INÉDITOS. 65

06-10-2016 23:22

Numa carta para António Quadros de 2 de Junho de 1986, António Telmo afirma esperar publicar um volume sobre “Filosofia e Cabala”, «já completo». Noutra, de 7 de Abril do ano seguinte, informa o amigo de que nele tenciona incluir “As tradições heterodoxas da filosofia portuguesa”, então já a aguardar publicação num número especial da revista Democracia e Liberdade organizado por Pinharanda Gomes e inteiramente dedicado à Filosofia Portuguesa. Numa terceira missiva para Quadros, ainda de 1987, mas já de 28 de Julho, escreve: «Enquanto bibliógrafo, estou aperfeiçoando e reunindo escritos antigos que intitularei, num novo livro, de “Filosofia e Cabala”.»

Conjugando estes dados, seríamos levados a suspeitar que o livro anunciado em Junho de 1986 e dado por «completo» era bem diverso do que viria a sair a lume em 1989, sob o título Filosofia e Kabbalah. Recentemente, a consideração de um caderno de apontamentos existente no espólio de António Telmo, com a indicação, na capa, de “Filosofia e Kabalah (Diálogos)”, veio reforçar essa suspeita. Pelo menos em parte, Filosofia e Cabala terá sido inicialmente concebido pelo filósofo como um livro escrito de raiz, e não como a recolha de dispersos que depois se viria a revelar. Só um estudo mais detido deste material, ainda inédito, permitirá avaliar em que medida houve mudança no propósito. Mas o inédito – um de três textos sobre ecologia que dele consta – que agora damos a conhecer mostra como o pendor aforístico do conciso e incisivo “Para um movimento metafísico de ecologia – princípios” teve um antepassado próximo bem distinto, apesar das flagrantes semelhanças verificáveis na ideação. 

Movimento metafísico de ecologia[1]

 

Em geral, todos os movimentos de ecologia que nos últimos cinquenta anos têm aparecido no estrangeiro e em Portugal, procedem acusando. Segundo a Bíblia, será o diabo que acusará o homem no fim dos tempos. É necessário que haja sempre quem acuse. Mas o acusador tem por fim condenar e perder o acusado. Não pretende a ecologia salvar o homem, salvar todos os homens e não só aqueles que não têm culpa dos desequilíbrios e da corrupção da natureza em que somos e vivemos? Há alguém que não tenha culpa? 

Os ecologistas, em Portugal, dividem-se em dois campos: o daqueles que responsabilizam o capitalismo e o mau uso da ciência e da tecnologia e o daqueles que responsabilizam, em termos análogos, o socialismo. Os primeiros escolheram como símbolo a cor verde e os segundos não se importarão, talvez, de serem designados por azuis, que evoca a imagem do céu sem nuvens e da monarquia sem mancha. Ambos coincidem em fazer depender de “acções físicas” as perturbações naturais. Os seres devoram-se entre si em cadeia. A destruição de uma espécie causará a multiplicação excessiva da espécie que ela devora que irá por sua vez tornar impossível a existência de outras espécies. Entre o sol e a terra há uma harmonia que se reflecte na pureza da atmosfera. Através da comunicação no espaço e da distribuição no tempo, os quatro elementos recebem uns dos outros o movimento próprio da vida: a água torna a terra fecunda, os vegetais purificam a atmosfera onde recebem a luz ou a energia solar. A ecologia é a ciência destas relações que devem ser conhecidas para harmonizar com elas a acção do homem. Mas o homem sobrepõe o seu interesse imediato de produção de riqueza, capitalista ou socialista, aos interesses dessa mãe antiquíssima que é a natureza, construindo fábricas onde não deve, cortando ou plantando florestas, desviando energias, como a eléctrica ou a atómica, dos seus cursos naturais. Nós pensamos que estas acções visíveis não são causas, mas consequências das verdadeiras causas, que são sempre invisíveis ou de natureza espiritual. Daqui a escolhida designação de “movimento metafísico de ecologia”.

O segredo está em dar como causa de uma alteração na natureza uma acção humana que aparentemente nada tem que ver com essa alteração. Assim, num exemplo propositadamente disparatado e escolhido artificialmente para fins didácticos, diremos que a causa da plantação do eucaliptal que cobre a Serra d’Ossa não foi o interesse de produção de capital de uma empresa como a Socel mas o facto das mulheres da região terem passado a cortar as unhas dos pés em forma de garra. Eis que, por este caminho, se substituem os critérios dos economistas pelos critérios dos bruxos. O raciocínio subjacente é este: quando as mulheres alteram o seu comportamento social produz-se no mundo subtil das verdadeiras causas um movimento que vai alterar nos homens o sentido realista da paisagem e da agricultura. A ideia basilar é a de que existem leis invisíveis que ligam os seres entre si e sobretudo a esfera do espírito do homem à totalidade da natureza. Somente pelo conhecimento dessas leis é possível instituir a ecologia e torná-la capaz de eficácia na restauração da ordem natural primitiva. No exemplo dado, se persuadíssemos as mulheres a cortarem as unhas em meia-lua secariam todos os eucaliptos que povoam a Serra d’Ossa.

É evidente que escrevemos para os leitores capazes de apreender através de um exemplo disparatado a ideia base que os levará a encontrar relações mágicas verdadeiras entre acontecimentos aparentemente desligados.

A bruxaria, e as suas leis, constitui uma aplicação menor, um eco e uma repercussão ou superstição de uma augusta e solene doutrina que a Igreja Católica desde o início chamou a si e soube perpetuar através de todas as vicissitudes políticas. É a doutrina do pecado original.     

A natureza não pecou. Quem pecou foi o homem. Esse misterioso crime primitivo, cuja verdadeira essência e razão nos escapa, abalou todo o universo natural e sobrenatural dependente do Espírito Central criado à imagem e semelhança de Deus, repercutindo-se no vasto espaço e no tempo imenso, pelos séculos dos séculos. Eis o motivo fundo porque a primeira das ciências é a antropologia, a Ciência do Homem. Acordar para a vida espiritual implica a passagem pela consciência de que participamos nesse crime, de que todos somos um, como Cristo nos ensinou. O nosso adormecimento é a nossa divisão, mas à consciência de sermos uma só Inteligência não se acede negando o valor do Espírito e dando como natural o que é o resultado do pecado original. Os ecologistas cometem o erro de perspectiva de darem a natureza sem o homem ou com o homem antes da civilização, como uma realidade sem mancha, movendo-se e perpetuando-se harmoniosamente. São, neste sentido, filhos de Jean-Jacques Rousseau. Noutro sentido, preferem à doutrina cristã o neo-orientalismo, para o qual o homem não é o ser privilegiado de Deus, mas um elo na cadeia infinita dos seres. A cosmologia (ou as Ciência Físicas) detém o primeiro lugar no mundo do conhecimento. A antropologia é mais uma ciência física na vasta enciclopédia do saber.   

Na natureza todos os seres se devoram entre si. A vida haure-se na morte. “Crescei e multiplicai-vos”, foi a palavra, mas não foi dito “e devorai-vos”. Atribui-se a Lenine a seguinte frase, proferida contra Kerenski: “as revoluções não se fazem com vegetarianos. Eu, por mim, prefiro a carne mal passada.” Isto é, ensanguentada, exalando ainda os fumos[?] do sangue que o fogo não consumiu. Esta frase equivale a esta: “Esse homem não sabe que somos demónios que nos alimentamos de sangue; sejamos civilizados, passando a carne pelo fogo, mas preservemos a parte de verdade do nosso ser verídico consumindo completamente na carne de que nos alimentamos a vida animal que a constitui.” Lenine conhecia a prescrição de Moisés que proíbe alimentarmo-nos do sangue dos animais. Em geral, a ecologia é um movimento de vegetarianos, em grande parte leninistas que não querem ver a grande contradição que é substituir o “vermelho” pelo “verde”. Através de uma simplicíssima experiência de óptica pode observar-se como não há vermelho sem verde, como um está sempre onde o outro está, como um se transmuta no outro deixando a luz seguir os seus próprios caminhos.

Como se concilia o orgulho sanguinário de Lenine com a serena suavidade anémica dos vegetarianos? Não significa “anémico” “sem sangue”?

O nosso Teixeira Rego interpretava o pecado original como a manducação da carne. No princípio, o homem paradisíaco nutria-se apenas de vegetais. Ao alimentar-se de carne, infringiu a proibição de tocar na “Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal”. Daqui a sua queda no sofrimento e na dor. 

 

António Telmo   



[1] Título da responsabilidade do editor.