírito Santo que, não sem equívocos, passará a definir o núcleo central donde, doravante, fará irradiar a sua ideação.

O Agostinho que, em 1971, escreve sobre José Anastácio da Cunha subira, porém, uma oitava. No Brasil, fora sobretudo um católico entrevendo naquele culto, com que judeus e mouros se congraçavam, o motor de um proselitismo de conversão. Agora, depois da Educação de Portugal, procurava cumprir a catolicidade, profundando-lhe a etimologia pela conciliação ecuménica dos credos, enfim concertados, senão fundidos, pela busca da unidade essente do Espírito, se bem que a este, para lhe chamar Santo, continuasse o pensador a pedir licença.

Pelo meio, permanecera fiel ao Portugal medievo, sobretudo o da primeira dinastia, uno pela fraternidade, mas livre pela autonomia comunitária do municipalismo descentralizador. Com respeito à de Avis, não oculta a sua suspicácia. Deplora o Império transformado em empório; lamenta a encarnação de Maquiavel na pessoa do Príncipe Perfeito; verbera a insinuação antropocêntrica e individualista do Renascimento e da Reforma, de que a Contra-Reforma, que igualmente repele, constitui o reverso. Em tudo isto, Agostinho vislumbra já a formação do Estado moderno, centralizador e absolutista, e, sob a égide de uma civilização de matriz protestante, a emergência do capitalismo, com sua economia de concorrência, tributária de uma ciência que prevê para, através da técnica, dominar, assim se postergando a cooperação entre irmãos. No exacerbamento da Autoridade que suprime o liberalismo político, como no da Liberdade que a degrada e desvirtua em liberalismo económico, em detrimento da Igualdade, encontra o filósofo uma quebra da Fraternidade, termo médio do silogismo que revela, pela superação das antinomias, o que Agostinho essencialmente pensava.

 

A reflexão sobre Anastácio da Cunha, dada em três parágrafos, evidencia, sobretudo, o matemático, mas não esquece o militar, nem o heterodoxo às voltas com o Santo Ofício. A Anastácio lamenta Agostinho a aproximação a Pombal, a quem aponta o fracasso da sua reforma da Universidade por lhe faltado uma real «economia de base», sem deixar de aludir, nas referências ao processo dos Távoras e à rasoura mortífera da Trafaria, ao cruel paroxismo do seu autoritarismo. Assim se compreende que na nota sobre Anastácio, de novo, e por duas vezes, tomado de saudades do futuro, concentre o olhar no proximamente vindouro «século liberal» como, por antonomásia, lhe chamara na Vida de Lammenais. Primeiro, ao alvitrar que melhor fora para o cientista ter ficado na «pequena Valença», onde havia «moças a quem se podiam fazer versos que já adivinhavam os românticos», na que, aqui, fica sendo a única menção ao poeta que Anastácio também foi. Depois, quando, ao duvidar do seu estro científico, hoje assente, pergunta «se a matemática de José Anastácio era de tão grandes inovações que a sua obra se impusesse em países de forte tradição científica e em que a sua disciplina estava prestes aos esplendores do século XIX».

Há, em tudo isto, da parte do filósofo, alguma erronia e injustiça. A injustiça torna-se notória por contradição, porquanto, logo no primeiro parágrafo, sugere que Anastácio foi um génio, pois a sua «inteligência» não era «simples talento». A erronia advém de, porventura, não haver ponderado as reais possibilidades de difusão – através da publicação e da circulação de livros – que a obra do cientista tivera aquém e além-fronteiras.

A explicação para esta agridoce evocação creio eu encontrá-la no facto de Anastácio, matemático e artilheiro, como Agostinho acentua, encarnar, aos olhos deste, uma civilização – a da «Europa da gente loira, ordenadora e filosófica» que estava «para lá dos Pirinéus». O filósofo não acreditava que nela estivessem «a verdadeira cultura e a verdadeira humanidade e o verdadeiro futuro do mundo» – assim escreve no capítulo inaugural de Reflexão, onde, como se viu, tragou de um só hausto o século das Luzes. Mas é afinal o pensamento da Idade Moderna, fundado na matemática e na mecânica, cindindo a antropologia e a cosmologia da teologia, e induzindo, desde Descartes, o dualismo entre o espírito e a matéria em detrimento da tradicional distinção entre corpo, alma e espírito, que Agostinho, para quem «filosofia separada de teologia» era «invenção do diabo», julga e condena na pessoa de José Anastácio da Cunha, de cuja semente, enfim, dirá que não arreigou no solo pátrio por não interessar ao cerne do país. Por isso, entre os motivos que o levam a lamentar-lhe a colaboração com Pombal, encontramos ainda este: o de não ver «para Portugal outro futuro que não fosse atrelar-se à Europa. Entusiasta, tomou como bom o que nada prestava; pois bem cedo o pagou».

Este tópico é precioso. Dá, de um só golpe, a evolução espiritual de Agostinho, por confronto com o artigo sobre A Marquesa de Alorna, onde elogiara a abordagem de Cidade ao «movimento de ideias de alguns anos que contam entre os que mais nos aproximaram da Europa intelectual».

 

São os anos de Bocage. De que modo o vê Agostinho?

O primeiro documento data de 1944. É o Caderno de Informação Cultural sobre Literatura Portuguesa, série Iniciação. Louva-se a nobreza do propósito destas publicações, exíguas na sua concisão didáctica. Daí que o seu teor seja sumário e o estilo despojado.

Ao cabo de página e meia, o século XVIII não sai maltratado do opúsculo. Verney, Ribeiro Sanches, árcades como Quita, Garção e Cruz e Silva, o pré-romântico Tomás António Gonzaga e o satírico Tolentino integram-se numa digressão competente que, se ilumina o neoclassicismo por contraste com o obscuro gongorismo de Seiscentos, subalterniza-lhe o poder das musas: «O movimento, no campo da ciência e da técnica, vingou por algum tempo, embora, por motivos que não eram talvez de plano intelectual, não tivesse lançado raízes bastante profundas. Quanto à literatura, os resultados foram menos brilhantes.»

Fatalmente, Bocage leva a palma. Cito o que é óbvio:

 

É, no entanto, com Bocage (1765-1805), que este pré-romantismo [Agostinho acabara de se referir a Gonzaga] se define melhor; o temperamento exaltado e doentio do poeta, o seu perfeito sentido da musicalidade do verso, a facilidade da improvisação, dão-lhe entre os poetas do século XVIII, um lugar de nítida superioridade. Nem José Anastácio da Cunha (1744-1782), nem a Marquesa de Alorna (1750-1839), nem Filinto Elísio (1734-1819), podem, sequer de longe, competir com Bocage, a quem, no entanto, prejudicaram muito, quer os defeitos da sua personalidade, quer as pressões de vária ordem que sobre ele se exerceram.

 

O trânsito para o século liberal define-se sem surpresa: «Certo é, porém, que apesar de todas as inegáveis qualidades dos escritores do século XVIII, só o movimento romântico vem abrir horizontes novos à literatura portuguesa.»

 

Foi preciso esperar quase três décadas para que Agostinho abordasse Bocage autonomamente. Ainda assim, a sua resolução parece acidental. Não é de crer que sobre Elmano tivesse publicado um artigo no Diário de Notícias, como o fez em 4 de Janeiro de 1973, sob o título “Já Bocage não sou”, se a tanto uma causa próxima, aliás eficientíssima, o não tivesse movido: a publicação da Antologia Poética do sadino que Ester de Lemos organizou para a Colecção Livros RTP. O «poético, sentido, dramático prefácio» da estudiosa tocou-o profundamente: «bem informado, escapa por completo à objectiva secura de tão grande número de especialistas» – acrescentará, depois de concordar com o sentido dado pela autora ao verso com que intitula a recensão: Já Bocage não é o poeta aviltado e desfigurado por uma tradição popular que, além do nome, só conhece anedotas que nunca disse e versos que nunca escreveu. Já Bocage é um dos grandes poetas portugueses, o maior que o seu século viu nascer.

Para Agostinho, «se é bom, para descrever rinocerontes, sê-lo o menos possível, é conveniente ser o mais possível poeta para de poetas se falar». Bocage, recorde-se, granjeou numa só década dois dos maiores: Olavo Bilac, o parnasiano, cuja conferência de São Paulo, em 1917, se tornou um marco miliário; Teixeira de Pascoaes, o saudosista, que lhe dedica páginas esplendorosas n’Os Poetas Lusíadas. Se o brasileiro, vinculado a ditames de escola, lhe exalta, superlativo, a expressão formal, propugnando que lhe restituam, autêntica e inteira, a estatura de um artífice que, enquanto tal, superou Camões, a Pascoaes, numa visão isenta de moralismo, interessa sobretudo a alma do poeta inspirado, «apaixonado por todas as mulheres e por todas as ideias», e «o mágico poder da sua lira sobre as almas e as cousas», anunciando, num clarão de aurora, a nova era da Liberdade.

Agostinho, com laivos de biógrafo, não resiste à comparação com Camões, que Elmano aliás consente. Assinala-lhes «o parentesco de destino ao mesmo tempo que a distância de génio», esta a débito de Bocage; contudo, furta-se à minudência indelicada dos juízos estéticos. Maior ou menor, certa que está a grandeza, interessa-lhe, sobretudo, em ambos, o homem além do poeta, com seus dramas, suas tramas, suas possíveis tragédias. Na ventura e no infortúnio, no pecado e na virtude, traça-lhes paralelos. Mas a vantagem de Elmano sobre Camões, pois deste sabe «pouco o povo e quaisquer comemorações, como água em pato, por ele escorrem sem que o molhem», é o da sua medular identificação com esse mesmo povo que, se inconscientemente o diminuiu,

 

nele pôde ver o retrato do seu génio e de sua desgraça; a sua mutilada aspiração de um Deus universal; a sua constantemente iludida sede de liberdade; sua limitada pujança de alar-se ao infinito e seu reencontrar-se na eterna moenda em que talvez se esmague ainda grão, mas de que não sai farinha alguma para o pão da sua vida.    

           

Se para de poetas se falar é conveniente ser o mais possível poeta, dificilmente o estro poderia agora ser mais alto. Irmanando-o com Bocage, lucilam três palavras onde lhe cabem todas as ideias: Deus, povo e Liberdade. Porque, para Agostinho, o homem, criado à imagem e semelhança do Criador, é, como este, essencialmente Liberdade. E, com a iludida sede que dela tem, ao próprio Deus o liberta o povo das cadeias em que as igrejas o encerraram.

Já assim Bocage estaria pago do apagão. Mas, sem que se soubesse, houvera juros. Num texto escrito em 1968, na Baía, para um livro de António Telmo que se perdeu, e mantido inédito até 2014, quando tive o privilégio de o publicar na revista A Ideia, afirma Agostinho:

 

Só os portugueses menores, e é óptimo que haja portugueses menores chamados Sá-Carneiro ou Régio, foram monovalentes; os grandes são plurivalentes, o que se liga ao mesmo tempo com valentia e valência; Camões, soldado, Bocage, marinheiro de navio e taberna, Antero, conspirador, todos eles tiveram a coragem de assinar com um só nome a sua obra; Fernando Pessoa, tímido desempregado de escritório, fez como o caramujo da Inês Pereira; não saiu senão à porta e foi lançando seus pedúnculos oculares, ou seus variáveis pseudópodos de ameba para aquela exploração do mundo do sol e da verdade a que não ousava ir, bravo inteiro guerreiro; tudo isto viu muito bem António Telmo.

    

Como Bocage incapaz de assistir num só terreno, bem merece quem tal escreveu assiná-lo com um só nome: Agostinho.

 

Setúbal, 13 de Setembro de 2016.