INÉDITOS. 56

02-09-2015 09:04

Por volta de 1993, António Telmo e alguns membros do seu círculo procuraram dar corpo ao projecto de uma revista que esteve para se chamar Portugal. O Encoberto e Átrio foram outros nomes possíveis desta publicação. O ensejo gorou-se, mas o texto de “Apresentação”, escrito e assinado pelo filósofo, ficou. Mais tarde, num período que presumivelmente se situará entre 1998, ano da iniciação maçónica de Telmo, e 2000, ano do começo da publicação da revista Teoremas da Filosofia, o filósofo parece ter querido recuperá-lo para uma outra publicação, afecta ao movimento da Filosofia Portuguesa. O dado novo mais significativo deste recomeço, também frustrado, parece, porém, ser a inspiração maçónica que António Telmo pretendia conferir ao novo projecto. Ao título inicial, dactilografado, acrescentará pelo seu próprio punho os seguintes dizeres: “a Oriente de Estremoz de uma revista literária”... 

Apresentação a Oriente de Estremoz de uma revista literária

 

"É o começo que falta ao homem. Encontrá-lo não é difícil; o obstáculo é imaginar que se é obrigado a procurá-lo."

Gustavo Meyrink

 

O domínio intelectual de Lisboa e de Coimbra sobre o país, através da Universidade fundada pelo rei poeta, que perdurou e se intensificou no decurso dos séculos, tem funcionado, sobretudo a partir do Marquês de Pombal, como um meio de recepção, de adaptação e de propagação das ideias estrangeiras e de formação de juristas políticos, hoje também de engenheiros, que as utilizam na governação do povo. O movimento que se desencadeou no Norte, partindo de Sampaio Bruno, com dois exércitos perfeitamente harmónicos, o da Renascença Portuguesa e o da Filosofia Portuguesa, tentou, por entre reacções ferozes, a reconquista espiritual da Pátria. No seu discurso parlamentar sobre "A Questão Universitária", o filósofo iluminado Leonardo Coimbra, fundador da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, disse assim:

 

A força de inércia ou coesão das associações é a grande força conservantista das sociedades, é como uma memória social implícita, hipnótica, parente dos instintos animais. Pertence à massa ignara. A força de dissociação e criação de novas associações pertence, singular e esporadicamente, aos génios; pertence sistematicamente aos organismos intelectuais superiores, que são a parte lúcida e criadora da consciência colectiva. Nesses organismos contam, desde o século XII, as Universidades.

As Universidades são, pois, grandes factores de evolução da crença. E assim é que sempre que um bando tenta impor uma crença, adormecer o espírito humano num dado associacionismo psíquico, esse bando vai à conquista das Universidades. É deste modo que a um período de esplendor da Universidade portuguesa segue, com D. João III, a conquista pelos jesuítas do colégio das artes e depois a confirmação da Universidade de Évora, sendo obrigatório o curso do colégio das artes para a matrícula na velha Universidade, e vindo a conseguir que os jesuítas graduados em qualquer Universidade fossem como graduados na Universidade de Coimbra.

 

Os dois primeiros discípulos de Leonardo Coimbra, José Marinho e Álvaro Ribeiro, e o décimo terceiro, Agostinho da Silva, logo após a morte do Mestre, trouxeram até à capital física do outrora Império do mundo o movimento da reconquista. O Alentejo, que recentemente viu reformulada nos moldes coimbrões a Universidade de Évora, manteve-se, desde a implantação da República, distante e alheado da guerra santa, constituindo uma zona desértica ou de "armamento" espiritual. Não é, pois, um acaso, o facto desta revista ter como sede a cidade alentejana de Estremoz.

Durante a ocupação de Portugal pelas tropas do duque de Alba, quando se constituiu aqui um governo de portugueses ao serviço do rei de Espanha, os alentejanos saíram e foram formar o Brasil. Jaime Cortesão conta-nos como isso foi na sua Introdução à História das Bandeiras. Enquanto a América espanhola nasceu dos "aldeamentos" organizados pelos jesuítas que, entre os seus muros, submetiam os índios vencidos a uma rigorosa disciplina, a América portuguesa foi feita pela aliança dos índios e dos portugueses, que traçaram o mapa do Brasil com os pés, por vales e montanhas. Os alentejanos foram capazes de tal proeza por estarem habituados a longas caminhadas atrás das perdizes até as cansarem. O verdadeiro "começar" não é, porém, sair, embora seja preferível fazê-lo a ficar escravo e, sobretudo, quando se imagina transplantar para longe a Pátria, criando-a de novo ali.

O rio Tejo é o diafragma de Portugal. Se nos representarmos o país na figura do Homem, o Alentejo aparece-nos em baixo, sob esse diafragma, cindido, na sua vagarosa digestão dos alimentos da terra, da vida superior do Espírito, que mora no Porto e no Marão. Estabelecer nele um foco de domínio material pelas ideias foi o que esteve na mente dos fundadores da Universidade de Évora. O Norte, intelecto e princípio da Pátria, já isolado no próprio corpo que superiormente inspira pela torácica acção das zonas de recepção e de projecção das influências exteriores, dificilmente poderá fazer-se sentir no Alentejo e no Algarve. Pensamos ter chegado o momento de aqui levantarmos um Castelo de irradiação espiritual. A antiga relação, hoje desfeita, com o pensamento islâmico e judaico encontrará assim, actualizado, um meio de reanimação. A profunda afinidade, outrora existente, entre as filosofias esotéricas de Prisciliano, no norte galaico, e de Ibn Qasi, mestre de Ibn Arabi, no Algarve, assume, através dele[1], a força de um símbolo.

Deve-se à operatividade intelectual de árabes e judeus o conhecimento pela Europa de Aristóteles e Platão. Há uma escolástica hebraica e uma escolástica islâmica, antes ainda de uma escolástica cristã. As três tradições conviveram harmoniosamente até D. Afonso, em terra portuguesa. O Alentejo e o Algarve eram então zonas de profunda irradiação da sabedoria filosófica.

Compreende-se assim porque escolhemos para capa da revista a Rebis alquímica, tal como a concebeu Rafael na figura dos dois filósofos gregos. Segundo Tomé Natanael, nosso mestre, Rafael não pintou a oposição de Aristóteles a Platão. O que, na verdade, ali está é o seguinte: a energia celeste é captada pelo dedo indicador de Platão, dirigido ao alto em ponta, e a energia terrestre pela palma da mão de Aristóteles, voltada para baixo paralelamente ao chão; as duas correntes de energia espiritual combinam-se no ponto que, na alma, corresponde ao encontro dos dois olhares e constituem-se numa terceira de que teremos a revelação perfeita quando os dois filósofos, que vêm andando para nós, descerem os quatro degraus da história.

A Escola de Atenas, pintada por Rafael, aparece-nos como o excelso modelo do ensino acroamático, proposto à nossa imitação hoje sobretudo em que o ensino para toda a gente, de louváveis intenções e de sinistros fins, pretende, não a vida do Espírito, mas adestrar os "escravos" com a instrumentação cultural indispensável para servirem, contentes e iludidos, a sociedade tecnológica. Quem a pode ter por ideal são as tertúlias. As tertúlias é que constituem autênticas escolas de ensino particular ou acroamático. E é por isso que o problema da legitimidade do ensino particular que é, afinal, o da liberdade de ensinar, tal como é posto habitualmente, se deve ou não ser reconhecido e autorizado pelo Estado, é um falso problema. Ensino público apenas para o Estado. Ao público as tertúlias chegarão pelos livros e pelas revistas.

O que hoje sabemos ter distinguido a Faculdade de Letras da Universidade do Porto, extinta por Salazar, dos outros organismos estaduais de ensino foi duas coisas: a acção directora de um homem de génio, Leonardo Coimbra, e o facto de coexistir com ela uma tertúlia. Conforme a indicação de Álvaro Ribeiro: «A Faculdade de Letras da Universidade do Porto constituiu o exemplo de como uma associação secreta pode funcionar aberta ao público.»

O funcionamento de uma tertúlia activa e criadora depende da existência de uma tradição sófica, isto é, aquilo que a garante como verdadeira é a presença de quem continue a cadeia formada por sucessivas gerações de mestres e discípulos vivendo a mesma doutrina esotérica. Este é o caso das tertúlias de filosofia portuguesa, que foi fundada por Sampaio Bruno no ano em que, com trinta e seis anos, publicou as Notas do Exílio, vindo de Paris, onde terá recebido a iniciação no martinismo. A revista Leonardo foi a expressão actual de uma delas e constitui um foco de irradiação espiritual em Lisboa.

O que distingue a revista de outras é a identificação da arte de filosofar com a arte poética. Aparece, pois, como uma publicação em que predominam o conto, o poema, o ensaio, o aforismo. Sabemos que a razão não convence ninguém, se não falar aos sentimentos. O perigo que nos espreita é o da adulteração da filosofia pela literatura.

 

António Telmo



[1] Nota do editor – António Telmo grafa entre parêntesis manuscritos, seguidos de um ponto de interrogação também manuscrito, a expressão “através dele”.