INÉDITOS. 12

09-05-2014 10:18

O escritor justifica-se. Sob a forma dialogal, António Telmo revisita, num conto que deixou inédito, o seu livro de Contos, prevenindo-lhe as críticas e as objecções. É este um escrito em que a sua lúdica inteligência vai a par do humor, sempre subtil, com que nos toca. 

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O contador de histórias e a mesa de bilhar

 

“Li o teu novo livro e quero dizer-te, com toda a franqueza, com a lealdade que se deve ter entre amigos, que achei os teus contos cheios de defeitos. Não há o retrato físico de uma só personagem que seja. Não lhe vemos o rosto. Contentas-te com lançar um nome que é Julião ou Isidro Jorge como podia ser outro qualquer. São apenas um nome e às vezes nem nome têm. Não sabemos se são morenos ou loiros, magros ou gordos, altos ou baixos.

Os lugares onde se passam as histórias são apenas indicados.

Depois, só há praticamente o protagonista e, às vezes, uma segunda personagem para o fazer existir. A intriga, como a palavra o diz, exige, pelo menos, três pessoas. Os teus contos não têm intriga.”

O crítico falou assim e ficou à espera da reacção do contador de histórias.

– “Tens razão.” Respondeu por fim. “É verdade tudo quanto dizes.” E ficou silencioso.

O crítico irritou-se.

– “E então?” Perguntou ele.

– “E então, nada.”

– “Nada não”, vociferou o crítico. “Tens obrigação de dar uma satisfação aos leitores, de te justificares perante eles.”

O contador de histórias sorriu e disse suavemente:

– “Falas dos meus contos como se desempenhassem na sociedade um papel igual aos das pastas de dentes. Verificou-se que a pasta produz a cárie dentária. O fabricante tem de retirar o produto e de pôr no mercado um que satisfaça os seus utentes. Não é isso?”

– “É e não é. É no sentido de que, quando vieres a publicar outro livro de contos, terás o cuidado de não cair nos mesmos defeitos.”

– “Então porque não o escreves tu?”

O crítico guinchou um som indistinto e ripostou:

– “Não sou um contista. Sou um crítico. Um especialista em análise literária. Compete-me orientar o gosto dos leitores.”

– “Ou o talento dos escritores?”

– “Uma coisa e a outra.”

– “Oh meu caro amigo, sempre houve grandes escritores e os críticos não têm dois séculos de existência. Eu não vejo como seja possível, com palavras, tirar o retrato físico exacto de uma pessoa. A palavra não se fez para isso. Talvez, aqui, nos fosse mais útil a foto-espingarda do Julião. Quando leio nos grandes escritores, num Camilo, num Eça, num Domingos a descrição física de uma personagem, não fico a vê-la como ela é, se algum dia foi, no espírito do seu criador. É o leitor que a imagina, se quiser.

Quanto às paisagens, tenho que dizer-te o seguinte. Basta falar em eucaliptos e no alto de uma montanha para que o leitor veja toda a paisagem, aquela que ele gosta de imaginar naquele caso particular.

No que diz respeito ao terceiro ponto, o de não haver intriga, porque só há uma personagem, pergunto-te se achas que um homem é pouca coisa. Tu preocupas-te com mais alguém, além de ti? E não é, preocupando-te contigo e com o teu aperfeiçoamento, que podes melhorar os outros?”

A discussão prosseguiu pela noite fora. Oxalá tivesse antes prosseguido pela noite dentro!

O contador de histórias acordou, no dia seguinte, mal disposto. Tinha a zoar-lhe na alma a crítica do crítico.

Depois de ter mascado na cozinha o pequeno almoço, saiu para o quintal. Ouviu cantar um galo. Como é que diabo poderia ele dar com palavras o canto do galo? Lembrou-se daquele seu professor de Português no Liceu que soltava um assobio e pedia a um aluno que escrevesse no quadro aquele som. “Esta gente só quer artes plásticas”. Rosnou. No entanto, havia no seu espírito qualquer coisa de muito forte que dava razão ao crítico. Entrou em casa e foi ao seu quarto buscar o seu livro de contos que tinha na mesa de cabeceira. Folheou-o e leu aqui e ali. Sentia-se triste, cheio de desânimo. Leu de novo aqui e ali e voltou a não gostar. De repente, viu que estava farto de literatura. “Tenho de deixar de escrever.” Concluiu. “Não tenho paciência”.

Foi então que pensou em comprar um bilhar, a sua grande paixão de quando era adolescente e que, mais ou menos, conservou pela vida fora. Tinha em casa uma sala de que fizera, de concerto com a mulher, o seu escritório e, simultaneamente, a sala de visitas. Era a única divisão na casa que comportaria o tamanho de uma mesa de bilhar. Era ali, porém, que a sua mulher dormia agora, num divã que era ao mesmo sofá e cama. Esse divã teria de sair e as estantes, os livros e o restante mobiliário, para que o bilhar pudesse funcionar, teriam de ir para o sótão, o único lugar onde tinham cabimento. Isto ainda era o mais fácil. O pior era que a mulher voltaria a dormir com ele na cama do casal.

Não era que não se dessem bem. Incomodavam-se um ao outro com o ressono. Se ela adormecia primeiro, com o barulho que fazia ressonando, não conseguia ele pegar no sono; se era ele o primeiro, não conseguia ela. De comum entendimento, decidiram que se montasse no escritório aquele divã e passaram a ter noites separadas. Ela,  porém, cedeu dificilmente porque temia que a separação física tivesse consequências físicas indesejáveis.

Se ali pusesse um bilhar, voltariam a ter de dormir juntos e reapareceria o problema causado pelo ressono. Mas a ideia de um bilhar, de praticar nele a série americana, dominava-o com a força de uma obsessão. Consultou a mulher. Fingiu ela que a ideia não lhe agradava; ele ficaria sem escritório, ela sem sala de visitas. Fingiu e sentiu ao mesmo tempo. Mas enfim, era como ele quisesse.

O bilhar foi mais forte do que o ressono e entrou pela casa dentro.

Aconteceu, porém, que, passados uns tempos, nem dormia nem jogava ao bilhar. era aborrecido estar ali estupidamente e empurrar três bolas sem o atractivo da competição. E não encontrou ninguém disposto a vir jogar com ele. Os poucos jogadores que havia na cidade preferiam praticar o bilhar onde fossem assistidos por outros.

Uma noite, apareceu-lhe o crítico em casa. Já não se viam desde aquela discussão. Ficou admiradíssimo de ver a modificação da sala.  

– “Por um miserável jogo de bilhar, perdeste o teu reduto de escritor, tens os livros a apodrecer no sótão e não tens onde receber decentemente as visitas.”

 – “A ti se deve. – Disse o contador de histórias.

– “A mim se deve?!”

– “Sim. por causa de, ti perdi o gosto de escrever e reapoderou-se de mim a paixão do bilhar. Voltei a dormir com a minha mulher. Foi, afinal, a única coisa positiva. Difícil, mas positiva.”

E contou-lhe a história do ressono.

O crítico riu a bandeiras despregadas. E repetia: “O ressono! O ressono!” E concluiu: “Aí está um belo conto!”

O leitor desta história pode ver que ela foi escrita e sem o retrato físico das personagens. 

 

António Telmo